Quem passa todos os dias pela estação de metro Parque, perto do Marquês de Pombal, não faz ideia de que os azulejos que o decoram contam a história de uma presença africana em Lisboa e no Alentejo que data de muitos séculos atrás e está na raiz cultural de muito daquilo que hoje consideramos nosso. E, ao contrário do que se possa pensar, esta presença africana está bem contada, embora escondida. Era assim, até que surgiu o projeto da Associação Cultural e Juvenil Batoto Yetu, já com um quarto de século de existência.
Quem conta a história é Djuzé (também conhecido como Lino Neves), um dos responsáveis da associação cujo nome significa “nossas crianças” em Suaíli. Djuzé é português da “ilha di lisboa”, como costuma dizer em jeito de brincadeira, num crioulo de Santiago, ilha de onde vieram os pais, um casal cabo-verdiano que escolhera Lisboa para viver há muitos anos.


Sem perder o entusiasmo no tom, conta cada detalhe e, ali, lê-se o orgulho de um filho de africanos que exulta por aquilo que os seus antepassados contribuíram para a sua cidade e não só.
É Djuzé quem costuma guiar os mais curiosos (tantos americanos e brasileiros), aos sábados de manhã, num roteiro por esta Lisboa africana, orientado pela Batoto Yetu.
Uma visita à Lisboa da “Preta Fernanda” e da muamba de ginguba
É uma da tarde, todos mostram estar com fome e nem estávamos perto de ir à Travessa do Poço dos Negros comer a cachupa prevista para o fim do itinerário que nos calhou nesse dia – um dos muitos do projeto. Mas, com atenção, escuta-se a voz do guia que nos conduzia pela cidade depois do primeiro passeio de tuc-tuc.



A primeira paragem foi em frente ao edifício da Faculdade de Ciências Médicas, no Campus dos Mártires da Pátria. Nas mãos de Djuzé, jaz um roteiro inspirado no “fado dançado” e mais histórias e nomes na sua voz. Primeiro, o da Fernanda do Vale (ou “Preta Fernanda”), mestiça nascida em Cabo Verde nos finais do século XIX que viveu em Portugal até 1927, figura incontornável da sociedade lisboeta no seu tempo. A “Preta Fernanda” tornou-se um símbolo da emancipação de mulheres negras, uma das fortes e representativas personagens desta Lisboa africana que nos contaram.
A seguir, o doutor Sousa Martins, médico cirurgião renomado para muitos um “santo” ao qual se fazem votos – como se constata na sua estátua, erguida no local onde placas de mármore e centenas de pedidos são depositados.
No caminho para a segunda paragem, uma queniana que fazia parte do grupo, companheira de um dos turistas a viver em Lisboa há cerca de seis meses, diz orgulhosamente que a língua oficial da sua terra é primeiramente o Suaíli e, depois, o inglês. Zara não fazia ideia do quão importante foram os africanos no passado nesta cidade e a conversa fluiu para esta reflexão: em Lisboa, a segunda língua mais falada será o crioulo, ou os crioulos, mas estas não são línguas oficiais nem na Guiné-Bissau nem de Cabo-Verde. “Vocês têm de trabalhar nisso! No Quénia levamos isso a sério, lutamos e Suaíli é oficial”, rematou.
Já na Mouraria, caminhamos para conhecer o berço do fado – que, além de cantado, era dançado. Tem fortes raízes africanas e vinha da rua.
A última paragem foi em Santos, na Travessa do Poços dos Negros, já para matar a maldita fome e a curiosidade de provar algo diferente para a maior parte dos turistas. O restaurante propunha sabores africanos oriundos de Cabo Verde, Angola e Guiné-Bissau, sobretudo cachupa e muamba de ginguba (guisado de carne com molho de amendoim e quiabos), além da famosa cafriela.
A História que já não fica por contar
Aproveitamos a partilha de sabores em colheradas para conversar com o Djuzé, que nos contou apaixonado sobre as visitas guiadas e os vários projetos que desenvolvem. “A Batoto Yetu já faz esse trabalho há um tempo”. Tudo porque conseguiram financiamento, inicialmente, da Câmara Municipal de Oeiras, do Alto Comissariado para as Migrações e, atualmente, da Secretária de Estado da Igualdade e Migrações.
“Temos múmias de pessoas negras em Portugal, das várias migrações que passaram por cá e, mais recentemente, com as pessoas escravizadas. Quanto mais soubermos que somos parte desta história, mais nos enriquece a todos.”
Djuzé, Batoto Yetu
Lá surgiu a ideia de visitas guiadas por vários itinerários que mostram a história da presença africana em Portugal, desde antes do século XIV ao período da escravatura. Mas o projeto da Batoto Yetu começou antes, pelo trabalho artístico sobre as origens africanas do fado na região do Congo e no Norte de África.
“Sabemos que o fado é lisboeta, mas Lisboa tinha essa componente de vários outros povos e é daí que nasce este produto cultural. A fazer isso, acabamos por tomar conhecimento de que estas coisas já existiam. Não tínhamos este conhecimento e passamos a ter através de académicos. Vimos que faria todo o sentido fazer visitas guiadas por estes espaços em Lisboa, em Loures no vale do Sado sobre esta questão da presença negra em Portugal.”
Djuzé, Batoto Yetu
Isabel Castro Henriques, consultora técnica do projeto, diz que “esta presença africana possui uma relevância por ser uma das mais antigas, mais consistente e a mais duradoura até aos dias de hoje”. Atualmente, há pessoas que visitam o largo de São Domingos como os seus ancestrais faziam, mas esta presença continua na gastronomia, nos pratos como o cozido à portuguesa, e até na dança, na literatura, na medicina e nos conhecimentos científicos dos quais não se ouve falar tanto.

