Primavera de 2013. Um grupo de homens e mulheres, todos eles moradores no bairro Horta Nova, na freguesia de Carnide, esperavam o dia escurecer. A noite cala tudo o que de dia é barulho para os olhos, e era mesmo isso que eles queriam. Sem que ninguém desse por isso, agarraram em sacholas, pás e tudo o que fosse artilharia de agricultor, atravessaram a estrada em direção a um antigo terreno da EPUL, ali abandonado, deixado ao entulho e à bicharada, cobras e ratos, e começaram uma pequena revolução no bairro.

Já lá vão nove anos. Sónia Oliveira está de mangas arregaçadas, as solas das sapatilhas abatidas sobre a terra, sombreadas pelos caules que crescem neste quadrado de horta e pelo bairro lá atrás – edifícios largos e altos de uma só cor. Estende uma pera-melão. “Levem para casa.” É este o espírito dos pequenos agricultores do parque hortícola da Horta Nova. Os vizinhos de bairro e de horta, Álvaro e Joaquim, saem de saco na mão. Lá dentro, o que Sónia fez nascer na horta dela.

O que cresce para um, cresce para todos.

Com 47 anos, todos eles contados neste bairro, Sónia está cá há tempo suficiente para contar que a terra húmida que hoje pisa e lhe dá fruto é criação de um grupo de moradores a quem a fome bateu à porta.

“Foi por necessidade. Após a crise que trouxe a Troika, o dinheiro não estava a chegar para tudo. Mas tivemos que esperar oito anos para vermos reconhecido o que temos hoje.” Depois daquela noite de primavera em 2013, só em 2021 foi oficialmente reconhecido o espaço onde muitas famílias do bairro encontraram a sobrevivência a um período pós-Troika, quando a comida lhes faltou na mesa.

Os “sem-terra”

“Se eu não vier aqui durante um dia, fico doente”, diz Joaquim, 59 anos, e confirmam-no as mãos calejadas, pintadas a terra. Veio preparar a terra para plantar cebolo, saber de Sónia, olhar para a horta da vizinha. Leva um saco de legumes, mas fica mais um pouco para contar que a paixão pela agricultura vem de uma infância pobre e feliz.

Joaquim nasceu com as mãos na terra. O pai era caseiro numa quinta a não muitos quilómetros deste bairro. Lá, tinham uma grande horta. “Ilegal, mas o dono lá deixava.” Havia galinhas, patos, coelhos e todas as árvores de fruto de que se consegue lembrar. Uma horta “maior do que isto”, do que todos estes hectares do Parque Hortícola da Horta Nova.

Não tinham era água canalizada e luz. “Tínhamos que ir buscar água a um poço” e “a casa de banho era uma barraquinha no meio da quinta”. Havia televisão, mas era de bateria.

Joaquim, 59 anos, mora no bairro Horta Nova, em Carnide, onde veio parar aos 11 anos, depois de a família ocupar uma habitação aqui ao abandono. Foto: Inês Leote

Por isso, deixaram a vida às largas naquela quinta e, quando Joaquim tinha 11 anos, ele e a família ocuparam uma casa do abandonado bairro da Horta Nova. Um bairro de casas de madeira pré-fabricadas, com rés-do-chão e primeiro andar, construídas pela CML antes do 25 de Abril de 1974 para realojar famílias de outros bairros, mas nunca ocupadas. 

Com a Revolução, Lisboa assistiu a um movimento de ocupação de habitações e este bairro não foi exceção. Os que estavam nas barracas à volta e tantos outros vindos de todos os lados de Lisboa ocuparam a Horta Nova.

Imagem do terreno das hortas do Horta Nova antes da requalificação. Foto: DR

“Achávamos que vínhamos para uma casa melhor, tinha água canalizada e luz.” E até uma pequena horta para cada morador, detalhe que deu o nome ao bairro. “Mas eu preferia que ficássemos lá, na outra. Havia mais alegria”, lamenta quem reconhece naquela pobreza a beleza das coisas mais simples.

Maria Vilar, atual presidente da Assembleia de Freguesia de Carnide, foi uma das maiores impulsionadores da requalificação quer do bairro quer das hortas. Foto: Inês Leote

Maria Vilar, durante 11 anos presidente da Junta de Freguesia de Carnide, envolvida na requalificação deste bairro, tem um nome para estes moradores: os “sem-terra”, por referência ao movimento brasileiro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, originário da década de 1980, lembra a atual presidente da Assembleia de Freguesia. Um movimento que promovia a ocupação de terras devolutas de regiões remotas, para desconcentrar grandes áreas agrícolas da mão de empresas multinacionais.

