Nesta reportagem:

I - Um sonho nascido nos primórdios do cinema em Lisboa 
II - A história por detrás do Cine-Estrela: como um casal aqui chegou? 
III - Os filmes de Charlot, os gelados, o "bolo podre"... e mais animais dentro de sala
IV - O passado nos graffitis de "Trauma"
V - O fim do Cine-Estrela

“A minha tia até parava o trânsito. Usava o cabelo loiro, longo, e ia de salto alto projetar os filmes.” É uma memória evocada por Miguel Simões num domingo de manhã, na Feira das Galinheiras, onde vende edredões e atoalhados. A sua tia Josefa, por todos conhecida por “dona Zefinha”, era, em conjunto com o “tio Zé”, o marido, quem geria um espaço antes de grande importância para a Charneca do Lumiar, na freguesia de Santa Clara. Esse espaço nada mais era do que o único cinema que ali existia: o Cine-Estrela.

Miguel Simões, sobrinho dos donos do Cine-Estrela, é feirante nas Galinheiras. Foto: Líbia Florentino

O Cine-Estrela foi um dos muitos “cinemas piolho” que surgiram na cidade de Lisboa no século XX – cinemas precários que se disseminaram nos bairros mais afastados do centro da cidade, onde os bilhetes eram baratos, as cadeiras de pau e nem sempre havia as melhores condições, como o próprio nome indica.

Ali, a população da Charneca do Lumiar passou a poder rir-se à custa do Charlot e deliciar-se com filmes indianos. Não havendo oferta cultural na zona, foi uma família de vendedores ambulantes que trouxe o cinema para a Charneca do Lumiar, “Zefinha” e “Zé”.

Foi em 1968.

Hoje, este lugar nada mais é do que uma ruína no Campo das Amoreiras, com letras onde se inscreve ainda o nome, que fazem logo lembrar as estrelas de Hollywood. Os mais velhos que ali moram ainda se lembram, os mais novos já muito ouviram falar do Cine-Estrela.

O cinema encerrou nos anos 1970, quando outras salas de cinema também fechavam com o aparecimento das cassetes VHS. Depois de cinema, seria transformado numa sala de eventos para casamentos ciganos, e há quem recorde ainda uma discoteca africana. Até que foi votado ao abandono.

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Fotos: Arquivo Municipal de Lisboa/Líbia Florentino

Pertence agora à Igreja Filadélfia, cristã, a quem o cinema foi doado pela família proprietária (outra, que não “Zefinha” e “Zé”) para que ali se construísse um centro de dia. Não se sabe ao certo quais as motivações da doação a esta instituição, que relação teria esta família com a igreja, apenas o que queria ver dele feito: o tal centro. Mas o edifício está sujeito a algumas restrições de construção, devido à proximidade à pista principal do Aeroporto de Lisboa, conforme explica a Câmara Municipal de Lisboa. E nada ali aconteceu ainda.

O pastor Jorge, que pertence à Igreja Filadélfia, esclarece que ainda há dois herdeiros que detêm uma parte dos terrenos – a quem não conseguimos chegar para mais esclarecimentos. O que se sabe é que “não está nada projetado”, confirma o pastor.

De porta fechada, essa estranha ruína, sem telhado, permanece expectante no extremo norte da cidade de Lisboa, já praticamente na fronteira com o município de Loures.

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Foto: Líbia Florentino

Um sonho nascido nos primórdios do cinema em Lisboa 

Na cabine de projeção, estaria sempre “dona Zefinha”, com o “macaquinho Chico”, ao ombro, um macaco a sério. Ou então acompanhada pelo tio Zé, por quem o macaco Chico morria de ciúmes, ao ponto de um dia o ter arranhado da cabeça aos pés, conta-se.

São memórias que foram recuperadas no Festival TODOS de 2021 e 2022, quando este espaço, o velho cinema, voltou a abrir-se para a comunidade e projetar filmes.

Mas não são as únicas.

O Cine-Estrela terá aberto portas, no Campo das Amoreiras, no ano de 1968. Mas, para perceber toda a história, há que recuar a finais do século XIX, a uma outra Lisboa, que não só crescia, como recebia, pela primeira vez, a sétima arte: o cinema.

Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

No dia 18 de junho de 1896, pelas 20h45, o animatógrafo estreava-se no Real Coliseu de Lisboa, na rua da Palma. Tal como acontecera em dezembro de 1895 em Paris, quando os irmãos Lumière projetaram o primeiro filme comercial, passado numa estação de comboios, a reação foi de espanto.

Desse dia em diante, o cinema tomou de assalto as cidades em todo o mundo. Em Lisboa, novos operadores e máquinas foram aparecendo em salas como o São Luís e o Teatro D. Amélia.

