Dino d'Santiago
"É precisamente acreditar nessa nação crioula, bela. Nós realmente temos nas nossas mãos a possibilidade de transformar isto num mundo bem melhor" Foto: Rita Ansone

Esta é uma conversa que estava há muito adiada, entre a Mensagem e Dino D’Santiago. Desde logo porque Lisboa é uma cidade dele. De que fala, sente, sobre a qual teoriza e que marcou para sempre com o tema Nova Lisboa. Depois, porque a Lisboa de que ele fala é a nossa: misturada, poética, enérgica e positiva. A conversa foi sendo adiada até que um projeto nos uniu à sua Lisboa Criola e o seu novo disco, Badiu, marcou o mote para falarmos. Do projeto, divulgaremos pormenores no dia 3 de dezembro. Da Lisboa de Dino falamos aqui, com ele, no Centro Cultural de Cabo Verde (ali em São Bento, numa zona da cidade que já é africana há mais anos do que Lisboa se pode lembrar):

Se preferir, ouça aqui a entrevista a Dino D’Santiago – ou guarde para mais tarde ouvir.

Desde o início da Mensagem que queremos perguntar-te: qual é a tua Lisboa?
A minha Lisboa não é singular, não a considero minha, é uma Lisboa que eu considero nossa. É uma cidade aculturada, mesmo que muitas vezes quem a habite não se aperceba que ela é aculturada… há milhares de anos. E depois é, há umas centenas de anos, mais assumidamente uma das capitais europeias mais diversificadas. E hoje sinto que é realmente aculturada – mesmo que sintamos as extremidades a virem ao de cima, por conta da sociedade, das diferenças sociais… E desses extremos começam a vir assuntos finalmente ao de cima como o racismo e outras diferenças socais. Cada vez mais sentes o choque. Mas o choque acontece nessa ideia, nesse imaginário social ao longo dos anos, de muita coisa que se fez. É esta Lisboa que hoje tem os olhos mais abertos.

Vídeo: Stephen O’Regan / People of Lisbon

O que estás a descrever é uma Lisboa crioula. Mas nunca usas essa palavra com um sentido único, Lisboa de negros e brancos, usas essa expressão como mistura. Explica lá isso melhor.
Durante muito tempo a expressão crioula foi conotada como uma só tez ou um dialeto, uma língua que deriva do português. Mas são várias essas línguas que derivam desta cultura que é a portuguesa e desta língua, e são vários os povos que beberam dessa raiz, como da nossa lusofonia. E tens o mesmo a acontecer com a anglo-saxónica, francófona e a hispânica também. Não é só o que nos transporta logo para Cabo Verde e Guiné, é muito mais amplo. E depois… o povo português que por si só já é dos povos mais crioulos que existe à face do nosso planeta. Um território que foi descoberto por 16 povos que ao longo dos milénios foram ocupando, foram transformando esta nação que continua a intitular-se de Lusitânia e eu chamo-a de crioula. Espero que existam mais pessoas a senti-la assim…

“Felizmente há pessoas que são seres de luz – a Karina, a Selma, a Cláudia Semedo, o Kalaf, a Grada Kilomba. São seres de luz mesmo. Vêm para o bem, mesmo trabalhando esse assunto (o racismo) que é sempre tão delicado.”

Em duas palavras desconstruíste a ideia da “descoberta”.
Sim, eu não sinto que desconstruí, eu acho é que ela já nasceu desconstruída. Nós é que queremos reivindicar algo que já nasceu na história, mas realmente não há… Todos um dia acabaram por descobrir algo ou encontrar algo. Mas nós não fomos os primeiros, todos se sentiram os primeiros quando chegaram a estes territórios. Por isso eu não demonizo a ideia do conquistador, porque é algo intrínseco à génese humana, guerras e conquistas e de sentir que se é o primeiro a chegar a algum sítio. E Portugal sofre da mesma sopa do Asterix! Acho que nós, se soubermos que quando chegamos a um sítio, e nesse sítio já existe algo, não estamos a descobrir, antes estamos a conviver com essa realidade.