Isto Djuzé não aprendeu na escola, ele que nasceu na “ilha de Lisboa”. “Alegra-me saber que há sempre um bocadinho de nós nesta história”, confessa.
Confrontado com os desafios que tem pela frente nesta que é uma das suas missões de vida, Djuzé diz que “trabalhar na área das artes não é fácil para ninguém, sendo as tradicionais africanas em Portugal onde sentimos ainda mais tais dificuldades”. “Falta-nos apoios específicos que nos permitam criar produtos com qualidade, quer sejam artísticos quer sejam históricos, para que não trabalhemos a um nível mais amador.”
Lembra que a escola já criou produtos de qualidade que poderiam ser replicados por outras entidades, associações e pela sociedade civil, e “isso já é um valor”, segundo o Djuzé. Ele que diz ter aprendido muito com todos os griôts (assim são chamados os contadores de histórias em África) e que agora pretende repassar o testemunho da maneira mais profissional e consistente.
“Neste passado estão as soluções que precisamos para o futuro e há que vencer estes estigmas sociais que recaem sobretudo sobre africanos escravizados.”
A memória, agora digital, africana
A associação Batoto Yetu criou recentemente a Digital African Memory (Memória Digital Africana), onde disponibilizam vários documentos sobre a história de África que o grande público desconhece. São materiais disponíveis para estudantes universitários ou investigadores.
Neste projeto “vimos que uma coisa puxou a outra, as danças levaram-nos ao ‘fado dançado’, o ‘fado dançado’ levou-nos às tours e as tours trouxeram-nos à memória digital. E, no fundo, também é muito reduzida a história africana no mundo digital. Daqui a uns anos, se calhar o histórico dos povos far-se-á pela informação digital e há uma necessidade de a termos”, explica Djuzé.
A plataforma digital visa disponibilizar estas histórias, para que todos possam ter acesso, estudar e recriar artisticamente, tecnicamente e criar até, a partir daqui, mais trabalhos. Ou mesmo deixar uma marca na educação daqui para a frente. “A ideia de ter uma biblioteca digital é para – quem sabe – no futuro ser algo que possa vir a ser utilizado nas escolas como uma ferramenta suplementar aos estudos, conhecer o outro e a nós próprios melhor, para não criar barreiras, recuperar autoestima, força e também abrir a perspetiva para outras áreas – como, por exemplo, ter mais arqueólogos africanos.”
Djuzé lembra que, quando as pessoas são transportadas de um sítio para o outro, não chegam vazias. Diz que “somos avatares cheios de conhecimento científico”, brinca.
Daquilo que o projeto tem trazido, há uma conclusão comum: apesar de Portugal ser geograficamente pequeno, esta é uma história mundial, porque a narrativa da diáspora africana passa muito por aquilo que aconteceu aqui. E tem havido muito interesse por parte dos norte-americanos e brasileiros em conhecê-la melhor.
Mas o maior desafio agora, diz o responsável da associação, é ver o mesmo interesse na população local, incluindo a comunidade afrodescendente. A comunidade negra, para os que trabalham na Batoto Yetu, devia ser a primeira a saber sobre estas informações, mas a condição de vida da maioria não permite reservar espaço na vida para estes interesses.
O lugar onde também se criam boias de salvação para a comunidade
Seguimos até uma das sedes da associação, em Caxias, dias depois de fazermos a visita guiada. E descobrimos que, já com um quarto de século de existência, esta organização inicialmente focada só na arte da dança, hoje tornou-se numa importante casa de apoio para os cidadãos migrantes e desfavorecidos.





