No dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, Miguel Esteves Cardoso (MEC) escreveu uma crónica no jornal Público. Logo no título, dizia o essencial sobre o começo da guerra: É Muito Simples.
E era. No texto, também curto, MEC dizia que a Rússia é grande, demasiado poderosa e fora ela que invadira a Ucrânia, que é mais pequena e não invadiu a Rússia. Eis o ponto de partida que não oferece possibilidades de réplica.
Daí, o cronista, e bem, ter concluído: “Complique-se o que se quiser complicar, a questão da Ucrânia é muito simples e exige de nós uma resposta igualmente simples: estar totalmente do lado da Ucrânia…”
É certo que MEC prolongou aquela frase com “… e totalmente contra a Rússia.” Mas eu quero ser ainda mais simples do que o É Muito Simples do MEC. Os governantes da Rússia, nesta história, não merecem ser nem a parte má de uma equação. Merecem, tão-só, que se saiba o que eles cometeram: o começo da guerra. Sabendo nós que eles sabiam o que faziam.
Guerra começada, começou o que era de prever. Guerra é sobre matar pessoas.
Literalmente, ou pior do que isso. É enlutar famílias, esburacar os prédios da cidade, perder vizinhos, ver amigos partir, impedir o trabalho, queimar as colheitas, fechar as escolas, destruturar as comunidades, potenciar ao infinito os azares, fazer em pó memórias e hábitos. Guerra é medo e caos. Fábrica de almas mortas.
É ser bebé, em 1941, com a sua cidade de Kiev ocupada pelos alemães – bombardeada, arrasada e esfomeada. Dir-se-á que um bebé não se deu conta. Errado, deu. Em 2022, é ser a mesma pessoa, ainda em Kiev, mas velha 81 anos, e o mesmo destino, acamada e a ouvir bombas russas. E dar-se conta, e talvez sentir culpa, porque a filha não fugiu, como os vizinhos, porque cuida dela. Guerra é colocar uma vida nesse começo e fim.
Balelas, a vida eterna! O epitáfio daquela mulher é este: “1941-2022, Kiev. Duas guerras”.
Num documentário, do passado dia 10, tinha a invasão duas semanas, o repórter da BBC estava nas imediações da cidade ucraniana de Carcóvia. Acompanhava soldados ucranianos até à linha da frente dos invasores, a poucas centenas de metros. Era noite, mostraram-nos prédios destruídos e ouviam-se explosões, que a televisão já nos ensinou serem surdas e alarmarem os automóveis estacionados.
Negro cerrado cortado por lanternas. Os raros civis que ousavam a noite das ruas já aprenderam a obediência cega: quando alumiados, não esperavam a ordem, logo ajoelhavam e abriam os braços para os soldados revistarem.
A patrulha e a equipa da BBC meteram-se à estrada. Os faróis mostravam o asfalto e as bermas de neve. Então, à direita, na mesma direção que levava o carro, caminhava um vulto. Uma mulher, de costas e com um saco de plástico em cada mão.
O carro parou e no plano seguinte viu-se a cara da mulher. Por prudência com o destino dela, ou porque sim, a câmara focou-lhe só a boca. “Alina, 76 anos”, informou-nos o jornalista da BBC. Alina estava enregelada, o nariz pingava e estava confusa. Saíam-lhe sons entrecortados, esgotados. Alma morta.
Quem começou esta guerra sabia que, algures no guião da vida real, iria aparecer uma velha, caminhando curvada e só, na berma de uma estrada de inverno e de noite escura, nos arredores de uma qualquer cidade invadida. No sofá, eu estava totalmente com Alina. Eu sabia, sem dúvida, quem começou esta guerra – mas que importava eu ter razão? Eu estava derrotado.
Amanhã, na Ucrânia, será noutra estrada, haverá outra velha solitária e confusa interpelada por uma patrulha russa com jornalistas e talvez também tenham pudor com ela. E quem levou a essa outra alma morta foi o mesmo Putin que começou esta guerra, sabendo ao que ela levava.
Começada a guerra, que vai indo para um mês, haverá outras almas mortas (de civis ucranianos ou russos, porque na Ucrânia há dos dois) a encontrar soldados (ucranianos ou russos, porque hoje na Ucrânia há dos dois), desta vez sem jornalistas ao lado.
E acontecerá, então, o previsível e indizível… Porque, com o passar do tempo as guerras aperfeiçoam a sua condição de ser sempre más, mais más.
No Doutor Jivago, do russo Boris Pasternak, no livro e no filme, há um episódio em que um punhado de camponeses foge da aldeia incendiada. Arrastam-se na neve da estepe e cruzam-se com o pelotão de guerrilheiros onde está o médico Jivago. O comandante Razin pergunta quem foi o autor dos massacres.