Dino na entrevista, por detrás dele estão os quadros de Luís Levy Lima, pintor cabo-verdiano. Foto: Rita Ansone


Tu por exemplo, não nasceste em Lisboa, nasceste em Quarteira. Quando é que descobriste Lisboa?
Eu não descobri Lisboa… Dizíamos Lisboa, mas eu ia direto para a Cova da Moura, na minha infância, porque a minha família materna vive ainda em grande parte na Cova da Moura. E nós vínhamos, atravessávamos a Ponte 25 de Abril, íamos para o Arco do Cego e depois dali apanhávamos o táxi ou o comboio para a Amadora. E eu achava aquelas pessoas afortunadas porque as casas tinham andares e nós em Quarteira vivíamos no bairro dos pescadores, era um bairro de lata, eram casas planas, casas de contraplacado. Eu achava que as pessoas ricas eram as que viviam na Amadora, porque eu não conhecia outra realidade a não ser aquela.

Que idade tinhas?
Entre os cinco e os meus 15 anos.

E como era essa Lisboa, que no fundo era o que era, a tua Lisboa?
Era o sítio onde eu já tinha visto mais negros. O Algarve, em Quarteira, Almancil, também tinha, mas nunca se reuniam tantos, só no dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador, é que se reunia muita gente das varias diásporas africanas. Mas na Cova era mesmo toda a gente. Era um pedaço de Cabo Verde mesmo sem termos ido a Cabo Verde, falava-se crioulo.

“Lá fora cada um mostra a minha Chinatown, a rua da Jamaica, está tudo segregado. E consegues no coração de Lisboa trazer todos esses universos num piscar de olhos.”


Tinhas essa consciência de que de certa forma descobriste Cabo Verde em Lisboa?
Não tinha, eu achava normal, e que talvez em mais sítios de Portugal fosse assim. No Bairro dos Pescadores havia muitos cabo-verdianos, guineenses, angolanos e ali na Cova eram maioritariamente cabo-verdianos. E toda a gente era família de alguém, os barbeiros, as senhoras que vendem fruta e cana de açúcar, a minha tia Doca…
E eu achei: “Uau, Lisboa é perfeito porque realmente conseguimos ter um pouco de Cabo Verde aqui e comunicar com a nossa família, com os nossos primos em português, com os pais deles em crioulo”. Era a música, todo aquele ambiente… Só depois comecei depois a perceber que a Cova da Moura era perigosa, nas notícias. Para mim aquilo foi um choque porque eu nunca vivenciei perigo. Aquelas esquinas sempre me foram familiares, sempre foram amigáveis, mas depois percebi – depois adulto já, vinte e tal anos – que muita gente tinha medo.

E quando foi então a descoberta da outra Lisboa?
Quando eu começo a conviver com o rapper Barbosa, o GQ, que faleceu, o grande amigo do Sam The Kid, e começo a ficar em Chelas, em casa dele. Foi através dali que eu comecei a conhecer outra Lisboa. E aí já a conhecer a realidade da zona J e da zona M, os conflitos com a polícia, os medos que eles tinham, as guerras de pitbull… Mesmo aí eu não conhecia a Lisboa do Chiado. Só quando fui para os Expensive Soul, ali para 2003, 2004 é que começo a visitar a zona histórica. Nunca tinha ido ao Bairro Alto nem à Rua do Ouro, nunca.

Os pais de Dino, numa apresentação em Melides.

A tua música Nova Lisboa, que é o teu hino à cidade, que marcou o teu boom de sucesso, é desmentida no Kriola em que dizes que “esta Lisboa não é de agora, já nasceu no Lontra, e na linha de Sintra que fala a língua da Cesária”. Mesmo assim, achas que essa música é um marco na cidade?
Sabes que mesmo o conceito da Nova Lisboa, quando eu cantei aquela canção, eu fiz uma viagem no tempo das Novas Lisboas que não foram reveladas… Realmente a cachupa nunca foi servida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa. E a partir do momento em que as instituições e o próprio Estado começaram a olhar de outra forma para a comunidade afro-portuguesa, o Tito Paris a ser condecorado… Aí já há uma Nova Lisboa. E quando eu vi essa multiplicação aí eu começo a sentir que esta é uma Nova Lisboa. Já não é o temor dos nossos pais: não falem de política…

O que é que isso quer dizer?
O meu pai nunca quis que nós nos metêssemos em assuntos de política ou que mostrássemos uma cor partidária. “Respeitem a polícia, baixem sempre a cabeça”, dizia, para evitar que nos envolvêssemos em conflitos mais graves por causa da nossa tez. Eles nunca diziam isso, nunca falavam dessa forma, falavam sempre da compaixão e da parte religiosa. Então nós crescemos com o medo que eles já tinham. Mas felizmente eu sinto que a minha geração já é uma geração que não teme dizer o que sente.

