“Há aqui um homem que escreve umas coisas e acho que escreve muito bem”. Foi assim que Jorge Costa nos chegou pela primeira vez ao ouvido. Pela voz de Teresa Bispo, na altura coordenadora do NPISA, uma das pessoas que melhor tinha recebido Jorge quando ele chegou ao centro de abrigo temporário do Casal Vistoso, em meados de 2020.
Ele vinha da rua, roupa suja, poucos banhos nos últimos meses e, no olhar, a estranheza de quem não sabe como pertencer a este mundo – quanto mais a um onde havia agora uma pandemia e ele não tinha casa para se abrigar.
Teresa apresentou-o como “homem” e nunca “sem-abrigo”. E Jorge agradecia a todos os que o viam como mais do que a condição em que viveu durante menos de um ano da vida dele.
A coordenadora respondia, naquele dia, ao nosso repto de dar a conhecer, na primeira pessoa, o que é viver em situação de sem-abrigo. Era uma ideia da Mensagem: mais do que darmos voz, querer passar a caneta para as mãos de quem tinha vivido uma experiência pessoal e muito pouco transmissível.
“Nunca se sabe até estarmos lá”, diria o Jorge, abanando a cabeça.
Ele aceitou o convite. E acabou mesmo por escrever tudo o que não sabíamos, nós, os sortudos que vivem debaixo de um teto. Desde então, nunca mais olhamos da mesma maneira para todos aqueles que não têm um.
Assim também aconteceu com as centenas de leitores que Jorge tocou e que nos encheram as caixas de e-mail e de comentários.
Muitos eram ditos de lágrimas nos olhos, depois de um qualquer encontro com uma realidade que era, até então, só paisagem na cidade onde viviam, agora desbravada pelo Jorge. Tantos outros arregaçaram mangas, tornaram-se voluntários, fizeram chegar cabazes e até um computador novo ao cronista, para que ele pudesse trocar o pequeno visor do telemóvel por um maior quando escrevesse para a Mensagem.
Assim foi. A vida dele mudava de dia para dia. “Nem me acredito nisto”, dizia. Chegavam os convites para contar a história dele na televisão – foi ao programa de Manuel Luís Goucha, na TVI, e ao de Tânia Ribas de Oliveira, na RTP. E, numa manhã na nossa redação, encontrou-se com o Nuno Markl, que se confessara leitor e admirador da escrita dele.
Nuno Markl a contar na Rádio Comercial como conheceu Jorge Costa e os planos que andavam a preparar. Para ouvir:
Depois de meses na rua, a comer o que lhe davam, Jorge, que era mais de peixe, teve uma das maiores alegrias ao voltar a cozinhar. Ele, que se dizia bom cozinheiro.
Passeava muito, estava atento a tudo o que acontecia na cidade. Mas lamentava ter de continuar a fazer tudo sozinho, sem família e amigos. A vida já fora outra. Em tempos e durante anos, trabalhara como contabilista numa empresa, que abriu falência e o deixou no começo deste caminho, cada dia mais isolado do mundo.
Na Mensagem, escreveu 14 crónicas, onde mostrou a curta distância que há entre ser e não ser sem-abrigo. E que a rua pode ser uma selva, mas também foi o sítio onde Jorge fez um amigo: o Zé, que nunca chegamos a conhecer, mas que quase sentimos ter conhecido, pelas palavras do Jorge.
Com ele, passámos a saber tudo isto e como nunca. E foi assim que Nuno Markl pensou que podia fazer um filme com esta história. Estava até um livro no prelo.
Há alguns meses que o cancro que Jorge descobriu ter começou a dar sinais de maior preocupação. Não era otimista, sempre disse que não ia viver muito. “Mas enquanto viver vou escrever. Até acho que escrevo bem.” Sonhou continuar a fazê-lo, em inúmeras mensagens trocadas – agora era sobre a cidade que conhecia tão bem que ele ia escrever, estava decidido.
Hoje, 20 de abril, morreu Jorge Costa – que as suas crónicas o recordem e que sirvam para o que ele gostava que servissem: todos olharmos os sem-abrigo de outra forma.
A nós voltou a dar-nos a lição de que fazer jornalismo é olhar o outro. Até sempre, Jorge, contador de si, e de nós.
Leia aqui todas as crónicas de Jorge Costa.
Que péssima notícia. Espero que tanto o livro como o filme avancem, todos deviam conhecer a história do Jorge.
Que lição de vida este homem nos deu. Sem duvida, que depois de ler estas cronicas olhamos para os sem abrigo com outros olhos. Ele morreu, mas as suas cronicas serão eternas.
Estas crónicas não são para os sem abrigo, mas para os abrigados. Será que é desta que acordamos?
Obrigado pela coragem.
Estamos a trabalhar nisso…
Que tristeza perder o Jorge… Saber que nunca mais vamos ler as palavras dele, tão intensas e cheias de humanidade. Apesar de nunca ter conhecido, caíram-me às lágrimas quando soube, porque de alguma forma, ao longo das suas crónicas, fomos conhecendo um homem excecional, que nos fez olhar para o mundo a nossa volta de uma outra maneira. Nunca esqueceremos o Jorge.
Faz tempo, meses, fiquei muito EMOCIONADA com a extraordinaria descrição do Jorge quando foi admitido no Casal Vistoso e a gratidão que deixou à Teresa Bispo pela sua humanidade
Foi um prazer ler/conhecer esta história. Sempre com o coração apertado seguindo o desenrolar dos acontecimentos. Acabou da melhor forma possível, muitos parabéns para projecto do vereador, e para o apoio da mensagem de Lisboa. É pena ter partido tão cedo o Sr. Jorge. E quantos Jorges haverá mais por aí? Tenhamos a esperança que este testemunho nos aproxime mais do próximo, é esse o meu desejo. Obrigado
Nem dá para acreditar… parece um cut-paste da minha vida. Quem quiser aproveitar para dar continuidade estou disponível! O meu nome é Filipe Costa, tenho 46 anos e acabo de sair de uma aventura de 3 anos nas ruas, depois de ter sido salvo por um anjo na terra no funeral do meu melhor amigo. É demasiada coincidência…..