Aqui, a luta não ganhou nome, mas funcionou como uma revolução também. Ao olharem para aquele terreno de grandes dimensões, contíguo ao bairro, abandonado depois da falência da EPUL (detentora deste pedaço de terra), não hesitaram.

“Foi o Fernandinho que começou, ali em baixo”. Joaquim lembra aquela noite em que saíram para ocupar o terreno. Mas foram agricultores clandestinos apenas até ao dia seguinte, quando Maria Vilar desvendou a raiz da revolução que travavam.

“Vim cá e pela nesga de um edifício começo a ver muito movimento aqui, neste terreno.” Seguiu-se um telefonema para o presidente da Junta da altura, Paulo Quaresma. “Não fosse ele saber.” Ninguém sabia, nem era suposto. Maria decidiu confrontá-los: “Ai, Vilar, não digas nada…”, terão implorado.

Maria Vilar, conhecida entre eles por alinhar nas lutas cívicas, alinhou nesta também. E diz tudo ter feito, em conjunto com o executivo em funções na freguesia, para que os moradores da Horta Nova não tivessem de pousar as armas. Durante anos, as hortas funcionaram sob um acordo informal com a CML.

Para tudo o que era clandestino, conseguiram acordo. Até para a rega. No início, lembra Sónia, iam “buscar água aos jardins e bocas de incêndio”. Sempre de noite, “a fugir, para não andar a carregar baldes de água”. Criaram canalizações por baixo da terra e, quando o sol se punha, ligavam-nas aos sistemas de rega dos jardins e às bocas de incêndio, para regar. “Quando a Junta conseguiu estabelecer a ponte com a CML e a Gebalis, ficou combinado que podíamos ir à rega. Não era legal, mas eles fechavam os olhos”, conta.

Em 2021, a CML conseguiu finalmente oficializar as hortas do bairro, fazer obras de requalificação no terreno e distribuir de forma igualitária 80 talhões, permitindo que mais pessoas tivessem um espaço de cultivo. O grupo de moradores e a Junta de Freguesia (já com o atual presidente, Fábio Sousa, no comando) uniram-se para bloquear a abertura de concurso neste processo, para que quem tinha horta no bairro não a perdesse com a nova distribuição.

Mapeamento das hortas no bairro da Horta Nova feito pela autarquia.

Hoje, numa horta bem delimitada e com melhores condições, Joaquim colhe favas para todo o ano. “Ponho na arca e não preciso de comprar. É um alívio.”

Mas nem só a fome é calada pela agricultura de pequena escala que aqui se pratica. Um dos talhões está reservado à terapia que o Gabinete de Ação Comunitária do bairro faz com pessoas diagnosticadas com doença mental.

EVENTOS

O bairro que “toma tudo a pulso”

O bairro da Horta Nova ganhou fama de revolucionário, até rebelde, e não só quando o assunto é o cultivo. “A Horta Nova é conhecida por tomar tudo a pulso. Nós não paramos até conseguirmos.” Sónia Oliveira recorda a ida a manifestações com os pais, ainda miúda. “Eles iam à frente, a segurar as faixas.” Faixas de luta, fosse ela qual fosse.

Sónia lembra uma em particular, quando ainda não era nascida. “O autocarro começou a passar pelo bairro velho [antes da requalificação] porque os moradores se barricaram dentro de um autocarro. Não havia autocarro que viesse para esta zona.” Entraram dentro do veículo da Carris, obrigaram-no a entrar no bairro e a dar a volta, como que a simular o percurso que queriam que o autocarro fizesse. Dessa ação, nasceu a carreira 7B.

Luta e sobrevivência são palavras de ordem na Horta Nova desde ainda antes de esta se ter enchido de gente. Foi por uma questão de sobrevivência que casas vazias há anos acabaram ocupadas por famílias, depois do 25 de Abril. “Eu já fui feita cá, na casinha de madeira, mas sei de cor o que me contam.” A história de um bairro salvador, afinal. Os pais de Sónia viviam na Amadora, “num bairro de lata, quando ouviram que uns primos tinham vindo ocupar uma casa neste bairro”. Vieram também.

Trocaram o teto de zinco pela madeira. Mas não demoraria muito até que isso mostrasse problemas maiores.

