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Teresa Oliveira, da Direção Geral de Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão em Bruxelas, surpreende o grupo da Cova da Moura ao saber o rap que eles criaram sobre a Europa.

“Fomos de Angola para Portugal e lembro-me do frio que fazia e de a minha mãe ter agarrado na manta da TAP para me aconchegar quando chegamos. Vivi na Rinchoa (Sintra) e um miúdo como eu não acreditava, nem sonhava, que poderia chegar aqui, à Comissão Europeia, à Europa.” Luís Amorim foi um dos primeiros embates com a realidade que o grupo de jovens da Cova da Moura teve no centro de visitas da Comissão Europeia, em Bruxelas, fazendo prova de que, afinal, também os que crescem em contextos difíceis, tantas vezes marginalizados – como o bairro deles na Amadora -, podem fazer-se ouvir nas grandes instituições.

Mais do que serem ouvidos, ajudar a decidir o futuro da Europa: Luís integra hoje o EPSO – Serviço Europeu de Seleção de Pessoal, unidade que gere as contratações nas instituições e agências europeias.

A incredulidade repete-se com João Silveira, o português que é hoje conselheiro de Roberta Metsola, presidente do Parlamento Europeu. Ele vindo de Idanha-a-Nova, confesso desconhecedor do poder da Europa até à adolescência e que quando visita a aldeia ainda ouve os amigos brincarem com a ideia deste homem de fato, outrora um menino de roupa mais descontraída, ao lado de grandes personalidades políticas.

Heidir, Jacinto, Carlos, Ricardo, Siças e Eddy, todos vindos da Cova Moura (e acompanhados por Joca, um brasileiro imigrado em Lisboa, disposto a registar tudo em vídeo) também acreditaram que poderiam ser ouvidos pela Europa e, por isso, fizeram uma música que chegasse até Bruxelas, sobre a forma como se sentem tantas vezes postos à parte da agenda política do país e da Europa. Quer seja pela morada que têm, quer seja pela cor de pele, ou até mesmo pela nacionalidade negada a quem nasce em Portugal – mas sobre isto eles aguardaram o momento certo para falar.

A visita a Bruxelas, Bélgica, concretizou-se no final de abril, a convite da Comissão Europeia em Portugal, para conhecer instituições europeias, entre as quais o Parlamento Europeu.

Lá, chegaram eles e chegou a mensagem deles também: não tardou até perceberem que a música que tinham produzido no estúdio comunitário do bairro, o Kova M Studio, financiado pela associação Moinho da Juventude, já andava a ser ouvida no centro da Europa.

A mesma Europa que é celebrada oficialmente esta terça-feira, dia 9 de maio.

YouTube video

Um rap e um bilhete para viajar

A viagem começou em setembro do ano passado, numa parceria entre a Mensagem, o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia, quando a representante desta última instituição em Portugal, Sofia Moreira de Sousa, visitou o estúdio da Cova da Moura, para lançar um desafio a um grupo de jovens: criar um rap sobre o que pensam da Europa. E em crioulo.

Era a primeira vez que a União Europeia marcava presença oficial neste território.

Como mote tinham o Dia Europeu das Línguas (que se celebra todos os anos a 26 de setembro). O repto foi motivado pela vontade da instituição em olhar as outras línguas, as que não são consideradas as 24 oficiais da União Europeia mas que têm há várias décadas uma impressão digital neste continente.

Como os vários crioulos. Tão falados em Lisboa, que fazem dela a mais crioula das cidades europeias – há cerca de 14 mil guineenses e 25 mil cabo-verdianos na zona de Lisboa (e estes dados não contam com os seus descendentes).

A música foi lançada oficialmente pela primeira vez no Festival Iminente, ainda no ano passado. Fala da Europa que estes jovens veem daqui: os movimentos migratórios, o sentido de pertença, a guerra, os refugiados dela e a exclusão. E ficou prometido pela Comissão Europeia em Portugal levá-los a Bruxelas – a eles e à música.

