Da sua horta, o indiano Pran avista ao longe os letreiros de um Pingo Doce. Os cerca de quinhentos metros de distância são o mais próximo que prefere estar de um supermercado, desde que começou a semear e a colher cindas, turias, pandris, choris, karelas, dhudis, piriripiris, papricas e outros alimentos da Índia, cultivados para o consumo dele e da mulher, Bina.
As inúmeras hortas de Lisboa são hoje um espelho verde da natureza multicultural da cidade. Afinal, apesar da alcunha famosa, os lisboetas não se resumem aos alfacinhas. Nem às alfacinhas. Ao redor do talhão de Pran, estendem-se pelo Vale de Chelas plantações onde, para além da alface, crescem cenoura, tomate, milho, feijão, alecrim, batata, pimento, cebola e beringela.
O cultivo de hortas tem uma relação estreita com o desenvolvimento urbano de Lisboa. Uma oportunidade de conhecer melhor essa relação secular é a exposição Hortas de Lisboa – da Idade Média ao século XXI, um curioso e didático passeio pela história sobre como a cultura hortícola garantiu a nutrição da população e alimentou a forma como a cidade cresceu, no Museu de Lisboa até setembro, nos pavilhões do Palácio Pimenta (que além do nome afinado com o tema, chegou a abrigar uma frondosa horta).
Romanos, muçulmanos, monges e freiras
Pran talvez não se dê conta, mas bem antes dele outros estrangeiros se aproveitaram das boas condições do solo e do clima de Lisboa para tirarem o sustento da terra. “O cultivo de hortas já era regular durante o período romano e a ocupação muçulmana”, lembra Daniela Araújo, uma das comissárias da exposição. “Sem esquecer dos vários cursos d’água, a garantir a irrigação em abundância.”
Apesar de longa, a exposição concentra-se na relação a partir da Idade Média, quando os registos são mais fiáveis e numerosos. O tour atravessa seis núcleos, ilustrando desde os surgimentos das hortas medievais, condicionadas pela rotina dos mosteiros, até aos dias atuais, de guerrilha gardening, com horticultores-ativistas a disputarem cada metro-quadrado da metrópole com o aço e o betão.
“Estes insights históricos sobre as hortas de Lisboa dão uma profundidade à nossa própria identidade enquanto território. Uma das nossas preocupações foi incluir referências à toponímia sobre espaços que foram tão importantes ao ponto de darem nome a um local”, aponta Daniela Araújo.
Um exemplo prático vê-se logo na primeira sala da exposição, com placas de arruamentos lisboetas cujos nomes derivam de uma horta: ruas das Hortas, da Horta Nova e Horta Seca, e das travessas da Horta Navia e Horta da Cera.
A exposição segue relacionando as primeiras hortas em Lisboa à vida monástica e as hortaliças cultivadas intramuros do Mosteiro de São Vicente. Um imponente estandarte em tecido azul celeste e detalhes dourados, de 1511, com os dizeres “Nos proteja aos hortelões”, contrasta com as vestes sóbrias de beatas retratadas entre cenouras, couves e outras folhas.
O terramoto muda o cenário
A partir do Terramoto de 1755, a relação de uma Lisboa em reconstrução e processo de urbanização com as hortas passou a ser “bipolar”. Apesar do importante papel na alimentação da população, as extensas áreas de cultivo eram expropriadas para garantir a expansão da cidade.

Duas décadas após a terra tremer, as barracas espalhadas pela Baixa foram retiradas dos arredores dos recém-construídos Arsenal da Marinha, Alfândega e Praça do Comércio, concentrando-se nos prolongamentos das ruas do Correeiros, Prata, Douradores e Fanqueiros, onde funcionava o Hospital Real de Todos os Santos, destruído pelo tremor, atual Praça da Figueira.
