Venda de droga às claras. Poças de urina na calçada. Lixo. Música madrugada dentro. E até um novo tipo de turismo: o pub crawl. Este é um retrato da noite do Cais do Sodré e arredores, que vem criando há vários anos um clima de tensão entre moradores, comerciantes e a própria Câmara Municipal de Lisboa.

O tema não é novo, e o Cais do Sodré sempre foi sinónimo de noite. O Jamaica, o Europa e o Tokyo evocam esse passado. A boémia que sempre aqui houve, numa zona de porto. Mas quem cá vive e trabalha nota diferença no tipo de vida noturna: “Passámos das discotecas e da prostituição para ter mais insegurança e ruído por todo o lado. Quem chega aqui às seis da manhã encontra um ambiente de meia noite”.

Esta frase diz tudo sobre o problema. Não são os bares e discotecas – a lei determina a insonorização dos espaços a partir das 23 horas e o seu funcionamento de janelas e portas fechadas. São os espaços de restauração que se transformam em bares e discotecas abertos. É o barulho que se espalha nas ruas. Que se faz nas ruas. E que nem o fecho das esplanadas evita – a única diferença é as pessoas estarem de pé.

Apesar de desde 2014 o Plano de Urbanização desta área limitar o nascimento de novos bares com espaço de dança e música, são estes estabelecimentos que hoje dominam o Cais do Sodré – através do contornar da lei.

No Cais do Sodré já quase não mora gente

À medida que estes espaços vão tomando conta do bairro, legal ou ilegalmente, as famílias que por ali moravam vão saindo e, com elas, o espírito da zona.

“No meu prédio, as famílias com crianças já saíram todas”, relata Ana, moradora na zona baixa. Outra moradora, Maria, da zona mais alta, diz que “duas famílias” do prédio dela já deixaram os seus andares. Agora foram ocupados por “franceses e sul africanos”. Incautos?

Ao início da noite, ainda rodam os trolley dos turistas que aqui se alojam.

De todo o concelho de Lisboa, a freguesia da Misericórdia, da qual faz parte o Cais do Sodré, o Bairro Alto e o Príncipe Real, foi aquela que mais população perdeu entre 2011 e 2021, segundo os Censos do ano passado. Passou de 13044 habitantes para apenas 9645. 

O envelhecimento da população nos bairros históricos e a profusão de alojamentos locais ajudam a explicar o decréscimo.

Por volta das sete da tarde, na Rua Nova do Carvalho, há anos conhecida como Pink Street, por causa do chão dessa cor, deixa-se de ouvir português e o som das rodas dos trolleys pela calçada intensifica-se.

“As rodas dos trolleys, malas dos turistas, formam o som mais característico da zona, enquanto é dia”, diz Maria. Muitos turistas instalam-se, antes de saírem para jantar, nos Alojamentos Locais, que eram mais de 19 mil unidades em toda a Área Metropolitana de Lisboa, em 2021. Embora a maioria esteja concentrada no centro histórico – Misericórdia e Santa Maria Maior.

“Saí daqui, senão já estava louca!”

Há vinte anos, Ana (nome fictício) comprou aqui um apartamento, mas há meses que é obrigada a recorrer a uma casa secundária, que tem a sorte de ter, “numa zona calma de Lisboa”, para dormir. “Se não, já estava louca”, confessa.

Rua Cor de Rosa às três da manhã.

É contra o ruído, a música ensurdecedora e, sobretudo, a ausência de fiscalização pela polícia, que os moradores do Cais do Sodré se insurgem, em denúncias sistematicamente feitas pela associação Aqui Mora Gente.

“Tudo se intensificou desde o fim da pandemia. Em poucos meses, criou-se aqui um Bairro Alto,” diz Ana.

É quando o sol se põe para lá da Ponte 25 de Abril que os bares que são restaurantes ganham vida noturna. São portugueses, mas também mexicanos, de Tapas, de comida asiática e atraem um número incontável de turistas. Já é difícil de encontrar um café de bairro ou uma tasca típica.

