“Obviamente demito-o”, ouviu-se no Café Chave D’Ouro, no Rossio, a 10 de maio de 1958. A frase foi pronunciada pelo General Humberto Delgado durante a sua campanha para as eleições presidenciais desse ano. Em conferência de imprensa realizada nesse café da Baixa de Lisboa, um jornalista perguntou-lhe o que faria a Salazar caso fosse eleito. A resposta não se fez esperar e o seu eco, apesar da censura, ressoou Europa fora. Seguir-se-iam meses de fogo na Política portuguesa, habituada às águas estagnadas da ditadura.

A escolha do local para o encontro com a imprensa nacional e estrangeira não foi ocasional. O Chave D’Ouro, que não por acaso encerraria pouco tempo depois, inscrevia-se há muito na tradição dos grandes cafés europeus enquanto centros de debate de ideias políticas, ideológicas, literárias, artísticas e, assim sendo, também berço de muitas conspirações, algumas com êxito, outras não.

Café Chave d’Ouro. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Basta recordar que foi do outro café do Rossio, o Gelo, que António Costa e Manuel Buiça saíram, a 1 de fevereiro de 1908, rumo ao Terreiro do Paço, para matar o rei D.Carlos e o príncipe herdeiro, D. Luís Filipe.

Cafeína e ideias: receita para a subversão

Na segunda metade do século XVII, o rei Carlos II de Inglaterra (esse mesmo, o que casou com Catarina de Bragança) já temia o efeito dos cafés de Londres quer na difusão de ideias subversivas, quer no negócio do chá, em que a Coroa tinha interesses, mas foi no século XVIII, em pleno Iluminismo, que o fenómeno se consolidou definitivamente.

Como escreve Georges Steiner no seu livro: “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa, frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos Cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter­-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa”

Nessa segunda metade do século XVIII, em que as ideias de Voltaire, Diderot ou Rousseau, saltavam fronteiras, com inesperada velocidade nesse tempo de carruagens e malapostas, foram surgindo, pois, os primeiros cafés europeus, dos quais alguns (naturalmente poucos) ainda existem. São os casos do Antico Caffè Greco, em Roma (fundado em 1760 e situado na hoje muito elegante Via Condotti), do Café Florian, em Veneza, fundado em 1720 por Floriano Francesconi em plena Praça de São Marcos e do ainda mais antigo Café Tomaselli, em Salzburgo. Criado em 1703, tem, desde sempre, uma clientela em grande parte composta por músicos, mas o destaque vai naturalmente para Wolfang Amadeus Mozart.

Esta moda chegou rapidamente a Lisboa, para inquietação das autoridades que nele viram rapidamente o alcance subversivo. O Martinho da Arcada (fundado em 1782) e o primeiro Nicola eram constantemente vigiados pelos homens às ordens do Intendente-Geral, Pina Manique.

Mas o mote estava dado: o século XIX marcaria o triunfo dos grandes cafés na geografia urbana europeia, fazendo deles um símbolo de cosmopolitismo e requinte. Bom conhecedor dessa realidade, Eça de Queirós pôs o seu Artur Curvelo (personagem de A Capital), acabado de chegar de Oliveira de Azeméis em adoração perante o hoje desaparecido café Martinho (do Largo D João da Câmara, junto ao Teatro Nacional Dona Maria II). Para ele, este local, com os seus largos espelhos venezianos, lustres e um reservado onde as senhoras, que não frequentavam cafés, podiam recatadamente tomar “neve” (os primeiros sorvetes) , representava tudo o que havia de desejável na grande cidade.

Café de Flore, em Paris.

Assim foram surgindo o Café Central em Viena (fundado em 1860, ainda hoje existe, e foi pouso certo de homens como Freud, Trostsky e…Hitler), o Gerbeaud, em Budapeste (surgiu em 1858 e era frequentemente visitado pela Imperatriz Sissi, que tinha uma predileção especial pela parte húngara do seu Império), os parisienses Café de Flore, Café de la Paix ou Les Deus Magots (preferido por Oscar Wilde quando se radicou na cidade) o Els 4 Gats, de Barcelona, o Gijón ou o Parnasillo de Madrid, todos eles “mais importantes para a História da Literatura e das Artes do que duas ou três academias”, nas palavras do dramaturgo espanhol Valle Inclán. Com os europeus, a “cultura de café” chegaria a outros continentes, nomeadamente às grandes cidades da Índia ou de África. Em Luanda e Lourenço Marques, por exemplo, eles eram parte essencial da vida urbana.

Portugal não foge à regra dos cafés

Em Portugal, os regimes sucedem-se (à monarquia constitucional sucederá a Iª República, a esta a ditadura e, finalmente, a Democracia) e os cafés das grandes – e até os das pequenas cidades- serão o observatório privilegiado do que acontece na grande e pequena política e, claro, nos costumes locais.