Vídeo: Inês Leote

Ouça aqui a música completa produzida pelo Kova M Studio:


♪ Desejo uma Europa mais tolerante
Uma lição de empatia em Bruxelas

À mesa de um restaurante italiano em Bruxelas, o grupo está sentado com Telmo Baltazar, conselheiro da Direção-Geral de Comunicação da Comissão Europeia, um português com uma carreira nas mais altas instituições da Europa e que logo quebra um estigma: o fato preto e o currículo que enverga em nada impedem que não seja um seguidor de rap. Muito pelo contrário.

Telmo Baltazar traz para a mesa a curiosidade sobre como é que este grupo produz as músicas – que programa, em que estúdio, quanto tempo demora. E tem cromos para a troca: fala da rivalidade entre dois rappers em Londres e como isso se está a permear nos bairros, também eles tornados rivais. Os rapazes sabem do que fala o conselheiro e até dizem que há casos semelhantes em Lisboa.

Heidir Correia, do grupo da Cova da Moura e o responsável pelo estúdio do bairro, procura em Telmo a resposta a várias dúvidas que tem sobre a Europa. Faz a comparação natural com os EUA, enquanto união de estados: curioso, pergunta se não há mais união por lá, se isso até nem ajuda a que a economia seja mais harmoniosa entre todos os estados. E Telmo alerta que o salário mínimo é igual para todos, mas tendencialmente mais baixo do que muitos daqueles que vemos pela Europa.

A vida que se leva neste continente é genericamente boa, mas muito díspar ainda: nada como a luz de Portugal, diz o conselheiro, mas de Bruxelas a Paris são os mesmos quilómetros que de Porto a Lisboa e entre os dois primeiros demoramos apenas uma hora de comboio – o que promove uma vida económica e residencial mais saudável entre as cidades (e países) -, enquanto entre os segundos demoramos três horas.

“Mas também vos digo: se não fosse a União Europeia, vocês não teriam isto, não fariam música como fazem hoje.”

Foi no estúdio de música da Cova da Moura que a música nasceu para estes jovens, depois de desafiados “a tirar o maior número de jovens das ruas”, conta Heidir Correia, pelo Programa Escolhas – uma iniciativa governamental de âmbito nacional criada em 2001 (e cujo grupo de jovens dinamizadores comunitários de outros bairros do país também estiveram presentes nesta viagem a Bruxelas). Um lugar agora chamado Kova M Estúdio, criado para institucionalizar o gosto pela música que aqui, um dos berços do rap e hip-hop, se faz forte. E para impulsionar os sonhos de jovens do bairro que nasceram com a vontade de intervir no mundo através das suas letras. Também por isso foi ponto de passagem para o ministro da Cultura, recentemente.

O grupo de rappers mostra o estúdio Kova M. Foto: Inês Leote

Foi com as próprias mãos e o financiamento de alguns benfeitores – anónimos -, que um grupo de jovens da Cova da Moura ergueu o cimento deste espaço de encontro da juventude no bairro, em 2007.

“Fizemos uma pausa só para tirar aquela fotografia e voltámos ao trabalho”, contou esta história Heidir, apontando para a parede do fundo, onde uma fotografia a preto e branco lembra esses dias de construção deste novo lugar.

E quando Telmo Baltazar lhes disse que sem uma UE não estariam a fazer o que fazem hoje, falava de como a adesão de países a esta instituição que é a UE abriu fronteiras, trouxe liberdades, até na música. Confidencia até que, pela altura de debater a lei sobre os direitos de autor, numa reunião com o manager da mítica banda U2, teve a ousadia de lhe dizer que não acreditava que eles fossem milionário sem a União Europeia.

Nem eles, nem Cristiano Ronaldo. “Poderia ser mais um Eusébio, uma lenda que nunca saiu de casa. O futebol também se abriu muito com a União Europeia.”

No centro de visitas da Comissão Europeia, o grupo teve a oportunidade de ouvir falar de uma União Europeia imperfeita, mas que tem feito por funcionar. “Falta mais tolerância”, alertar Heidir. “Estamos a trabalhar para isso”, responde Luísa Rodrigues, membro da Unidade Plataformas, Estudos e Análises, na Agência Executiva de Educação.