Manuel (nome fictício, todas as pessoas que aceitaram falar para esta reportagem não querem divulgar o nome, pela tensão que se vive na zona), há 25 anos a trabalhar no Cais, diz que tem um café “para locais” e é dos poucos a abrir de manhã e não de noite. Viu o Cais do Sodré mudar da boémia da prostituição para a boémia dos turistas.

E agora, todos os dias, Manuel, que chega à loja um pouco antes das seis da manhã, encontra situações delicadas: pessoas embriagadas a obstruírem a sua porta, sobretudo.  “Se houver muita gente na rua, não ponho a esplanada. O problema só se resolve com polícia e a segurança não está garantida. Há pessoas a viver aqui, crianças a irem para a escola de manhã. Os mais pequenos não podem brincar nos parques infantis sem encontrarem vidro partido, de garrafas de cerveja, de vodka…”

É o que acontece no Jardim D. Luís, no Mercado da Ribeira. O parque infantil é um espaço seco, ponteado por beatas, caricas, copos de plástico e garrafas de vinho. Nas árvores, os sem-abrigo guardam as mantas e os pequenos pertences que usam de noite quando por ali dormem. E há seringas espalhadas pelo chão.

Noite dentro no Cais do Sodré, droga com fartura

E é quando cai o sol que tudo piora – como testemunhou esta reportagem da Mensagem que passou uma noite na zona entre as 21 e as quatro da manhã, e dormiu num apartamento da área.

A cada esquina da Rua de São Paulo e da Rua Nova do Carvalho grupos de homens vendem, deliberadamente e às claras, droga. Não se sabe se é mesmo droga ou o tal louro prensado que costuma ser oferecido aos turistas na Baixa. O que é certo é que os moradores já os conhecem e identificam. Logo às 21 horas, são sete, dos habituais.

Uma turista passa e um deles pergunta, em castelhano, se quer “coca”. A própria equipa de reportagem foi interpelada quatro vezes por homens de t-shirt branca ou polo cinzento, para a compra de “coca” e “haxixe”.

É às 11 da noite que a música explode e há um mar de gente, maioritariamente estrangeiros, nas ruas. Para fazer face ao ruído e à concentração de pessoas, a Junta de Freguesia decretou a partir de 1 de agosto o encerramento das esplanadas unicamente na Rua de São Paulo, a partir das 23 horas. Isto até foi cumprido, mas de pouco serve.

Na Praça de São Paulo, grupos espontâneos juntam-se com colunas para ouvirem música e dançar. No chão, um homem e uma mulher tocam guitarra, numa espécie de concerto improvisado, lado a lado com uma tenda onde dorme um sem-abrigo. No chão, o lixo que deixam é abundante.

Largo de São Paulo, noite dentro. A sujidade e barulho são visíveis.

E pela Rua de São Paulo os bares, agora sem esplanada, continuam a meter música de porta aberta. Os clientes concentram-se na rua – até porque os bares são por definição pequenos nesta zona. A única diferença é que estão em pé.

Toda a área do Cais do Sodré está abrangido pelo Plano Urbano do núcleo histórico da Bica e do Bairro Alto de 2014 que prevê a limitação de novos “estabelecimentos de bebidas” e “recintos de diversão”. Autorizada ficou a criação de pontos de “restauração”. Estava aberta a porta: estes bares começam por servir jantares e, mais tarde, transformam-se em autênticos espaços de dança – alguns até com dj.

“A restauração é apenas uma capa para abrirem”, explica Ana.

Um dos bares que não tem esplanada mas que põe música a tocar tão alto que se ouve na rua toda – mesmo depois das onze da noite.

Muitos recriam um ambiente de noite boémia proporcionado por luzes de néon, que se projetam nas casas dos moradores, nos prédios. “Há uma vizinha que tem problemas de visão e é obrigada a viver constantemente de janela fechada, porque tem imensa sensibilidade”, conta Ana.

O roteiro dos bares “abertos” para turistas

Quase a bater a meia noite, na Rua de São Paulo surge uma cena caricata: três “guias turísticos”, vestidos de amarelo florescente dos pés à cabeça, trazem chapéus de chuva que servem de guia para uma fila de dezenas de turistas, que os acompanham. Nos chapéus, denunciam a atividade: pub crawl.

