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O sol já ia baixo, numa destas tardes quentes, e no centro histórico de Carnide soavam notas musicais pelas esplanadas bem compostas por imperiais e petiscos. Alguns curiosos batiam palmas, lá longe. Outros aproximavam-se e assistiam ao espetáculo de perto – pelo ecrã do telemóvel enquanto filmavam.
Uma concertina abre e fecha. As castanholas dão ritmo. E canta-se. Uma caixa está aberta no chão, mas ninguém pede moedas. Nuno Rodrigues, de 17 anos, e Pedro Peseiro, de 25, ambos lisboetas, são amigos e juntaram-se ali para matar saudades dos encontros folclóricos. Há quase dois anos que não há nada.
A pandemia roubou-lhes os palcos, as rodas, os ranchos. E a falta que faz? Nuno respira fundo e olha à volta. Pedro agarra-se à concertina e faltam-lhe as palavras. “É uma cena que só dá para sentir mesmo na altura. É arrepiante… olhar, ver os amigos a tocar, estarmos felizes.” Para Nuno, não há vídeo na internet que traga essa sensação de volta, de ter vinte ou trinta pessoas a puxar pelos instrumentos, a dançar e a cantar.
É com um momento espontâneo destes que tentam matar as saudades. De tocar e conviver. Mas também encontram ali um lugar de tradição. As ruas, as pessoas. Aqui são bem recebidos, o que nem sempre acontece noutras zonas da cidade, onde, admitem, são olhados de lado. “A malta de Lisboa não gosta disto”, diz, com tristeza, Nuno Rodrigues, que está habituado a ir ao Norte ter com a família. Lá, puxa da concertina e sente-se em casa.
Também Pedro Peseiro sente que muita gente os olha como parolos. “Mas não somos. Estamos a fazer com que a cultura não morra”. Da mesma forma que há muita gente jovem a cantar fado, eles fazem o mesmo pela concertina. Apesar dos olhares sobranceiros, Nuno garante: “há cada vez mais jovens a apostar nisto”.
Ainda assim, antes da pandemia, não faltavam lugares em Lisboa onde pudessem soltar toda esta vontade: casas regionais, encontros de concertinas ou até eventos combinados pelas redes sociais. “Há sempre alguém que tem o contacto de outra pessoa e lá juntamos um grupo”, diz Pedro, que toca desde 2008, altura em que se apaixonou pela concertina.
Pedro integra o Rancho Folclórico do Alto do Minho, em Benfica, mas também as Concertinas do Vale do Tejo, que tem repertório musical de norte a sul do país e ilhas. “São muitos palcos já… e viagens ao estrangeiro com o grupo Danças e Cantares do Minho”.
Atualmente, está sem trabalho. “O covid veio estragar os planos da música”, conta, ainda assim sorridente, enquanto ajeita a concertina na perna. Tem curso de pastelaria, mas percebe-se que não são os bolos e os doces que o fazem feliz.

Quando está chateado, sente vontade de tocar nem que seja cinco minutos. “É uma coisa que não dá para explicar, mas pego na concertina e esqueço tudo e todos os problemas”. Já os vizinhos, em Benfica, não acham muita piada. “Uma pessoa tenta tocar baixo, mas quando começa o entusiasmo… não há hipótese!”. E lá vêm as queixas.
Apesar de ninguém na família de Pedro tocar, há mais quem faça parte do rancho folclórico. Mas ninguém é do Norte. “Quando era puto, comecei a ir lá, para as festas de Viana, e ficava fascinado com tudo”. A música e a tradição passaram a fazer parte da sua vida também a Sul.
Já Nuno Rodrigues, que terminou há pouco tempo um curso profissional de mecânica avançada, tem mais sorte quanto aos vizinhos. “Até gostam”. Vive mesmo ali ao virar da esquina, ao lado do clássico restaurante Adega das Gravatas.
Ainda assim, a inclinação do país leva-o, sempre que possível, para Norte. “Corre-me nas veias”. A família é toda de Ponte de Lima. Foi lá em pequeno e só lá voltou há uns quatro anos. “Tinha uns 13, 14”. Foi passar uma Páscoa com os padrinhos e, nessas andanças, começou a cantar, tocar castanholas e querer aprender a dominar a concertina.
O padrinho prometeu-lhe que, se aprendesse a tocar, oferecia-lhe uma. Dito e feito. No seu aniversário recebeu a concertina que o amigo Pedro tem nas mãos enquanto conversamos e que já o seu bisavô tocava. “Ele pediu que quando morresse não vendessem a concertina”. A família respeitou o pedido e mantém o instrumento bem guardado, para grande satisfação de Nuno, que, por influência da avó, entrou para o rancho folclórico.
A malta de Lisboa prefere a guitarra, mas Pedro e Nuno renderam-se à concertina. Parece complicada, mas não é, de acordo com Pedro, que garante, com entusiasmo, que basta ter muita força de vontade. “Isto tem nove registos e é à quarta voz. Aqui toca a primeira, que é uma palheta. À segunda toca duas. Depois três e quatro. À quarta faz um som muito mais alto”. A diferença para o acordeão é que “na concertina cada botão tem uma nota, conforme a abrir ou a fechar. O acordeão tem o mesmo botão para a mesma nota, são as duas iguais”.
O som depende do talento dos artistas e da qualidade do material, cujo preço pode variar entre os 160 euros, “aquelas mesmo antigas”, e os 2700, “as melhores, que já dão para explorar mais”, explica Nuno, que tem uma intermédia. Pedro tem três. A mais recente, que já comprou há uns anos, “é uma topo de gama, uma Recanati, preta e laranja fluorescente”, diz, orgulhoso.
Hoje, no Largo de Carnide, é a concertina de Nuno que dá música a quem passa, tocada pelo Pedro. Já a Recanati, na opinião de Nuno, não toca, berra. Os vizinhos que o digam.

Nuno Mota Gomes
É jornalista. Adora escrever, fotografar e perder-se em pensamentos. Anda de mota, faz surf, viaja sempre que pode – e nem sempre para o estrangeiro. Agora fá-lo mais aqui, em Lisboa, onde nasceu. Um Interrail abriu-lhe horizontes, publicou um livro e muitas reportagens de viagens na Volta ao Mundo – onde se estreou na TV. Passou ainda por outras publicações e durante dois anos integrou o Diário de Notícias. Há quem diga que percebe de redes sociais. Tem 29 anos.