Lá estava à nossa espera Graciete, técnica com competência para dar orientações a quem precisa. Tímida, só quis contar-nos a história que a cruza com a da associação. De origem cabo-verdiana, Graciete trabalha no gabinete de inserção de migrantes financiado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) de Cascais e pelo Alto Comissariado para as Migrações, e é neste lugar que recebe dezenas de pessoas por mês a quem presta apoio.
Aqui, fazem sessões de esclarecimento jurídico para quem tem problemas relativos a legalização junto ao SEF, mas também se fala de direitos do consumidor migrante, serviços bancários, e há até um centro de apoio ao estudo para os mais novos. As aulas de dança foram interrompidas por conta da pandemia, ainda à espera de serem retomadas.
Para Graciete, “são fundamentais as sessões com advogados, porque a lei muda constantemente e há poucas instituições a dar esse tipo de apoio”.
Somos interrompidos por alguém que bate a porta. “Olá, Nuno! Tudo bem?”
A técnica da associação já nos tinha mostrado os escritórios quando chegámos e, num deles encontramos Cécile, uma jovem francesa que trabalha como estagiária pelo programa Erasmus na gestão de eventos culturais e na parte administrativa. É quem abordamos, assim que Graciete teve de travar a nossa conversa para ir ter com um tal de Nuno.

“Trabalhar nesta associação é muito bom para continuar a trabalhar no domínio da cultura, como já tinha feito durante dois anos em França. A diversidade enriquece-nos a todos, lido com as diferentes línguas. É uma partilha de experiências enorme quando organizamos espetáculos. E toda essa diversidade linguística, para mim que não falo português, só inglês e espanhol, além da minha língua materna, é bastante enriquecedor” disse-nos Cécile. Ela que já sonha, no futuro, “quem sabe”, em “poder levar estes artistas para atuarem em frança”.
Há uma aula de inglês semanal dada por uma professora voluntária que Cécile também ajuda a organizar com materiais de apoio que recebe da professora Flora e que imprime semanalmente para distribuir nas aulas. O projeto era voltado para o ensino da língua inglesa para crianças, mas mudou por causa da grande procura. Para a professora Flora, “este projeto é fantástico porque ajuda pessoas a desenvolver o seu inglês para entrarem no mercado de trabalho”, nem sempre uma tarefa fácil para um imigrante.
Voltámos à sala onde Graciete fala como Nuno. Resolve também ele contar a sua experiência. “Vim tentar arranjar trabalho e, para além de todas as informações relativas aos procedimentos, também nos dão apoio moral. Acho que esta associação nos ajuda na integração social e a estar aptos para os desafios que temos pela frente.”


Contam-se muitos Nunos por aí.
O que a Batoto Yetu prova hoje é que estas histórias – de gente que escolheu Lisboa para viver; ou que nasceram cá, mas têm pais ou avós migrantes – resultam desta presença constante de outros povos num destino que há séculos é a porta de entrada para o mundo todo. Um lugar sobre o qual ainda há muito para contar e registar.

Karyna Gomes
É a jornalista responsável pelo projeto de jornalismo crioulo na Mensagem, no âmbito do projeto Newspectrum – em parceria com o site Lisboa Criola de Dino D’Santiago. Além de jornalista é cantora, guineense de mãe cabo-verdiana, e escolheu Lisboa para viver desde 2011. Estudou jornalismo no Brasil, e trabalhou na RTP, rádios locais na Guiné-Bissau, foi correspondente de do Jornal “A Semana” de Cabo verde e Associated Press, e trabalhou no mundo das ONG na Unicef e SNV.

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