Uma alma morta responde: “Soldados.”
Acontecia, então, a guerra civil saída da Revolução Russa, de 1917, entre os vermelhos comunistas e os brancos do antigo regime do czar. Razin insiste: “Soldados vermelhos ou brancos?”
A mesma voz volta a responder como um encolher de ombros: “Soldados.”
Mais de cem anos depois, o regime de Putin invade um país, e leva duas outras cores quaisquer, talvez já não vermelho e branco, outras. O certo é que ele começou uma guerra e sabia ao que esta ia levar.
Eu estive numa guerra, a da Jugoslávia, que ainda hoje não sei quem a começou. Mas sei ao que levou essa guerra.
Em 1999, estive na ponte sobre o rio Ibar, na cidade de Mitrovica, Kosovo. Uma velha sérvia tinha nascido e toda a vida vivera na margem errada, onde, com a guerra civil, os kosovares muçulmanos enxotavam os antigos vizinhos, sérvios.
Um blindado francês, das tropas da ONU, depositou a velha sérvia no meio da ponte. Ela trazia dois grandes sacos de plástico, os bens de uma vida.
Os soldados franceses, comovidos, olhos no chão, seguravam os sacos, deixando a velha ocupar-se do que mais parecia preocupá-la – as pernas dela, que tremiam descontroladamente. Chegados à outra margem, a mulher foi entregue aos soldados italianos, também da ONU. Irados, os sérvios que a recebiam, insultavam-nos, aos jornalistas.
Havia ali um café chamado Dolce Vita, a vida tem dessas ironias. Mas a velha sérvia trémula não conseguiu chegar lá, precisou de se sentar no rebordo de um canteiro. Abraçou-se aos joelhos – e eles acalmaram.
Foi então que o maxilar da velha desatou a tremer e ouviu-se o barulho dos dentes, feitos castanholas, a bater, uns nos outros.
Quando vejo na TV a minha camarada Cândida Pinto a reportar uma guerra, como agora voltei a ver, em Kiev, dou-me sempre conta do tom, mais do que amargo, triste, da sua voz.
Não é pose, é experiência. Naquele dia, ela também estava na ponte sobre o Ibar.
Não sei quem começou a guerra da Jugoslávia, sei quem começou a guerra da Ucrânia. Mas em ambos os casos sei do mais importante: com quem totalmente estava e estou. A medida de todas as coisas é o tremor da velha da ponte sobre o Ibar e a confusão da velha na estrada gelada nos arredores de Carcóvia.
Faltam-me estudos em geopolítica e consequentes geoestratégias. Finjo aprender como cercar Kiev para quem sobe de Mykolayiv e faz tenaz por Brovary. Finjo interesse pelas geografias de saber colado por cuspo que são, para os olheiros, a primeira tentação das guerras. Mas ao que dou, mesmo, atenção é à Alina, perdida na noite, aos 76 anos, estrada fora.
Talvez dois romances, lidos na adolescência, me tenham ajudado a chegar a essas opções simples. Por coincidência não forçada, um é do ucraniano Nikolai Gogol (1809-1852) e o outro do russo Dostoiévski (1821-1881).
O livro Almas Mortas, de Gogol, ensinou-me o que são os desapossados. No antigo império russo, a grandeza das propriedades não era medida pela extensão delas mas pelo número de “almas”. Servos que nasciam e morriam ao serviço do proprietário, sem nunca terem direito a possuir um pedaço de terra.
No séc. XVIII, o czar Pedro, o Grande, criara um imposto sobre as “almas”, tributado aos proprietários, consoante o número de servos que tinham. Entre dois recenseamentos, o imposto pago pelos donos incluía todos os servos, até os já mortos.
Almas Mortas é uma farsa em que Gogol conta a história de Tchitchikov, vigarista que vai para a província comprar servos mortos. O interesse dos proprietários, a quem ele propunha o negócio, era livrarem-se do imposto e ganharem, ainda, alguns rublos à custa dos sepultados que já não trabalhavam.
O interesse do especulador Tchitchikov era ganhar um rol de mais servos, o que lhe permitia juntar “almas mortas” ao seu património. Património falso que iria servir de penhor para fazer novos empréstimos para comprar mais almas mortas…
Interessante como um escritor russo do séc. XIX, narrando um sistema medieval, parece ter inspirado uma crise moderna, a do subprime. Há pouco mais de uma dúzia de anos, nesse episódio do capitalismo selvagem, os bancos incentivam os seus clientes a comprar vivendas a preços desastrados.
Os bancos estariam sempre garantidos, dizia o subprime, pois se os empréstimos não fossem pagos, eles, os bancos, ficavam com a moradia de quem pedira o empréstimo. Segurança alicerçada na falácia de que o imobiliário estaria sempre em alta… Azarinho, não aconteceu assim, e foi crise mundial.