Mas se, no início do século XX, o centro de Lisboa fervilhava com os novos filmes de Hollywood, o mesmo não acontecia nos bairros mais afastados do centro. E é neste contexto que começam a surgir os chamados “cinemas piolho”.

O primeiro cinema piolho da cidade terá sido o Salão Lisboa (cujo letreiro ainda resiste), na rua da Mouraria, que abriu portas em 1915. Nele, era proibido entrar sem sapatos, pelo que os miúdos da Mouraria arranjavam um estratagema para conseguirem assistir ao filme: um deles comprava bilhete e entrava com sapatos e depois atirava-os pela janela para que o próximo pudesse entrar, e assim sucessivamente. Numa reportagem do Observador de 2020, assinada pelo crítico de cinema Eurico Bastos, fala-se destes espaços sui generis da cidade do século passado.

O Salão Lisboa hoje. Foto: Inês Leote

Ao longo dos anos, foram abrindo mais: o Cinema Popular, em Marvila; o Cine Oriente, na Penha de França; o Max, no Alto do Pina… 

E, claro, o Cine-Estrela. 

A história por detrás do Cine-Estrela: como um casal aqui chegou? 

Já a história cronológica do Cine-Estrela é difícil de traçar.

Mas houve quem tenha escavado bem fundo, desvendando segredos.

Foto: Raquel Belchior

Em 2021 e 2022, o Festival TODOS esteve presente no território de Santa Clara. Durante uma visita técnica à freguesia, Raquel Belchior, da equipa do festival, reparou naquele edifício abandonado e espreitou pelo buraco da sua fechadura. Percebeu que a tela do cinema estava incólume.

“Foi instantânea a vontade de lá entrar e a perceção de que era um lugar especial que merecia ser investigado…”

A Igreja Filadélfia cedeu-lhes o espaço para que lá pudessem desenvolver alguma ação no contexto do festival. Foi então que perceberam que, para além de cinema, o Cine-Estrela fora também casa.

“Percebemos que aquele espaço tinha sido verdadeiramente habitado, tinha vivido lá uma família”, explica Raquel. “E isso foi um fator determinante para olharmos para aquele espaço de uma forma diferente, é diferente trabalharmos um sítio cuja função era só de entretenimento e perceber que, para além desse fator, havia o fator casa.” 

Quem lá viveu, afinal? Já os conhece: José e Josefa, tios de Miguel Simões que hoje vende na Feira das Galinheiras.

Ela vinha de Alcochete, ele da Serra da Estrela, e, durante anos, terão percorrido o Ribatejo com fitas de filmes e máquinas de projeção até se instalarem permanentemente em Lisboa, no Campo das Amoreiras. Arrendaram um terreno que transformariam num cinema e numa barraca nas traseiras, onde passaram a viver.

Para além do Cine-Estrela, José e Josefa arrendaram também um outro espaço: o Cine Texas, no Bairro das Galinheiras, que funcionava num barracão de zinco.

O Cine Texas. Foto: Arquivo Municipal de Lisboa

Miguel é do tempo desses dois cinemas.

Nessa altura, o Bairro das Galinheiras, a Charneca do Lumiar, a Ameixoeira eram zonas onde se instalava a população vinda de meios rurais. “Era para ali que imigrava a gente da aldeia”, diz Miguel, que vivia a saltar entre a barraca dos tios, nas traseiras do Cine-Estrela, e a barraca dos seus pais.

Durante o Festival, Raquel Belchior conseguiu falar com Miguel, que foi uma pessoa fundamental para o trabalho desenvolvido no Cine-Estrela. “O Miguel falou-nos dos donos do cinema de uma forma muito afetiva, deu-nos esta camada da afetividade, da casa, da família. É uma história surreal: o macaco na cabine de projeção, as memórias das pessoas…”

Os filmes de Charlot, os gelados, o “bolo podre”… e mais animais dentro de sala

Desses tempos, Miguel lembra-se bem dos “gelados e dos bolos” que comia no cinema, e dos animais de estimação: não era só o macaco Chico, também era o papagaio Jacó e, mais tarde, dois saguins. Mas, acima de tudo, lembra-se da tia Josefa, e da sua postura de estrela de cinema. “Era uma mulher muito bonita”, recorda.

Ainda que não seja o único com memórias para contar.

Os antigos bilhetes do Cine-Estrela. Foto: Líbia Florentino

“O meu tio vendia pipocas no Cine-Estrela, foi lá que eu vi os primeiros filmes do Charlot!”, recorda Teresa, uma senhora que espera pelo autocarro na paragem do Campo das Amoreiras.