“Na Cova da Moura as pessoas viviam em casas de dois andares. Para mim era Miami, quando vinha de Quarteira.” Foto: Rita Ansone

A minha pergunta era ao contrário: até que ponto é que quando cantas a Nova Lisboa, quando pões miúdos da Lapa a dançar com miúdos do bairro da periferia, no mesmo concerto, quando cantas Carlos do Carmo no Festival da Canção, quando juntas essas Lisboas, também és um autor, um sujeito nessa mistura?
Sou.

É consciente?
Sim, propositadamente em todos os meus concertos eu queria que toda a gente erguesse o punho quando eu dissesse “Minha nação é crioula.” Em todos os vídeos tu consegues ver homens, mulheres, negros, velhos, novos, caucasianos, todos a gritarem “Minha nação é crioula”. Mesmo que de forma inconsciente, algum levados pela emoção! Mas eu realmente creio nessa nação crioula, é uma nação que não se pode dizer que não é uma mistura. Para mim a Nova Lisboa é reclamar isso como um bem maior para a Humanidade, é reclamar Lisboa como uma cidade realmente aculturada e que tem de ter consciência disso.

E ainda não tem?
Ainda não.

E podia ser mais rica se tivesse?
Muito mais, mesmo economicamente! O que Lisboa poderia lucrar se fôssemos falar em poder e financeiramente, se se criasse um verdadeiro mercado lusófono onde incluis o Brasil e os seus mais de 200 milhões de habitantes, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné e São Tomé, Goa, Macau, Timor! Se criássemos uma rede, como os espanhóis conseguiram fazer, culturalmente já nem falo noutras artes, mas culturalmente se criasses essa rede onde permitisses que todos circulassem, no cinema, música, teatro! Ias realmente conseguir não depender tanto dos mercados externos, do mercado anglo-saxónico do qual ainda dependemos bastante.

Estás a falar do que costumas chamar o Som de Lisboa?
Sim. O som de Lisboa. Sinto que Lisboa é o epicentro dessa viagem. Um dia foi uma viagem que saqueou, matou, violou e hoje podes usar as mesmas redes que já criaste há centenas de anos mas realmente para cultivar o bem, para emancipar, para criar o resultado dessa cultura que se misturou desta forma incrível e em Lisboa tu tens todas essas capitais a existirem numa cidade tão pequena. E não é chegar aqui uma Madonna e colher os louros disso – ela só replicou e levou lá para fora com o seu know-how aquilo que sempre tivemos aqui, mas ela soube materializar numa tour.

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Vídeo de João Espada – Videógrafo, feito no concerto privado para Madonna, em 2018.


Nessa relação com a Madonna tens pena ou orgulho?
Tenho mais pena do que orgulho.

Então?!
Porque orgulho sempre tive, daí eu ter ido com tanto orgulho mostrar os nossos a ela… Era fácil! Eu sei que ela não conseguiria em Paris, em Londres, em Nova Iorque, porque são cidades tão grandes e ao mesmo tempo vivem de costas voltadas uns para os outros. Cada um mostra a minha Chinatown, a rua da Jamaica, está tudo segregado, realmente segregado. E aqui não! Consegues no coração de Lisboa, trazer todos esses universos, do mais eletrónico ao mais tradicional num piscar de olhos. E isso é único, é a riqueza, por isso dá-me pena que sejam outros…