Como Gogol não foi um estratego da geopolítica do investimento bancário, manteve o foco do romance na farsa do seu vigarista e na indolência da burocracia russa. E, também e sobretudo, ele mostrou-nos o abuso ao que o mexilhão era submetido: até as almas mortas dos servos geravam lucros.
Tchitchikov tornou-se personagem histórica russa – há um século ainda Chagall lhe dedicava vários desenhos (ver em baixo). E a figura de especuladores financeiros russos, agora chamados oligarcas, voltaria ao de cima na era pós-soviética.


Também o estatismo russo – czarista, ou soviético, ou capitalista – iria tornar-se constante histórica, que dura há séculos.
E, agora, o terceiro e maior tema de interesse em Almas Mortas, o mexilhão, irrompeu pelos noticiários adentro. Em nome da noção imperial da Rússia, o desrespeito pela arraia-miúda enche as primeiras páginas e abrem os telejornais em todo o mundo. Entre feridos, mortos e multidões em fuga, os números já falam de milhões. Mas recusemos a mera estatística, cada alma morta, uma a uma, é tragédia.
Já depois desta guerra começar, a 7 de março, o russo Roy Medvedev deu uma entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera. Historiador, 95 anos, ele teve uma vida longa e variada: foi crítico de Estaline, dissidente soviético, apoiante da perestroika de Gorbachev e, agora, admirador de Putin.
Que será da Ucrânia?, perguntou o jornal. Medvedev respondeu: “Como esfera de influência, voltará ao tempo de Gogol, o nosso grande escritor que nasceu em território hoje ucraniano, mas todos consideram russo.” E concluiu: “A história nunca é em vão.”
Depois, o antigo dissidente, julgando que tranquilizava, disse: “Putin não planeia retomar toda Ucrânia, só a russófona.”
Talvez para quem não percebeu esta minha deambulação pelas Almas Mortas, Medvedev insistiu no império antigo: “Não há nada de errado em querer recriar uma Rússia que pelo menos como território se refere às fronteiras do czar Pedro, o Grande.”
Então, o Corriere della Sera fez a pequena pergunta, sobre a grande questão de que temos estado a falar: “E o que fazemos das vítimas?”
Resposta de um herói longevo, um resistente com provas dadas, afinal, um cego: “[Vítimas] Já existem muitas, infelizmente. A guerra é o mais cruel dos eventos históricos. Nós os russos estamos habituados a isso.”
Mas por que raio têm os vizinhos de gramar os maus hábitos dos russos?!, apetecia dizer, não fosse eu saber, por russos modernos, que há russos que não aceitam maus hábitos.
(Já para não falar do próprio Medvedev, que na década de 1960, fazia samizdat, publicações clandestinas e arriscadas, porque ele não gostava do hábito de só o Pravda, jornal do poder soviético, deter oficialmente a única verdade).
A 8 de março, no dia seguinte à entrevista de Medvedev ao Corriere, a Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, ex-Presidente chilena, denunciava a detenção de 12 mil russos. Tinham-se manifestado, sobretudo em Moscovo e São Petersburgo, contra o mau hábito de Putin invadir um vizinho e fazer-lhe guerra.
E não foram manifestações de bate e foge, mas daquelas de mostrar a indignação e resistir. Como aquela velha senhora, Elena Osipova, 77 anos, que aparece todas as manifestações da sua cidade contra a guerra.

Dizem-na sobrevivente do cerco alemão a Leninegrado (nome atual: São Petersburgo), mas é folclore desnecessário: aquele cerco nazi durou de 1941 a 1944, ainda Elena não tinha nascido.
A condição de Elena Osipova é maior que isso. É, hoje, o contraponto solidário a outros e outras que, na Ucrânia, são vítimas. Como não evocar a cidade ucraniana de Mariupol, agora devastada pelos russos, quando Elena se torna a mais nobre cidadã da sua São Petersburgo, que sofreu terríveis bombardeamentos na II Guerra Mundial?
Que maior derrota para Putin, a demonstração repetida de coragem desta velha frágil, metade do corpo de qualquer polícia, que se agarra firmemente aos seus dois cartazes que denunciam a guerra, enquanto dois ninjas de capacete e viseira, expõem o incómodo por não poderem ser publicamente brutos.
Que epítome, súmula, resumo, para combater a religião nacionalista, com que o historiador Roy Medvedev sujou o seu passado (“a história nunca é em vão”)…
Entretanto, a velha Alina, a ucraniana, deambula confusa, talvez já não possa reconhecer o que deve à velha Elena, a russa.
Mas a história não assenta necessariamente em tanques. E quando tal acontece, começar guerras prepotentes, a história é mesmo em vão, ao contrário do que sugere Medvedev. A história que nos ensina é moral, ou não ensina.
