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A processar…
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A entrevista segue à volta de uma mesa diante de uma casa de parede azul e porta vermelha. Lá pelas tantas, o carteiro toca a campainha do número à frente e Gaspar, de 19 anos, um dos dois entrevistados, parte em auxílio ao funcionário. “Não tem ninguém aí!”, avisa, para em seguida sugerir: “ Pode deixar cá, que eu entrego.” 

Habituado à rotina cordial entre os vizinhos, o carteiro deixa a encomenda, tranquilo. “Aqui, todos se dão bem”, justifica, antes de partir. Também sentado à mesa, o irmão mais velho de Gaspar, Sebastião, corrobora a impressão do bom homem do CTT. “A cena mais gira daqui é estarmos numa aldeia no centro de Lisboa”, diz. Assim é a Rua Joaquina, em Lisboa.

Sebastião sabe do que fala.

Os irmãos trazem as memórias vividas na rua Joaquina para as composições da banda Expresso Transatlântico. Foto: Carlos Menezes.

A rua Joaquina é uma pequena via com entrada pela Vila Serra Fernandes, uma velha vila com cerca de 50 metros de extensão, onde 12 casas de paredes e portas coloridas enfileiram-se em direção a um miradouro privado, um oásis de paz no coração de Lisboa, no bairro da Pena, freguesia de Arroios, incólume ao frenesim do Martim Moniz e do Campo de Mártires da Pátria.

Foi nessa Lisboa esquecida no tempo onde os irmãos Gaspar Varela e Sebastião Varela tiveram o privilégio de passar a infância e a adolescência. Uma experiência que carregam até hoje, respetivamente aos 19 e 25 anos, e transportam para o trabalho musical que fazem na banda Expresso Transatlântico, fundada no ano passado.

A arte é assunto de família: são filhos do cineasta Diogo Varela Silva e bisnetos de Celeste Rodrigues (irmã de Amália Rodrigues, e também ela um ícone do fado em Portugal). E ambos seguiram os passos dos familiares na cultura. Na banda, Sebastião é o responsável pela guitarra elétrica, enquanto o irmão empunha a guitarra portuguesa. Gaspar, aliás, é visto como um prodígio no instrumento, que começou a tocar aos sete anos para acompanhar a bisavó. Tem participação em três álbuns e, em 2019, com apenas 15 anos, foi convidado por Madonna para integrar a turnê dela – Madame X.

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Gaspar Varela, no seu 9.º aniversário, na guitarra portuguesa, observado pela bisavó Celeste Rodrigues.

A banda que integram hoje é composta ainda pelo baterista Rafael Matos e frequentemente conta com a participação de outros músicos. O mais recente desses “passageiros” é Conan Osíris, que no dia 7 de maio vai acompanhar o trio num concerto na sala Luís Miguel Cintra do Teatro São Luiz, às 21 horas, parte da programação do Festival Lisboa 5 L.

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Veja aqui a restante programação do Festival Lisboa 5L, do qual a Mensagem é media partner, que acontece entre os dias 4 e 7 de maio – iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa

Uma vila que inspira

Confidenciam que toda a obra traz um pouco daquela infância na vila operária onde Gaspar e o pai ainda vivem.

“Esta rua teve um impacto gigante nas pessoas que hoje somos e é natural que, se o nosso trabalho reflete parte de quem somos, o Expresso Transatlântico seja também um reflexo da rua Joaquina”, explica Sebastião.

Foi ao buscar o filho no infantário ao pé da vila, 18 anos atrás, que Diogo Varela Silva viu a placa de “vende-se” pendurada em frente à porta. “Fazia tempo que observava o sítio e, naquele dia, não tive dúvidas. Fui lá ter com o dono da casa.”

Após meia-hora de conversa, o cineasta já rasgava o anúncio de “vende-se” à porta, para o desespero do corretor que testemunhava a negociação. “Mas se o banco não lhe der o dinheiro?”, questionou, diante do cartaz partido ao meio. “Daí, compro-te uma placa de vende-se nova”, respondeu o cineasta.

Mas a placa nova nunca foi necessária.

Ao contrário do irmão, Sebastião recentemente mudou-se para viver com a namorada, nas imediações do Largo da Luz. Não esconde, porém, o desejo de voltar a morar na rua onde passou boa parte da vida. “Mas só se as rendas baixarem”, ressalta, cético, o músico, que assim como o pai, também enveredou pelo cinema.

Bairrismo (quase) intocável

É Sebastião quem assina a realização dos conceituais clips da Expresso Transatlântico, todos com uma inconfundível pegada cinematográfica, curiosamente invertendo o tradicional conceito audiovisual de um filme ter uma banda sonora, quando aqui o que acontece é justamente o contrário.

Gaspar honra o ADN familiar no fado, herdado da bisavó Celeste Rodrigues. A bisavó que um dia reconheceu na guitarra portuguesa dele – que começou por ser de plástico – a “malha” de um fado conimbricense e acabou homenageada pelos bisnetos no título da música Azul Celeste.

E, do miradouro ao fim da rua Joaquina, é possível admirar um azul tão celeste quanto o título da música dedicada à bisavó. Um ponto de observação com a mesma vista de Lisboa, mas no sentido oposto, do famoso miradouro de São Pedro de Alcântara. Um cartão-postal que os Varela e demais vizinhos aprenderam a valorizar e a curtir.

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“No verão, costumamos fazer almoços e jantares coletivos”, conta Sebastião, apontando para as mesas junto ao gradil que tem Lisboa aos seus pés. “E no santos populares, organizamos o nosso próprio arraial”, complementa Gaspar, sobre um grande sentimento de bairrismo que se concentra na pequena Rua Joaquina.

Um bairrismo possível graças à pouca rotatividade de moradores. “São praticamente os mesmos desde quando nos mudamos”, explica Gaspar, enquanto um rosto conhecido acena de uma porta. Vizinhos que viram os irmãos crescerem ao lado dos próprios filhos. “Tivemos sorte de sermos várias crianças numa mesma zona”, ressalta.

O “miradouro” particular dos vizinhos da rua Joaquina, palco dos almoços e jantares coletivos durante o verão. Foto: Carlos Menezes.

Crianças que estudavam na vizinha Escola de São José e, aos fins de semana, faziam da rua Joaquina o parque para as brincadeiras ou um “relvado” de pedras. “Aquela parede ainda hoje está toda lixada por causa de nós”, diz Sebastião, apontando para o muro do infantário, as duas janelas de ferro, os limites de uma barra imaginária.

O futebol à rua, os almoços coletivos com vista para a cidade, as portas sem trancas, os velhos rostos de sempre nas janelas, retratos de uma Lisboa que parece já não existir. “É essa a impressão, de que neste tempo todo estivemos protegidos das grandes mudanças que ocorreram no resto da cidade”, resume Sebastião.

Gaspar e Sebastião na porta da Villa Serra Fernandes, que guarda uma pequena jóia da Mouraria, a rua Joaquina. Foto: Carlos Menezes.

Um outro rosto conhecido surge na porta vermelha, o de um convidado, o músico Conan Osíris. É chegada a hora do ensaio para o concerto do dia 7, não sem antes os irmãos Gaspar e Sebastião acompanharem os repórteres até o portão, como os anfitriões de uma Lisboa de outros tempos.

E que ainda resiste numa pequena rua de casas com paredes e portas coloridas no coração da cidade.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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