Dino e Madonna nas fotos que correram o mundo. Foto: DR


Tu próprio, por causa disso, a tua música muda quando chegas a Lisboa.
Muda mesmo radicalmente. Porque enquanto estive no Porto havia muito a influência da soul music, do jazz, claramente do próprio rock. Em Quarteira era muito o hip hop, a kizomba, o funaná, os anos 90 foram muito dos grunge, mas também eram os anos 90, tinhas os Nirvana a chegar. E eu cresci ali entre esse universo mais punk, grunge e do outro lado R&B, os Boyz II Men, eu cresci assim. Depois, quando chego à cidade de Lisboa, a primeira pessoa que me apadrinhou foi o Tito Paris. Porque eu queria escrever uma morna para minha mãe, em 2008, e escrevi, e ele foi a pessoa que me musicou a canção.

Qual é a morna?
Chama-se Mamã.

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Fui ter com o Tito à Casa da Morna. Fui com o meu tio, que era barbeiro dele. Lá está, Cova da Moura sempre a fazer das suas… (risos) E a partir daí tudo mudou. O Tito disse, olha vais cantar comigo no dia da Independência de Cabo Verde, em Sacavém. Logo no ano seguinte quando ele juntou o Zeca di Nha Reinalda, Sandra Horta, várias pessoas, porque eu tinha medo de cantar em crioulo, porque eu não me sentia crioulo o suficiente para me apropriar… E no fundo, não era apropriação nenhuma era só a minha cultura, mas eu não me achava merecedor dela.


Tu sempre pensaste que querias cantar?
Não. Achei sempre que ia ser ilustrador ou pintor, sempre, nunca achei que fosse viver da música. E felizmente hoje não vivo de, mas vivo para a música. Daí eu ter ido a Cabo Verde. Porque houve uma altura em que eu sentia que estava a viver da música, era uma fonte de rendimento onde eu não sentia a minha responsabilidade social como músico. O hip hop sempre me aproximou da responsabilização social mas eu nunca me posicionei como tal… E só quando eu me senti mais afastado da minha família, quer religiosamente, quer pessoalmente, os meus valores distorcidos na minha confusão, na minha busca do meu eu, senti-me perdido…

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Os desenhos do próprio Dino ilustraram o seu disco. Aqui o vídeo da música Nova Lisboa.


Na tua adolescência?
Sim, ali dos 21 aos 25 foi um período difícil.


O facto de cantares em crioulo, de perceberes que é uma riqueza assumir essa crioulidade… achas que és uma influência para essa nova geração começar a pensar mais neles como aquilo que eles são e não como aquilo que acham que devem ser?
Imagina: a nossa geração foi muito fruto da MTV. Quando chega a MTV todos nós quisemos comprar aquele sonho americano, foi a primeira vez que nós conseguimos ver pessoas da nossa cor na televisão, nunca na posição de empregado como nas novelas brasileiras ou a servir às mesas ou a trabalharem nas casas ou a ser motorista de alguém, mas numa posição de poder. Então isso a todos nós emancipou… E com as cores todas que nós nos envergonhávamos de vestir… Os americanos conseguiram esse twist. Só que os americanos não eram africanos. Então o orgulho que nós tínhamos em ouvir Tabanka Djaz, Gil & The Perfects, Tito Paris e tudo mais, nós não conseguíamos transcrever. Então houve um afastamento natural da nossa cultura africana mas houve uma aproximação para o orgulho de ser negro, Uau, afinal nós também podemos! Então houve aí uma transição para viver demais essa cultura americana.

Vídeo: Stephen O’Regan / People of Lisbon


E depois essa transição para o orgulho africano fizeste aqui em Lisboa com o Tito Paris.
Isso mesmo. Comecei em 2008/2010, a sentir as conversas com o Dani Silva, com o Tito, com o Paulo Flores – que foi impecável para mim nessa transição – e depois com o Mika, dos Tabanka Djaz… Depois comecei a ter acesso a todos eles graças ao Tito e ao Rui Veloso, que também foi impecável para mim: apresentou-me o Janita Salomé, o Vitorino, os tais cotas, a Celina Pereira – tive conversas incríveis com ela, e foi aí que eu: Uau, nós temos aqui tanto que a minha geração já não… nem é explorar, não vive. Então eu fiz uma transição tão forte. E de repente quando quero resgatar as minhas raízes eu precisei de cantar crioulo, precisei de ir a Cabo Verde…

Álbum Eva, editado em 2013

Por isso é que há o Eva.
Exatamente. E o Eva é super tradicional, é uma sonoridade de Cabo Verde.