O guia do Pub Crawl.

É um tipo de turismo que replica os chamados rally tascas e se destina a percorrer vários bares do Cais. Anuncia-se online como “uma noite em Lisboa para conhecer locais e turistas numa das mais animadas zonas noturnas da cidade”. E promete “uma hora de sangria e cerveja à descrição”, além de uma bebida grátis em cada bar visitado.

Não é preciso aproximar-se muito do bar que serve de próxima paragem ao grupo, para ouvir a música que lança. Uma das mais populares canções da cantora pop Rihanna diz no refrão: “Mister DJ, put the music on.” É isso que se faz, de facto.

O pub crawl já a meio da noite.

De portas abertas, a música ecoa até ao fim da rua. À frente do bar, alguns clientes juntam-se a beber e a dançar. “Em cima, mora um senhor mais velho”, comenta Ana. Este é mais um caso flagrante da violação da lei e da ausência de fiscalização.

O que dizem as regras da noite lisboeta

O Regulamento da Câmara Municipal dita que, a partir das 23 horas, o estabelecimento “com música ou aparelho emissor de som” deve garantir a “sonorização do espaço” e funcionar “com portas e janelas fechadas”. A violação das regras pode representar coimas que chegam aos 1500 euros para “pessoas singulares” e aos 15 mil para “pessoas coletivas”.

Mas não é isso que se vê e ouve no Cais do Sodré.

A situação é diferente em Santos, tradicionalmente uma zona de diversão noturna, no Largo Vitorino Damásio. Aqui não há música depois das 23 horas, embora exista concentração de pessoas e barulho na rua. E uma diferença: a maioria são portugueses, na casa dos vinte anos.

Mais à frente, nas discoteca, o barulho torna-se mais evidente quando as portas abrem. “Aqui é mais organizado”, diz Ana.

Maria diz que há diferenças nos grupos que frequentam a noite. “Na altura do Jamaica, vinham pessoas mais típicas da noite, que procuravam diversão. Hoje, há uma abertura do Cais do Sodré a tudo e todos. Tornou-se num sítio da moda e cosmopolita. Tudo se intensificou. Quem gere a cidade não acompanhou, é preciso mais recursos”.

Moradores em luta contra a ausência de polícias e fiscalização

O Aqui Mora Gente tem feito denúncias e queixas. “Do lado dos moradores, não há nada contra os comerciantes. Há sim, contra o modelo de negócio praticado”, diz um dos responsáveis. Foi isso que voltaram a dizer à CML, nas últimas semanas, mais precisamente a 5 de agosto.

O gabinete do vereador Ângelo Pereira, detentor das pastas do Ruído e da Segurança e Polícia Municipal, respondeu aos moradores dizendo que “não é simplesmente exequível” o cumprimento de “medidas de respeito pelo Regulamento do Ruído”. E mencionava-se os “custos políticos” de eventuais restrições e de mais “policiamento”.

Entretanto, no passado dia 18 de agosto, o vereador avançou com a criação de uma Linha de Ruído, que irá funcionar já a partir de setembro. Aberta 24 horas por dia, a linha servirá para a denúncia de casos de ruído excessivo. Os moradores desvalorizam: “Já existe o número da Polícia Municipal, posso ligar e fazer queixa. O que há de diferente?”

A ausência de fiscalização é um dos principais problemas. Na noite em que estivemos no local, por volta da meia noite, um carro da polícia municipal, com um único agente lá dentro, passou junto ao bar que acolhia os turistas do pub crawl.

Não parou.

Há uma esquadra móvel instalada na Praça do Duque da Terceira, composta por três polícias de segurança pública (PSP), dois da EPRI – que combate o excesso de velocidade em motas, dois da Polícia Municipal, mas da divisão de trânsito.

A esquadra móvel no Cais do Sodré, mesmo no meio da Praça. Visibilidade tem, mas não faz cumprir a lei do ruído.

Na noite em que nos acompanhou na reportagem, Ana decidiu interrogar os agentes sobre o funcionamento de uma discoteca das redondezas que, às duas da manhã, passa música de porta aberta. A resposta que obteve de um dos agente da PSP é que tal problema “é da competência da Polícia Municipal”.