E, na página de Facebook “Lisboa Antiga”, descobrimos vários fregueses que deixaram comentários sentidos à publicação de uma fotografia antiga do Cine-Estrela:

“Como em miúdos éramos tão felizes e não sabíamos. Estas novas gerações nunca o saberão.”

“Muitas saudades. Foi neste cinema que vi o meu primeiro filme, tinha eu 12 anos.”

Durante o tempo que passou na freguesia de Santa Clara, Raquel Belchior procurou exatamente este tipo de memórias através de conversas com locais. Memórias que incorporou no espetáculo “A Céu Aberto” no Cine-Estrela, integrado no festival e protagonizado pela atriz Ana Lúcia Palminha. E que resultou também numa curta-metragem.

O espetáculo refletia a importância do cinema para a população.

“Estes espaços tinham um peso muito grande nestes polos urbanos, que acabavam por estar na periferia, mas vivia imensa gente ali”, diz Raquel.

As memórias de quem por ali passou confundem-se, uma particularidade que Raquel também não ignorou. “Havia uma senhora que dizia que tinha visto muitos filmes indianos, de Bollywood, já outra dizia: ‘nem pensar, nunca vi lá um filme indiano’!”. A desfiar memórias, o fascínio dos locais pelos grandes heróis de cinemas também se fez sentir, e há quem recorde, em criança, vir para o Campo das Amoreiras reproduzir as cenas de luta dos filmes do Bruce Lee.

Mas, para muitos que frequentaram este piolho, o importante não era o filme: era o espaço de convívio, de encontro. “Os miúdos lembram-se do bolo podre que se comia no bar”, conta Raquel. “Ir ao Estrela era uma oportunidade para beberem o refrigerante que não podiam beber à semana.” 

A relação que os fregueses criaram com o Cine-Estrela vai para lá da tela, dos bolos, desse espaço físico. Raquel recorda com emoção o dia em que finalmente conseguiu falar com um senhor, muito reservado, que se comoveu ao falar do antigo cinema. “O senhor emocionou-se porque as memórias que tinha do pai era de ele o levar ao cinema. Era o único momento de lazer que tinha com ele.”

O passado nos graffitis de “Trauma”

Com a passagem do Festival TODOS pelo Cine-Estrela, houve um jovem morador das proximidades que conheceu pela primeira vez o interior daquele edifício deixado ao abandono. Um jovem artista, conhecido como “Trauma 21”, que, ao ver o cinema por dentro, propôs-se a cobri-lo de arte, de grafittis.

“Eu sempre ouvi os mais velhos a falarem dos filmes do Bruce Lee, e de saírem daqui à pancada”, recorda Trauma.

A Igreja acedeu ao pedido.

Trauma 21, que cresceu no Bairro de Angola, e cujo nome artístico remete para esse mesmo bairro (21 corresponde às duas primeiras letras do abecedário, BA, já Trauma é uma palavra que se escreve da mesma forma em várias línguas), procura dar um pouco de vida a um espaço onde já quase nada resta.

Ele, que descobriu o desenho ainda em miúdo, deixou marcadas paredes com os seus grafittis, que remetem para um universo de “caveiras, cartoons, cannabis“.

O fim do Cine-Estrela

O cinema fechou no final da década de 70. “Quando apareceram as cassetes, muitos cinemas fecharam”, lamenta Miguel Simões. As cassetes, a televisão, o crescimento da cidade… tudo isso matou lentamente estas antigas salas de cinema que serviam estes bairros.

Um drama que todos conhecem do filme “Cinema Paraíso”, sobre uma antiga sala de cinema num bairro italiano que acaba por fechar com a chegada de novas formas de consumir entretenimento.

Depois do fecho do Cine-Estrela, José e Josefa continuaram a feirar – profissão que Miguel herdou dos tios e dos pais – e a viver nas traseiras do antigo cinema. Com a morte deles, o Cine-Estrela, que pertencia a uma outra família, seria então doado em finais dos anos 90 à Igreja Filadélfia.

Mas, desde então, permanece abandonado.

Num vídeo sobre o processo de construção do espetáculo “A Céu Aberto”, Raquel Belchior desabafa:

“Os sítios, independentemente daquilo que são, precisam de ser vividos. Mas também não se pode ocupar um espaço, apagando aquilo que foi.”


Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt


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3 Comentários

  1. Tenho 70 anos. Vi o meu primeiro filme no cine Texas, nas Galinheiras com a idade de 16 anos. No final bebia-se um pirolito ou uma laranjada e jogava-se aos matraquilhos. Era um local de convívio aos domingos à tarde.

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