Porque tanto tens raiz crioula, como és daqui. Ou seja, és alguém de origem cabo-verdiana que se descobre em Lisboa.
É isso mesmo, o Eva foi essa transformação, foi mesmo um renascimento genuíno. A canção Nôs Tradison eu escrevi com a minha irmã porque era o que o meu pai sempre dizia mas que eu não queria ouvir: filho, mantém o pé firme nas nossas tradições e vais ver que nada poderá correr mal. Então convivi mais com a minha avó, o meu avô, a tradição da bênção que sempre existiu e que já se estava a perder. E o mais estranho é quando eu fiz o Eva, Cabo Verde estava a passar pelo oposto, que era o hip-hop a chegar a uma velocidade terrível e o grande conflito entre os autores mais tradicionais e os novos criadores do hip hop crioulo. E por isso o meu disco, o Eva, foi logo muito apoiado pelos mais velhos. Mas ao mesmo tempo o pessoal do hip hop que já me conhecia pelas minhas participações com o Valete… (fala em crioulo) Dino está a fazer funaná, batuco, se calhar não pode…

Na altura havia muito o “cash or body”, do pessoal que vinha repatriado dos EUA, que nunca tinham ido a Cabo Verde sequer, uma onda de assaltos gigantes, polícia nas ruas. E eu não tinha medo de andar nas ruas porque eu sentia-me mesmo seguro e comunicava com todos. Vinham ter comigo, aconteceu ali um fenómeno tão forte que eu não sei explicar, porque eles próprios que vivem na Cidade da Praia não vão ao interior… A capital tornou-se uma cidade difícil, essa pessoas começaram a passar muito mais dificuldades do que quando viviam no interior, começou a faltar o dinheiro para o arroz, a própria batata que eles tinham gratuitamente – gratuitamente não, fruto do trabalho que eles tinham – no interior. Estava uma onda terrível de fome na Cidade da Paria que quase ninguém sabia. Eu juntei uma grande comitiva que veio da Suíça, da Polónia e tudo mais, para levarmos roupas, computadores e tudo mais, e aquelas pessoas estavam a pedir comida: Não Dino, envia bidões de arroz ou batata ou leite. E eu não estava à espera disso, foi um choque para mim. Essas mesmas pessoas começaram a ver no videoclipe a minha avó a dar-me bênção, o meu avô, eu a caminhar ali pelo interior e começaram a questionar-se, a questionar-me: tens a certeza que não nasceste aqui, como vives assim? Foi um fenómeno que aconteceu.

Foto: Rita Ansone


És de tantos sítios – Quarteira, Lisboa, Porto, Santiago. Isso não te faz impressão, essa é a tua história.
Não faz, porque eu sempre senti Quarteira como essa cachupa, não é? Eram os retornados portugueses que vinham no pós-25 de Abril, mais os africanos porque eram portugueses em África e fugiam também para Portugal. E sempre vivi esse ambiente de mistura. Sempre foi um ambiente difícil. Não poderia haver um estágio que fosse maior do que aquele que eu já vivia ali, tudo o que viesse para cima era bónus. Eu não conheci mais fundo do que o cheiro de uma vala a entrar dentro da tua casa, estás a ver? Então, tudo o resto… Para mim a Cova da Moura era Miami, o Porto era um sonho. 11 anos incríveis de muita aprendizagem. A ser recebido com muito amor, a perceber que por não haver quase negros eles quase não me consideravam… porquê?
Porque se viam as notícias da Cova da Moura e achavam que todos os crimes que aconteciam vinham de um lado, de uma tez. Eu ali até achava que era diferente. E isso era bom, eu não tinha consciência. Porque a minha mente é uma mente formatada caucasiana. Só na minha idade adulta consciente e que eu reconhecia, calma, calma, quando eles estão a falar de escravos estão a falar de pessoas escravizadas e quando tu te olhas ao espelho tu és o reflexo daquelas pessoas.