Maria Vilar apercebeu-se da degradação do bairro, sem manutenção há anos, e fez da requalificação do mesmo a sua missão quando, “por surpresa”, foi eleita presidente da Junta de Freguesia de Carnide, em 1982. “Eu não tinha nenhuma bandeira para dizer ‘Eu já fiz isto, confiem em mim’. Vinha de outra área, dos CTT, da direção de filatelia, mas eles acreditaram. O meu partido disse: ‘Estivemos a fazer uma análise sociológica e se for uma pessoa com as tuas características, de proximidade, de afetividade e simplicidade, podemos vir a ganhar as eleições’. E foi assim.”

Concorreu e ganhou naquele ano com a Aliança Povo Unido – uma antiga coligação formada pelo PCP, pelo MDP/CDE e, já depois de 1983, também pelo partido ecologista Os Verdes.

Na mira, tinha o projeto de uma Horta Nova requalificada. “Já havia sinais de apodrecimento dos materiais das casas. Era um foco de doenças pulmonares e respiratórias. As escadas (interiores) rompiam e os idosos tinham dificuldades em ir para o 1.º andar, tinham que galgar degraus. Eles tinham ocupado as casas e ainda ninguém tinha lutado por eles para haver melhorias e regularização.”

Com uma equipa de outras três mulheres – uma geógrafa, uma engenheira civil e uma assistente social – Maria fez intervenções na Assembleia Municipal e apresentou um projeto de requalificação à CML, presidida por Nuno Krus Abecassis. “Era impossível dizer que não depois da nossa intervenção, cuidada, com conhecimento de terreno”. Consigo, levava sempre “a população toda atrás”, lembra Sónia Oliveira. “Levava-os para as sessões públicas da Câmara – ficava a maior parte lá fora, porque a sala não dava para todos.”

O projeto acabaria aprovado em 1985, o que Maria Vilar acredita ter sido fruto da pressão das eleições autárquicas que se seguiram. No decorrer dos anos 1990, o bairro renasceu com uma nova forma e as chaves foram entregues.

À esquerda, o bairro antes da requalificação, onde se veem as barracas. À direita, o bairro após a requalificação. Foto: Arquivo CML

Do velho bairro, pouco resta. “Tenho umas saudades”, desabafa Sónia, que rapidamente nos leva para o sítio que já não existe. “Eram casas viradas umas para as outras, o que criava umas ruazinhas. Cada rua era como se fosse uma família: brincávamos ali, os vizinhos olhavam por nós. E todos os nossos pais tinham hortas. Os dias eram passados até às tantas na rua.”

Os prédios altos e o passar do tempo roubaram a proximidade entre todos. Mas com Sónia e outros filhos do bairro velho ficou o legado dos pais revolucionários. Certa vez, ela e o seu grupo de amigos invadiram a Junta de Freguesia para exigir uma associação.

O bairro da Horta Nova, em Carnide, atualmente. Foto: Inês Leote

Como tudo o que de grande se faz neste bairro, a história começou à noite. “Tínhamos visto um filme afro-americano, qualquer sobre um bairro de lata, onde os jovens se juntaram e começaram a limpar paredes, a varrer ruas e a pôr o bairro com outro aspeto. Então, um dia, à noite, estávamos a falar sobre isto na rua e houve alguém que disse: ‘nós também devíamos fazer alguma coisa assim’. E porque não? No dia seguinte, invadimos a Junta, nós, uma data de jovens, e dissemos: ‘Queremos formar uma associação para cuidar do nosso bairro’.”

A presidente da Junta de Freguesia, Maria Vilar, sentou-os à mesa das negociações e criaram a associação, a que chamaram Amifesta. O objetivo? “Cuidar do bairro, fazer como naquele filme”. Interrompe Maria Vilar para explicar melhor o que Sónia quer dizer e lembrar como este grupo de crianças e jovens foi importante para unir pessoas vindas de diferentes contextos e culturas no bairro: “as que chegaram de África, os ciganos, os vindos das ex-colónias, toda a gente”.

Uma forma de estar que se “perdeu”, lamenta Sónia. “Naquele dia, na Junta, podiam ter-nos dito que para formar uma associação tínhamos que ir buscar aquele papel e entregar em tal sítio, que nós desmotivávamos logo; mas não. Hoje, as instituições estão muito mais fechadas, desmobilizam.”

Este já não é o bairro que era, mas no terreno verde e farto que o ladeia vive sempre a prova de que, um dia, a luta aqui feita resultou em glória.


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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3 Comentários

  1. Boa tarde, vivo há 22 anos em frente ao terreno que deu origem às hortas de que fala o V. artigo. Saúdo todos os que deram um pouco de si para tornar real aquilo que hoje se encontra erguido, e de que me orgulho apesar de não ter dado qualquer contributo para a sua concretização. Bem hajam!

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