Às quatro e vinte seis da madrugada de 25 de Abril de 1974, a voz segura de Joaquim Furtado lê, aos microfones do Rádio Clube Português, e ao país, o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA). Álvaro Pato estava preso em Caxias, como um dos muitos presos políticos da ditadura. E não o ouviu. Mas quando, ao acordar, olhou pelas grades lá para fora e viu a autoestrada vazia, percebeu que alguma coisa estaria para acontecer.

O testemunho de Álvaro Pato, hoje com 74 anos, é o sétimo e último da série “Lisboa que Amanhece”, que pediu o título emprestado a uma das canções mais bonitas sobre Lisboa, da autoria de Sérgio Godinho. Porque foi o que aconteceu naquele dia. Lisboa amanheceu e fez amanhecer o país todo.

Veja aqui o sétimo e último episódio:

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Um dos 30 mil presos políticos

Filho de Octávio Pato, histórico dirigente do PCP, e de Antónia Joaquina Monteiro, também militante comunista na clandestinidade, Álvaro Pato (como o pai e a mãe e os tios e os primos e a companheira do pai) foi um dos mais de 30 mil antifascistas presos durante os 48 anos de ditadura em Portugal.

Já conhecia a prisão de Caxias quando, em 1973, com 23 anos, lá foi preso, espancado, torturado (11 dias e 11 noites de tortura do sono) e fechado três meses na solitária. Em criança tinha ido lá várias vezes, com a avó, visitar o pai e a companheira dele, Albina Fernandes, presa com os dois filhos pequenos, Isabel e Rui, de seis e dois anos, de quem recusou separar-se até que os entregassem aos avós. Durante um mês, dormiu de joelhos, agarrada aos pulsos dos filhos, para não lhos tirarem.

A avó paterna de Álvaro viveu mais de 20 anos a caminho das prisões da ditadura, de 1947 a 1974, a ver os filhos, as noras, os netos. O filho Carlos Pato, preso duas vezes, morreu na prisão de Caxias, vítima de tortura. Outros dois filhos, Abel e Octávio, também estiveram lá presos – este último, pai de Álvaro, durante nove anos.

“Eu já era adulto, quando, numa visita ao meu pai no Hospital Prisão de Caxias, tive, pela primeira, oportunidade de o beijar. Nas visitas em parlatório tínhamos um vidro e uma rede de arame a separar-nos. Isto durou desde os meus 11 até aos meus 20 anos”, conta Álvaro Pato, que desde o ano e pouco viveu com os avós paternos, em Vila Franca de Xira, porque os pais estavam na luta clandestina contra o fascismo. Viu-os poucas vezes, em criança. E sempre de fugida.

Aos 20, foi a vez de ser ele a mergulhar na clandestinidade. Desertor da guerra colonial, fez-se funcionário do PCP e abraçou a herança familiar de luta.

A traição

A 25 de Maio de 1973, foi preso, no Barreiro, na sequência de uma traição de um “camarada” com quem ia encontrar-se e que era, afinal, um infiltrado da PIDE.

“Sei porque ele foi julgado por isso, depois do 25 de Abril. Nessa altura, fui levado para a António Maria Cardoso e depois para Caxias, onde estive 11 dias e 11 noites na tortura do sono. Como não conseguiram arrancar-me uma palavra, desistiram, e mandaram-me para uma cela isolada, onde estive mais de três meses. Quando saí do isolamento, fui para uma cela com o Padre Mário Oliveira, preso por fazer homilias contra a guerra colonial”, lembra Álvaro Pato.

Na manhã de 25 de Abril de 1974, estava numa cela coletiva com seis presos, entre os quais Saldanha Sanches e mais cinco elementos da LUAR (Liga de Unidade e Acção Revolucionária).

Como de costume, foi primeiro a acordar.

“Quando olhei lá para fora, pelas grades, não vi trânsito absolutamente nenhum na autoestrada, que, naquela altura, começava em Caxias, e estranhei. Verificámos também que havia reforço da GNR a fazer segurança exterior e os guardas prisionais estavam muito, muito nervosos.”