Mas no Regulamento da CML sobre o Ruído, no artigo 15º, lê-se que a “a fiscalização do cumprimento das disposições compete aos serviços de fiscalização municipal” – entre eles “a Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Municipal de Lisboa”.

Várias vezes, vizinhos e comerciantes mais antigos, em reuniões, ponderam a hipótese de contratar guardas noturnos. “Há quem não concorde, dizem que pagamos impostos, não devíamos pagar a nossa proteção”, explica Manuel.

Lixo e preservativos à porta

Noite dentro, há mais um problema que se acumula: a falta de higiene e o lixo. Na pequena travessa junto à Rua do Alecrim, onde há vários prédios habitados, por exemplo, o cheiro torna-se insuportável. Nas falhas da calçada formam-se autênticas poças que misturam bebidas alcoólicas e urina.

“É a casa de banho pública”, diz um dos responsáveis do Aqui Mora Gente. Não é raro os habitantes destes prédios terem à porta dejetos humanos, preservativos, pensos higiénicos usados. E copos, claro, e garrafas. Mas isso já quase se toma por garantido.

Garrafas e copos é o mínimo que se pode encontrar em termos de lixo.

Entre as duas e as três da manhã, alguns bares da Rua Nova do Carvalho começam a encerrar, como dita a lei. Mas isso significa pouco: toda a gente se concentra no lado cor-de-rosa. Espontaneamente, um grupo de pessoas liga uma coluna gigante e forma-se uma espécie de pista de dança, com direito a coreografia.

Algumas discotecas continuam a funcionar e há uma fila gigante à porta da recém reaberta Pensão Amor.

Já às quatro da manhã, a UEP – a Unidade Especial de Polícia – chega. Houve uma rixa num dos estabelecimentos. Há sangue à porta, na calçada.

Instalados num apartamento no Cais do Sodré, na zona alta, mais afastada da Rua Cor de Rosa, que é o centro de animação madrugada dentro, conseguimos perceber o barulho que os vizinhos enfrentam, durante a noite.

No quarto, mesmo com isolamento, há sempre um ruído de fundo e tudo se torna insuportável mal se abre a porta ou a janela.

Este é o som dentro de uma casa que fica até relativamente afastada da noite – gravado às duas da manhã.

E no dia seguinte de manhã, por volta das nove horas, os vestígios da noite prolongam-se. O lixo acumulado nas valetas e na rua é o que fica de uma noite no Cais do Sodré.

E esta noite, garantem-nos, é só mais um episódio de uma história que parece não ter fim nem ninguém querer resolver.

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João Damião

João Damião

É aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias.

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4 Comentários

  1. Que nojeira! No sábado passado fui da Praça do Município até à Madragoa, a pé, ao fim da tarde, e só encontrei lixo, passeios todos sujos e mau cheiro ao longo do caminho. E a “noite” ainda não tinha começado… Que vergonha e que tristeza!

  2. Sem ser contra casos de sucesso e histórias de gente que se fixou e está muito feliz em Lisboa, este é o tipo de artigo que mais falta faz à mensagem, denunciar os problemas da cidade.
    Seria interessante levar a coisa mais longe:
    – saber quem são os proprietários dos estabelecimentos e que ligações podem haver com o executivo ou classe política.
    – pedir esclarecimentos oficiais às várias polícias do porquê de não intervirem. Aqui também é interessante saber quantos agentes estão a fazer um extra como segurança na zona.
    – convidar o sr. Moedas a vos acompanhar num passeio similar para saber da sua justiça.

    Poder determinar se a não resolução do problema é incompetência ou desprezo, é da maior importância e uma contribuição para a Democracia.

  3. Obrigada Jose. Na verdade é tudo importante. Saber como alguns resolvem os problemas e enaltecer quem faz bem e encontrar soluções para o que não está tão bem. O que falta neste artigo, até, do nosso ponto de vista é como resolver? Estamos a trabalhar nisso.

  4. Lembra-me muito a Lapa, zona boêmia do velho Rio de Janeiro, onde de sol a sol, todos os dias, há bebes, batuques e bamboleios.

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