O andar para o qual Eça de Queirós se mudou aos 21 anos, em Lisboa, no Rossio. Foto: Inês Leote

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Em 1866, José Maria de Eça de Queirós mudou-se para casa dos pais, o nº26 do Rossio. Cento e cinquenta e seis anos depois, há uma placa a assinalar essa casa em cima do café Nicola. Desses tempos, resiste a janela de onde Eça observava a cidade – e mais.

Resistem Os Maias, onde o Rossio é observado não por Eça, mas sim por Carlos da Maia, que ali instala o seu consultório: “Do Rossio, o ruído das carroças, os gritos errantes de pregões, o rolar dos americanos, subiam, numa vibração mais clara, por aquele ar fino de Novembro”.

Mas será a Lisboa que Eça observava de sua casa a mesma que Carlos observava do seu consultório? Foi a essa pergunta que Ana Isabel Queiroz e Daniel Alves, investigadores do Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/UNL), procuraram responder no âmbito do projeto Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental.

Para isso, mapearam 35 livros de quatro períodos históricos (de 1852 a 2009) e introduziram os lugares identificados numa base de dados (o GIS). Os resultados foram analisados no trabalho Lisboa, Lugares da Literatura: História e Geografia na Narrativa de Ficção do Século XIX à Atualidade.

As conclusões? “Há uma ligação entre o que é a cidade e o que está espelhado na literatura da cidade”, conta Ana Isabel Queiroz. E por isso os livros não são só fonte de histórias – mas também de História. “A fonte literária traz-nos uma outra leitura sobre o passado”, diz Daniel Alves.

Os locais mencionados nas 35 obras analisadas no estudo.

Um atraso entre a realidade e a literatura

E que Lisboa é essa que surge na literatura portuguesa? Uma Lisboa que se vai transformando. Mas essa transformação demora até surgir nas páginas dos livros.

“Há um atraso de 30 a 40 anos”, dizem os investigadores. É que é preciso tempo para que os autores – e as pessoas à sua volta – absorvam os espaços e os tornem parte das suas vivências e só depois da literatura.

Um exemplo claro disso mesmo é a construção da Avenida de Roma e do Bairro de Alvalade nos anos 1950 que só começa a surgir nos livros no período pós-25 de abril. “Isso significa que os lugares são na verdade ‘não-lugares’ até se tornarem lugares sociais”, explica Ana Isabel Queiroz.

E há pontos da cidade que marcaram (e ainda marcam) épocas por serem espaços de sociabilidade: o Rossio, o Chiado e a Avenida da Liberdade são aqueles que mais surgem nas obras analisadas. Se bem que, nos últimos anos, aparecem menos – e surgem cada vez mais lugares para lá do centro da cidade.

O Café Gelo. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Pelo Rossio erraram personagens como Artur Curvelo, d’A Capital! de Eça de Queirós (publicada postumamente em 1925), que aí conhece Nazareno, membro do republicano Clube Democrático, no extinto Café Martinho.

Ou Gabriel que, no café Gelo (que ainda hoje existe, embora esteja em obras), discute política e religião com o redator do Nação Republicana em O Milagre de Salomé de José Rodrigues Miguéis, escrito nos anos 1930 mas só publicado em 1974.

A Brasileira. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Pelo Chiado, lugar de eruditos, escritores e artistas do século XIX e XX, andaram personagens como Godofredo Alves, de Alves & Cª de Eça de Queirós (também publicado postumamente em 1925), que se demorava pela Bertrand.

Como a Bertrand, hoje resiste a Brasileira (a sede “emocional” da Mensagem) e a Casa Havaneza que, segundo Camilo Castelo Branco em A Queda dum Anjo de 1866, fazem parte do “coração do Chiado”.

O Parque Mayer. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Na literária Avenida da Liberdade, viviam-se greves, manifestações e desfiles, mas também se davam momentos de lazer e divertimento, com o Teatro Tivoli, o Parque Mayer e os seus cinemas a viverem tempos áureos.

Em A Raiz do Vento, de Leão Penedo, de 1953, descreve-se a hora de saída do teatro e do cinema, com a porta do Tivoli a “despejar” uma “onda humana”.

