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Ouça aqui a viagem pelas ruas de Nuno Markl:

Da sua janela do número 65 da Rua da Venezuela, em Benfica, onde cresceu, Nuno Markl sonhava viver do lado de lá da estrada, numa das moradias vistosas do bairro de Santa Cruz. Os pais alertavam para a imprudência do volume dos seus sonhos, açambarcados pela ideia de habitar imobiliário caro. Mas a vida deu tantas voltas que foi mesmo lá que Markl foi parar, ao número 13 da Rua do Parque, já homem casado. “Só que um sonho tornou-se no maior pesadelo”, digno de uma tragédia romântica, não fosse o número da porta o mesmo do azar.

É por estas duas ruas, ambas em Benfica, que começamos a nossa viagem com o radialista, humorista e argumentista português, convidado para dar rosto a este episódio da rubrica A Minha Rua. Foi como entrar em todas aquelas que foram as suas casas, sentar no sofá e ver acontecer, diante dos nossos olhos, as histórias que cada uma conta.

A primeira foi sua morada por duas vezes. Já adulto, foi nesta rua com nome de país da América do Sul que escolheu viver com a primeira mulher, num 7.º andar do 49, apresentado pelo agente imobiliário “Senhor Toscano”. Uma figura que mais parecia “saída de outros tempos”. Ali, deu abrigo a Jamie, uma cadela abandonada que, um dia, o seguiu para casa e que terá vivido um tempo anormal para os da sua espécie: 20 anos.

Já lá vai o tempo que Nuno Markl passava nesta rua e quase tudo parece estar diferente. Há lavandarias self-service, os supermercados são agora stands de automóveis e até um rés-do-chão virou salão de beleza. Ao fundo da rua, já não há sequer resquícios da loja onde ia comprar jogos pirateados. Mudou quase tudo. Menos a padaria, à qual ainda reconhece os azulejos e a cor.

Na segunda volta à Rua da Venezuela, até ganhou um novo cargo, além daquele que começava a exercer nas Produções Fictícias, como argumentista: o de administrador de condomínio. Durou apenas dois dias no posto. Foi quase tão fugaz como a sua experiência nas aulas de judo do Fofó – depois de ter sido arremessado por “um gigante”, na primeira aula, e nunca mais voltar.

Só há uma rua da sua infância onde ainda volta com regularidade: a rua Tenente Coronel Ribeiro dos Reis, já pertencente à freguesia vizinha, em São Domingos de Benfica, onde morou a sua avó e onde hoje mora a sua mãe. Nas traseiras desta casa, fez rádio pela primeira vez, para o que acredita não ser mais que “meia dúzia de pessoas”, na Rádio Voz de Benfica. A primeira música que passou foi da cantora e compositora norte-americana Stevie Nicks. Ainda Nuno Markl escolhia temas para a telefonia, o estúdio acabou fustigado por um incêndio.

Daqui, avista toda a adolescência, até o dia em que foi assaltado e que o fez acreditar que era, por isso, merecedor de “entrar no sistema de proteção de testemunhas”. Já “tudo era filmes e ficção” na sua cabeça.

Foto: Rita Ansone

Mais tarde, devolveu essa imaginação aos seus bairros, ao escrever a série “1986”, redigida por si, gravada em muitos dos locais destas freguesias e transmitida na RTP. Não deverá haver “maior tributo” à sua infância do que dedicar-lhe uma série televisiva.

No final de contas, os lugares por onde passou e viveu “continuam a ser um sítio cujas descrições encontro nos livros do Eça [de Queirós], mesmo no meio desta selva de prédios”. Nuno Markl diz que “esta é a magia de Benfica e de São Domingos de Benfica.”

E se tivesse uma palavra a dizer aos presidentes das juntas de ambas as freguesias? Faria tudo para que não se perdesse “o lado castiço”, que fazem delas “um sítio onde as pessoas gostam realmente de viver” e não um dormitório.


Catarina Reis

Nascida no Porto há 26 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.

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4 Comentários

  1. As melhores memórias, são aquelas que nos fazem reviver tudo o que de bom e menos bom passamos vivos…

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