E a tolerância, a empatia perante a diferença, aconteceu nesta sala, onde o grupo da Amadora se reuniu com portugueses a trabalhar nas instituições europeias. Não estavam ali só para descobrir que até na qualidade do frango que comemos importa falar de política europeia (para o controlo alimentar), nem só como o grupo de extrema-direita europeu está proibido de assumir de presidência do Conselho da UE (exercida em regime rotativo pelos Estados-Membros durante seis meses). Mesmo perante temas mais polémicos e que criaram divisões dentro da sala, como a vacinação para a covid-19 ou como a Europa está a gerir a imigração, a resposta dos oradores portugueses ali presentes para representar a União Europeia foi sempre a mesma: tolerância.

“Aqui, digo que é mais ou menos como às vezes é a relação entre pais e filhos: não concordo, mas respeito”, resumiu Teresa Oliveira, da Direção Geral de Emprego, Assuntos Sociais e Inclusão em Bruxelas.

Ela, como outros, que os recebeu com o rap deles na ponta da língua. E que conhecia bem a Cova da Moura.

E se alguma vez o grupo pensou que o bairro deles era um ponto de exceção, a viagem até Molenbeek-Saint-Jean, a alguns quilómetros do centro de Bruxelas, fê-los ver que não: num bairro marginalizado, nasceu uma associação de emancipação de jovens com o projeto D’Broej, onde também se deu um estúdio de música à comunidade. Rudy é “o pai” desta mesma comunidade, assim lhe chamam.


♪ Eu quero uma Europa mais livre ♪
Os que ficam porque a lei não permite voar

Chegados ao aeroporto de Lisboa, prontos a partir para Bruxelas, a conta estava certa, mas os rostos não eram os mesmos entre o grupo de rappers da Cova da Moura que sabíamos terem criado o rap: faltavam Pascoal e Hélio – substituídos por dois outros jovens ligados ao estúdio e a quem foi dada esta oportunidade de viajar.

Porquê? Já sabíamos a resposta, porque falámos do problema há alguns meses, numa reportagem publicada na Mensagem que até fez com que o assunto chegasse à Assembleia da República, no início deste ano: é que Hélio e Pascoal fazem parte de um grupo de vários portugueses a quem nunca foi dada a nacionalidade, o que os incapacita para a vida inteira – não podem fazer exames nacionais na escola, chegar à universidade, ter um contrato de trabalho, comprar uma casa, sair do país sem o receio de não saber se são autorizados a voltar.

Heidir aproveitou todas as oportunidades para falar como a lei da nacionalidade de 1981 deixou tantos sem acesso a ela, no bairro. Foto: @joca24k

Por ser um dos maiores motivos de impotência de quem mora no bairro deles, o grupo marcou o tema no rap e em todas as oportunidades que teve para falar em Bruxelas. Responderam-lhes que sabiam o que se passava, que é uma lei portuguesa e não europeia, mas que importava que não se calassem sobre o assunto até conquistarem uma qualquer mudança.

Porque, como disse Alexandra Sá Carvalho, vice-chefe na Direção-Geral de Migrações e Assuntos Internos, “os nossos direitos, no país e na UE, não são garantidos” e, por isso, importa que os jovens, estes e tantos outros, que desejam condições de vida mais dignas para todos não desistam da política.

Ouça esta reportagem no podcast Mensagem Rádio, uma parceria com a RDP África:

Uma parceria com:

A Mensagem de Lisboa ganhou em 2022 o prémio de jornalismo europeu de Diversidade e Inclusão pelo projeto de jornalismo nas línguas crioulas de Cabo Verde e Guiné Bissau.
O projeto foi apadrinhado pelo músico Dino D’Santiago e a sua organização Lisboa Criola e realizado por Karyna Gomes, jornalista nascida na Guiné e com origens em Cabo Verde – que escolhe uma das duas línguas de acordo com o tema.
E teve o apoio de uma bolsa do projeto europeu NewsSpectrum para jornalismo em línguas minoritárias.


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Catarina Reis

Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.

catarina.reis@amensagem.pt

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