“Acredito nessa nação crioula, bela, temos nas nossas mãos a possibilidade de transformar isto num mundo bem melhor, e raramente na História tu tiveste a oportunidade de a reescrever. Não é esquecer o que aconteceu, mas é o que é que podemos fazer de melhor para que os nossos filhos.”


Essa parte é complexa. É aquilo que tu fazes de diferente, do que é habitual agora. Tu vens de outro ponto – tu não vens do lado do ódio ou da raiva, vens do lado da união e da crioulidade. De achar ou de fazer perceber aos outros que a raiva não leva a lado nenhum. Sentes-te isolado nisso?

Felizmente eu tenho pessoas que fazem parte do meu círculo que são seres de luz em qualquer parte do mundo, a Karina, a Selma, a Cláudia Semedo, o Kalaf, a Grada Kilomba. São seres de luz mesmo. Vêm para o bem, mesmo trabalhando esse assunto que é sempre tão delicado. Eu parto sempre com a compaixão que aquelas pessoas não estão a ver ou a perceber o que estão a dizer. Porque eu próprio um dia não percebi aquilo que estava a dizer, palavras que se iam eternizando e coisas normais: “Então e eu sou preto?”, eu brincava com isso. Não levava a mal quando escutava, porque não sabia o quanto intrínseco estava nas nossas veias a normalização dessas situações.

Vídeo: Stephen O’Regan / People of Lisbon

Aquela tua frase “Branco com preto, geração de ouro”, é muito ilustrativa disso. O que é que tu pensaste quando disseste isso na tua música?
É precisamente acreditar nessa nação crioula, bela, nós realmente temos nas nossas mãos a possibilidade de transformar isto num mundo bem melhor, e raramente na História tu tiveste a oportunidade de a reescrever. Não é esquecer o que aconteceu, mas é o que é que podemos fazer de melhor para que os nossos filhos, os filhos dos nossos filhos, e as novas gerações, e a nova humanidade. O mundo nunca foi tão crioulo, em todas as nações. Então porque é que não nos assumimos realmente como as Nações Unidas e trabalhamos juntos, construímos juntos, sem haver mais privilégio – que ainda é tão evidente e cada mais evidente porque o outro lado finalmente reclama o seu direito.

Eu venho de uma família muito religiosa, os meus pais levam à letra – à letra -, o que está na Bíblia. E eu sempre amei artes e fui estudando… demais. Para eles foi demais. O que o poder fez, o que levou a Humanidade a cometer os crimes… quando tu tens a coragem de escrever uma carta a desumanizar aqueles seres do Hemisfério Sul para eles poderem ser traficados isso mostra a crueldade do ser humano a um nível gigantesco. E havia negros a praticar o mesmo porque achavam que era a normalidade. Então quando eu interiorizei e realmente vi, e o nosso meio musical mostra-nos felizmente isso, nós misturamo-nos demais e esquecemos que aquele é branco, aquele é preto, é o valor que aquela pessoa tem. Para mim, a expressão “branco com preto, geração de ouro” existe porque não é possível evoluir se não houver os dois lados da balança. E aqui branco e preto representa o início de todas as outras cores, só vai haver mudança quando os dois lados estiverem realmente de braços dados e sempre que nos juntámos fomos realmente melhores.

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Tens essa… bondade. Sempre ver o lado bom das coisas e ser otimista. Recebes muitas críticas que dizem: ah pois, ele diz isto porque agora tem fama…
Sim, muitas, muitas. Estás a tocar num ponto que é forte. Dos dois lados, estás a ver, do lado africano e do lado mais europeu. E às vezes ficas triste. Mas é um esforço diário e eu tenho feito um trabalho com psicólogos e terapeutas de desenvolvimento pessoal para me centrar a mim mesmo como ser e como indivíduo para conseguir alcançar essa individualidade primeiro antes de me exprimir. E respirar fundo e ter muita compreensão e muita compaixão.