Além disso, os “camaradas da cela ao lado, da ARA (Acção Revolucionária Armada), que deviam ir a Tribunal Plenário naquele dia 25 de Abril, não saíram”.

Álvaro Pato tem hoje 74 anos. Toda a vida foi dedicada à luta, antes e depois do 25 de Abril de 1974. Funcionário do PCP desde que entrou para a clandestinidade no início dos anos 1970, hoje está reformado. Foto: Inês Leote

Uma revolução anunciada aos presos políticos em código Morse

Mais para o fim do dia, um jovem que tinha sido libertado dois ou três dias antes, estacionou junto ao forte e com o claxon do carro transmitiu (através de código Morse, que era usado dentro da prisão para passar mensagens de cela para cela) a notícia de que tinha havido um golpe de Estado.

“Ficámos satisfeitíssimos primeiro, preocupados depois, porque dizia-se à boca cheia que o general Kaúlza de Arriaga estava a preparar um golpe da extrema-direita para derrubar o governo do Marcello Caetano.”

Depois de uma noite em claro, a manhã de 26 de abril trouxe a confirmação de que o golpe era de esquerda. A libertação estava iminente.

Mas o General Spínola não queria libertar todos os presos políticos. Os militantes do PCP e os desertores não saíram. Álvaro Pato era uma coisa e outra. Um inspetor da PIDE fazia parte da comissão que decidiria quem seria libertado e quem se manteria preso.

“Foi perfeitamente caricato. A PIDE tinha-se rendido e o Spínola continuava a contar com a PIDE.”

Os presos, reunidos na cela maior, que era a cela 8, decidiram “ou saímos todos ou não sai nenhum”, lembra Álvaro Pato, emocionado. É difícil conter a emoção quando fala disto. “E comunicámos esta decisão aos militares e aos advogados que faziam parte da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos.”

O MFA impõe então a libertação de todos os presos políticos, que saem já depois da meia-noite de 26 de abril.

“Eu saí de Caxias, a abraçar a minha mãe e a minha irmã, já depois da uma da madrugada de 27 de Abril.”

Para Álvaro Pato, o 25 de Abril de 1974 levou dois dias a chegar.

“Quando fomos levados para o exterior, no dia 26, também podia ser para sermos fuzilados. Se o golpe fosse de direita era com isso que estávamos a contar.”

Álvaro Pato e a mulher, Regina Pato, em casa. Regina, namorada desde antes do 25 de Abril de 1974, também esteve em Caxias, à espera da libertação dos presos. Foto: Inês Leote

Depois de abraçar a mãe e a irmã, Álvaro só queria ir para Vila Franca de Xira, para casa dos avós, onde tinha vivido a vida toda, até aos 20 anos.

“Foi uma alegria imensa para a minha avó, que era uma senhora de armas, que tinha passado anos a caminho das prisões para visitar os três filhos que foram presos, os netos, as noras, enfim, uma história difícil de contar sem me emocionar.”

Sem nos emocionar, a todos.

Viva o 25 de Abril!

“Lisboa que amanhece”: a série da Mensagem de Lisboa nos 50 anos do 25 de Abril

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Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.

Inês Leote

Nasceu em Lisboa, mas regressou ao Algarve aos seis dias de idade e só se deu à cidade que a apaixona 18 anos depois para estudar. Agora tem 23, gosta de fotografar pessoas e emoções e as ruas são o seu conforto, principalmente as da Lisboa que sempre quis sua. Não vê a fotografia sem a palavra e não se vê sem as duas. É fotojornalista e responsável pelas redes sociais na Mensagem.

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1 Comentário

  1. Estou muito grato à jornalista que nos mimoseou com estes relatos de luta corajosa contra o regime opressor e criminoso de Salazar…
    Saúdo e louvo com muita admiração quem se predispos a registar as suas vivências, relatando, para a História, as sevícias, as torturas que a PIDE, sem pejo, nem o menor escrúpulo , infligida aos presos politicos.
    Ccruz

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