Estes lugares foram-se transformando. A visão romântica de um Rossio de rebuliço e de cafés, que Carlos da Maia contemplava da sua janela, não durou para sempre.

O Café Gelo hoje. Foto: Inês Leote

A partir da década de 1970, essa imagem começou a esbater-se e o Rossio passou a ser ponto de encontro para os retornados das ex-colónias, e até mesmo para bêbados, dealers, engraxadores de sapatos, vendedores de lotaria, polícias, floristas, carteiristas e “demais desocupados”, como escreve Rui Zink em Hotel Lusitano de 1986.

A Brasileira hoje. Foto: Inês Leote

O Chiado também se transforma, com a ficção a denunciar aquilo que se sabe pelos jornais, as fotografias e livros de História: já não é ponto de encontro de escritores e gente importante dos outros tempos, embora lá se mantenham as livrarias e os alfarrabistas.

Em Notícias da Cidade Silvestre, de Lídia Jorge, de 1984, a personagem Júlia encontra “velhos” e “traficantes de droga” numa área que parece ter perdido o seu encanto.

O Parque Mayer hoje. Foto: Inês Leote

Na Avenida da Liberdade, o Parque Mayer perde o seu fulgor, mas a Avenida mantém-se ponto de encontro para o teatro e cinema. Com a construção do metropolitano, torna-se também lugar de passagem.

Em Fora de Mim, de Manuel Halpern, de 2008, descrevem-se as transformações dessa área: “Próxima estação: Rotunda, há correspondência com a linha azul. Sais do comboio à pressa pelo pavimento de granito. Mais uma paragem e estás na Avenida. Preferes andar“.

A “faction”

Mas serão todas estas descrições da cidade fiáveis? Ana Isabel Queiroz e Daniel Alves acreditam que a ficção pode ser uma fonte histórica, sim, mas é preciso não esquecer que a Lisboa dos livros não corresponde totalmente à realidade, mas sim a uma “representação literária”.

Para Ana Isabel Queiroz, os livros são uma “faction”, uma fusão entre realidade e ficção.

Falamos de uma “faction” – uma fusão entre o “facto” e a “ficção”.“Quando temos uma novela e um romance, temos uma ‘faction’. Em alguns casos a ‘faction’ está mais próxima do real, outras vezes está mais próxima da ficção porque o escritor assim o quis”, diz Ana Isabel Queiroz.

Há, pois, escritores que se aproximam mais da realidade do que outros, como por exemplo Eça de Queirós, da escola do realismo, ou José Rodrigues Miguéis, com a sua obra autobiográfica A Escola do Paraíso.

“Se tivesse de dizer alguma obra recente mais próxima da cidade, seria Alexandre Alpha, de José Cardoso Pires, com a estrada da Marechal Gomes da Costa em obras e o parque Eduardo VII”, recorda a investigadora. “Há vários sítios descritos muito próximos daquela realidade e daqueles locais”.

Para Daniel Alves, a literatura é outra “camada de informação”.

Mas há também autores que, estando no domínio da ficção, conseguem retratar a realidade… com imaginação. No livro E se trocássemos algumas ideias sobre o assunto?, de Mário de Carvalho, surge um edifício espelhado em Entrecampos – que podia ser real.

Ana Isabel Queiroz perguntou ao próprio autor: “Mas acha que esse edifício existia em Entrecampos?”, ao que Mário de Carvalho respondeu: “Podia existir em Entrecampos ou noutro sítio qualquer, mas apeteceu-me pô-lo ali”.

É um pouco como a cidade de Troia, diz Daniel Alves. “Não sabemos se a cidade de Troia era ou não real”. Apenas temos A Ilíada, o poema de Homero como prova – ou indício. A literatura é isso mesmo, reforça o investigador. “Uma outra camada de informação”.

Nunca saberemos se a Lisboa que Eça observava da sua janela era a mesma que Carlos da Maia observava da sua – mas a de Carlos ficará para sempre conservada nas páginas da sua trágica história de amor.


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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