Como a Segunda Guerra Mundial, que trará aos cafés de Lisboa uma maré de novos circunstantes, como escreve Alves Redol no livro O Cavalo Espantado: “O relógio do Carmo insinuava as horas. Foi então, aí por volta de 1939, que do outro lado da praça, e a pedido dos estrangeiros sem sol para os aquecer na vida, se puseram cadeiras no passeio (…) E as estrangeiras sentaram-se por ali , a ler e a conversar, matando o tempo de ansiedade naquele trampolim que tanto poderia levá-las mais depressa ao lar abandonadas, como atirá-las ali para o exílio em terras americanas (…) Ficou ali uma montra de pernas e de coxas para todas as gulas lisboetas, às escâncaras, sem pudores recalcados.”

No Porto nascem cafés históricos como o Majestic, Brasileira, Guarany ou Piolho, em Coimbra aparece o Santa Cruz, até mesmo em Vila Franca de Xira aparecerá o República que inspirará a Álvaro Guerra (ali nascido) a trilogia de romances Café República, Café Central e Café 25 de Abril. Em Lisboa, à data da implantação da República, os cafés vivem a sua idade de ouro.

A Brasileira do Chiado (assim designada porque havia então outra Brasileira no Rossio) abriu portas em 1905 e rapidamente se tornou pouso quotidiano de políticos, jornalistas, escritores, artistas plásticos. Como seria de esperar, por vezes a conversa azedava e, nesse tempo em que mesmo os cavalheiros mais sãos, gostavam de se passear de bengala, chegava-se a vias de facto com duelos de bengalada. Assim nasceu o famoso “Fado do 31” (letra de Pereira Coelho e música de Alves Coelho em que se cantava: “Á porta da Brasileira/Dois tipos encontram dois/Juntam-se os quatro e depois/Lá começa a cavaqueira/Agrava-se a chinfrineira/Vai aumentando o zum-zum/Vem bomba, rebenta, pum/Depois mais tarde vereis/24, 26, 29 e 31”.

A Brasileira (fotos acima) não estava sozinha nesta geografia da subversão. Do Chiado e Baixa às Avenidas Novas não faltavam espaços como estes, em que no mármore das mesas, se sonhava mudar o país e até o mundo. O Gelo, no Rossio, sabia-se, era o café da tertúlia surrealista frequentada por homens como Mário Cesariny de Vasconcelos, Ernesto Sampaio, Herberto Helder, Luiz Pacheco ou António Barahona, que escreverá a propósito o poema “Memória do Café Gelo”: “Mesas de mármore, cadeiras sépia;/eis um café à beira do abismo:/conversas incendidas, sismo a sismo,/no desabar da época”.

Mas há que falar também do Monte Carlo, que ficava na Avenida Fontes Pereira de Melo, junto ao Saldanha, com a sua tabacaria muito bem fornecida do que de melhor se publicava no país e no estrangeiro ou dos ainda abertos Nicola, Império ou Vá-Vá.

Mulher não entra no café

A partilha de ideias (ainda que vigiada pelo regime), proporcionada pela frequência de lugares como estes, estava, no entanto, incompleta. Lisboa e o Porto não eram Paris e a sua rive gauche, onde mulheres como Simone de Beauvoir e Juliette Grèco participavam livremente nas tertúlias centradas no Café de Flore ou Les Deux Magots. Durante muitos anos, as únicas mulheres sentadas na Brasileira do Chiado eram as representadas no quadro de Almada Negreiros, Auto-Retrato num Grupo (em que aparecem as atrizes Júlia de Aguilar e Aurora Gil). Beatriz Costa foi das poucas que se sentou naquelas mesas.

Na Brasileira ou em qualquer outro café de Lisboa. Só o 25 de Abril, com a conquista do espaço público pelo sexo feminino, democratizaria realmente a cultura do café em Portugal.


Maria João Martins

Nasceu em Vila Franca de Xira há 53 anos mas cresceu na Baixa de Lisboa, entre lojas históricas e pregões tradicionais. A meio da licenciatura em História, foi trabalhar para um vespertino chamado Diário de Lisboa e tomou o gosto à escrita sobre a cidade, que nunca mais largou seja em jornais, livros ou programas de rádio.

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6 Comentários

  1. Parabéns! Bonito texto. De alguns, saudades muitas.

  2. Obrigado por chamar à conversa, as conversas e os sítios de outros tempos; ontem como hoje, as ideias precisam de espaço para arejar e/ou serem plasmadas.

  3. Teria sido de bem identificar três grandiosos actores do teatro e cinema portugueses, na foto que passo a indentificar:
    Entre o senhor de chapéu e o “empregado” com a bandeja na mão o actor Senhor António Silva. Com a bandeja na mão, outro Senhor, o actor João Silva. E à sua direita (na foto) outro grande actor, o Senhor Estevão Amarante.

  4. Saudades de frequentar estes cafés
    Já não é nada assim.

  5. Bom artigo. Seria interessante ver um que explorasse a história da relação entre mulheres e cafés (ou espaços alternativos) na sociedade portuguesa. A sua ausência ou a preferência por espaços alternativos em certas eras também dizem uma história.

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