Como é que tu vês gerações que se auto-sabotam, sucessivamente? E qual é o teu papel junto dessas pessoas?
Por ter visto de tudo nesta vida, muitos amigos meus a quem isso aconteceu, ou porque foram vítimas de overdose ou porque foram encarcerados e depois suicidaram-se… Já vi tanta coisa que realmente… E eu agora tenho insistido muito nesse trabalho, as pessoas devem ser acompanhadas por psicólogos, pessoas que entendem… Tratamos tantas doenças físicas e há tantas doenças que são mentais, que são do espírito e que depois se manifestam no nosso corpo. E se nós não nos preocuparmos mais com a nossa saúde mental é muito fácil alguém chegar, alguém que tenha um bom poder de argumentação, alguém que seja um bom sofista, consegue vender-te o seu sonho e transportar-te, sem que tu te apercebas genuinamente, simplesmente porque te sentes só.

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E depois há também essas mulheres de que tu falas neste novo disco. Essas, as heroínas de Lisboa, secretas, invisíveis… que não têm tempo para fazer isso. Essas mulheres que saem às cinco da manhã e que voltam a casa às nove da noite…
Mas essas mulheres têm algo que quase nenhuma mulher ocidental tem que é a fé. A fé é o que lhe permite que tenham cinco, seis, sete, oito filhos dentro de casa mas elas acreditam que vai haver alguém que as vai ajudar nessa jornada. E no final, o que as salva são elas próprias, porque a fé delas é o que as move. A fé de que aquelas crianças trarão orgulho. Como a minha mãe: o nosso sucesso é o que mantém aquelas mulheres de pé, por isso é que elas não morrem mais cedo, estás a ver?


Essa talvez seja a última camada das camadas não vistas na sociedade.
Mas sabes qual é um dos fatores de sobrevivência dessas mulheres? É que elas não têm tempo para pensar sequer que elas são a última camada! O viver delas é tão intenso de segunda a segunda, é tão real, que elas não têm tempo sequer para se por nessa posição de vitimização. Tem de ser, porque se não o meu filho não vai comer, a minha filha não vai para a escola, não há tempo para trançar, não há tempo para ir buscar o gás e ser eu a carregar, não há tempo para ir dizer ao vizinho para ir buscar a chave para trazer uma mobília, elas não têm tempo para pensar. Então é um erguer e acreditar que naquele dia elas vão ter força.


Por isso lhes fizeste aquela homenagem nos prémios Vodafone.
Foi lindo. Encontrei-me agora com elas no concerto da Lura, outra vez! Quando eu cheguei via-as no corredor e é aquela coisa: olhas, vês um corpo negro e acenas sempre. Logo aí ficámos juntos, eu ganhei um prémio e elas a saltarem. “Calma, calma, É nosso, é nosso”. Ganhei outro, e elas estavam eufóricas. Depois agarram-me e disseram: já valeu a pena estarmos aqui, se é para tu ganhares, já valeu a pena. Elas estavam a limpar a passadeira vermelha, de cada vez que vinham pessoas. No final, eu disse: quando isto acabar, a gente vai para lá e tira fotos. Estava um segurança, que era incrível… E no final ele disse: tirem as batas, tirem as máscaras, podem vir comigo. E elas estavam bué orgulhosas, foi a melhor cena dessa noite. Eu não tive a oportunidade, naquela noite, de abraçar a minha mãe, porque a minha mãe era aquela mulher nas limpezas e aquele orgulho. E aquele orgulho é o que nós, como filhos, sempre que nos acontece algo é nessas mães que estamos a pensar. Sou-te mesmo franco, eu sou mais de partilhar. Estou a aprender a valorizar-me, é uma cena católica.

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Qual é a música que tu fizeste de que tens mais orgulho?
Nôs Tradison. É a que me dá mais orgulho mesmo. É a que eu me emociono logo que começo a cantar. Porque a mensagem eu sinto que vai ser eterna. Ya.


Catarina Carvalho

Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
catarina.carvalho@amensagem.pt

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7 Comentários

  1. Bravo Catarina.
    Adorei a entrevista que conduziu.
    Evidente que ainda existem “ismos” na nossa cultura. Qualquer trabalho que nos provem isso são importantes. Estou completamente de acordo com o Homem entrevistado, aliás subescrevo todas as referencias dadas pelo mesmo, afinal só há uma cor nos vivos, o Sangue!

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