Dou-me conta que este meu texto tem insistido em velhas. Não sei porquê, pois os testemunhos dos abusados pela guerra percorrem várias gerações. Mostram-no as multidões e os casos a caso. João Porfírio repórter fotográfico do Observador, num tweet sobre as suas fotos na Ucrânia tem o pudor de informar que ele não conta, até pede que as fotos não contem.
Escreveu João Porfírio, o que conta: “Olhem para os olhos.” Eis um homem que sabe. A guerra é sobre matar. O protagonista é único: as vítimas.
Há guerras mais suaves, são as em que eles partem e elas ficam – significa que nem tudo à volta desmorona. Esta guerra na Ucrânia não é dessas – tudo à volta desmorona.
Já sei porque insisto em velhas. Queria fugir de um testemunho sem explicação – que passou na CNN Portugal. Um pai fardado despede-se da família. Ele sabe, porque quis ou porque o obrigaram, que ele tem de ficar, a sobrevivência dos seus leva-o a isso. A sua mulher, ao lado, sabe que ela vai partir com os dois filhos, a sobrevivência deles leva-a a fugir.

Isso tudo tem boas razões (enfim, não falo na decisão de Putin, falo na decisão das vítimas dele). Mas neste testemunho, um dos filhos, bebé ao colo do pai, vai ter uma reação inesperada.
O bebé chora, aflito. Também percebo isso, pela tensão da mãe e a tristeza do pai, ele adivinhou que algo de mau lhe acontecia. O que se passou a seguir é que não entendo. O bebé para de chorar, faz um último soluço, põe cara de raiva, fecha o punho e esmurra e esmurra o capacete de soldado do pai. Ele entendeu, eu é que não entendo como ele chegou lá.
E retomo o segundo livro que li e me deu, cedo, uma lição simples. De Irmãos Karamazov, do russo Fédor Dostoiévski, um livro grosso, Freud disse ser o maior dos romances.
Só um parênteses. O romance é sobre o livre-arbítrio e a moralidade, de um escritor com fé que quer contribuir, no meio do séc. XIX, para a Rússia moderna. É o último livro de Dostoiévski, que algumas vezes se baseou em factos reais.
Num dos episódios, os pais encheram a filha de excrementos para a punir. Não saiu da imaginação do autor russo, mas de um julgamento que então, quando ele escrevia o romance, estava a decorrer em Carcóvia. A cidade ucraniana que já foi referida nesta minha crónica. Isto para relembrar que esta guerra é entre povos com muita história partilhada.
O que eu trago para aqui está numa dúzia de páginas do livro grosso. Num bordel, Dmitri, um dos irmãos Karamazov, agride o capitão Snieguiróv, um desgraçado capitão. Arrasta-o para a rua, com a mão puxando-o pelas barbas. Um grupo de pequenos estudantes sai da escola e, entre eles, vem Iliúcha, de 9 anos, o filho de Snieguiróv.
A criança corre: “Paizinho! Paizinho…” Agarra-se ao pai e pega na mão do agressor, beijando-a, para impedir a agressão. Dirá o capitão Snieguiróv, recordando-se: “Beijou-a, a mesma mão que…”
Na escola, gozam com Iliúcha, pela barba arrancada ao pai e pela aflição do garoto. Ele deixa de ir à escola. O pai propõe-lhe irem lançar papagaios, mas ele amarra-se no silêncio. Até um grito: “Paizinho, como ele te humilhou!” E desata a chorar.
Olhem para o que me deu! Citar o catecismo: “Nunca, frente a um filho, arrastes pelas barbas um pai.” Foi uma iniciação a ser homem, que há muito me deu um escritor russo. E, agora, me foi confirmado por um bebé ucraniano.
Se isto não permite apresentar-me como geopolítico apurado, não sei o que mais vos faça.

Uma Crónica que nos deixa “esmagados”. Obrigado.
Ferreira Fernandes: o meu amigo, de vez em quando, arrasa. Não, obviamente, como os russos o fazem nesta guerra inexplicável. Acontece é que a sua escrita me deixou trémulo e comovido. Pela forma e pelo conteúdo! Um abraço!
Texto imperdível de um grande jornalista. Estou muito grata.
Uma Crónica que nos deixa “esmagados”. Obrigado.
Parabéns!
Excelente artigo.
Bem haja
Meu caro Ferreira Fernandes: A guerra russa não é pior que a guerra alemã, americana , inglesa, francesa e todas as outras. Poderá ser tão má como, mas aproveitar a oportunidade para diabolizar a Rússia, que já foi guerreada durante séculos, não parece seu. Lembre-se de que um palhaço armado presidente também tem culpa. Encolha os ombros e não culpe