“A partir de então, com a cidade a crescer de rapidamente, as hortas vão sendo afastadas da Baixa de Lisboa”, diz Daniela. Da Praça da Figueira, em meados do século XIX as plantações ocuparam as áreas onde posteriormente viriam estender-se as avenidas da Liberdade e Almirante Reis e, já no início do século XX, seriam vistas apenas mais além, nos arredores do Campo Grande.
“A partir de então, com a cidade a crescer de rapidamente, as hortas vão sendo afastadas da Baixa de Lisboa.”
Daniela Araújo, comissária da exposição.
A exposição culmina com um raio-x do acirramento da luta pelo espaço urbano. Há hortas espremidas por vias de alta velocidade e confinadas a varandas de prédios. O cultivo convive ainda com parques infantis, quiosques, equipamentos desportivos e ciclovias. Cada centímetro de Lisboa é um latifúndio.
Alimento para o corpo e para a alma
Nesta guerrilha de jardim, os parques hortícolas são oásis na cidade. De acordo com a Câmara de Lisboa, atualmente são 20, que juntos somam um pouco mais de nove hectares e abrigam cerca de 800 hortas. Uma delas, a do indiano Pran, 70 anos, os últimos nove deles como agricultor.

No Vale de Chelas, cada talhão tem 150 metros-quadrados. A limitação da área exige estratégias de cultivo. “Por isso, não semeio batatas. Ocupam muito espaço”, ensina o antigo comerciante e montador de móveis, enquanto ara a terra com a enxada, cada sulco aberto pela ferramenta a garantia de um futuro alimento ou tempero na mesa do casal de reformados.
Reformados, todavia, sem descanso. Nos meses de plantio, entre março e maio, Pran e a mulher dedicam quatro horas por dia à horta. De junho a novembro, no período de colheita, a plantação exige dois turnos de trabalho do casal. A jornada costuma ser de domingo a domingo, interrompida apenas em dias de chuva. “Viemos de muito longe e, então, já sabe: se não se trabalha, não come”, afirma.
“Viemos de muito longe e, então, já sabe: se não se trabalha, não come.”
Pran, horticultor
O esforço recompensa e a colheita normalmente alimenta os dois e ainda sobra. “Daí, dividimos com os nossos parentes”, resume Pran, referindo-se aos primos e sobrinhos que, assim como ele, trocaram o antigo território português de Diu, na Índia, por Lisboa. Há ainda os dois filhos e uma neta, que agora vivem em Inglaterra.
O trabalho diário não garante apenas nutrição para o corpo. O hortelão indiano, cuja fotografia no perfil do WhatsApp é a efígie de Shiva, retira da rotina na horta alimento também para a alma. “Tenho a certeza de que se estivesse em casa, parado, já teria partido mais cedo para lá”, diz, num dos raros instantes que solta o cabo da enxada, para em seguida apontar com o dedo da mão coberta de terra em direção ao céu.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Boa iniciativa. As hortas sendo espaços de cultura para quem quiser aprender e praticar, tendo o apoio de quem sabe fazer, são excelentes oportunidades de ocupação das pessoas do bairro,, no amanho da terra, no semear e tratar até obter a colheita.
Criar mais espaços e dar notícia onde e como iniciar, seria excelente. Será que ainda há? E onde? Que condições?
“Da Praça da Figueira, em meados do século XIX, as plantações ocuparam as áreas onde posteriormente viriam estender-se as avenidas da Liberdade e Almirante Reis e, já no início do século XX, seriam vistas apenas mais além, nos arredores do Campo Grande.”
E é assim que estranhamente, esta exposição omite os “arredores do Campo Grande” na freguesia de Alvalade, bem junto ao Museu da Cidade onde se encontra esta exposição. Porque é que esta exposição omite os logradouros verdes e comunitários de Caldeira Cabral e as hortas de Alvalade? Porque estão a ser arrasados para parques de estacionamento EMEL. São dezenas de logradouros verdes, uma área brutal a ser arrasada pela CML sem a mínima preocupação ambiental e patrimonial. Um escândalo que esta exposição ajudou e ajuda a calar.