Fez-se história por duas vezes no sábado, 14 de outubro. Se, por um lado, o festival Iminente, criado por Vhils, fazia a ocupação inédita, pacífica e de inspiração do Terreiro do Paço, onde este ano aconteceu, por outro, Dino D’Santiago levou a história de um novo rapper a palco. Pallex, um dos muitos rappers que fazem música no Estabelecimento Prisional do Linhó, em Alcabideche.
É a este lugar que o artista tem dedicado parte dos últimos meses de trabalho, convidado para um projeto que se chama “De Dentro para Fora”, coordenado por Filipe Gameiro Neves, professor, maestro e compositor, em parceria com a direção da prisão. No Linhó, onde a música é a liberdade maior e o crioulo o meio de lá chegar.
Foi de lá que Pallex, também conhecido como Paulinho, partiu para o sonho de se tornar rapper. Antes de subir ao palco do Iminente, como convidado de Dino D’Santiago, sentaram-se os dois para contarem a sua história, a convite da Mensagem, no palco Choque. E fizeram história.
Dino, o festival Iminente traz o tema “descentralizar”, precisamente ao centro da cidade, ao Terreiro do Paço, este ano. A presença aqui é algo inédito. E esta edição fala-nos muito sobre periferias, algumas das quais tu nos tens falado também, nas tuas músicas e no discurso que partilhas. Sentes-te um representante de periferias?
Dino D’Santiago: Eu não sou um homem das periferias, eu sou a periferia num homem. Sinto isso desde muito cedo. Em tudo o que fazia, entrar num supermercado e ter logo a sombra de um segurança atrás a ver se eu levaria alguma coisa sem pagar. Depois, já um pouco mais crescido, por exemplo, numa Zara no Colombo, ver os seguranças e perceber que estão ali em manobras uns com os outros para ver o que é que uma pessoa anda a fazer. Eu cheguei ao ponto de tirar o dinheiro e de dizer: “olha, vou comprar”. E, às vezes, não queria levar sequer, mas comprava só para não ter aquela afronta de sair. E saía, mas tinha aquela vergonha de sair e, de repente, começar a apitar por algum motivo. Então, sem qualquer dúvida, acho que senti muito mais periferia num homem, senti o inverso.
Falas dessa periferia, a interior. Mas aqui o Pallex vem daquilo que nós associamos a uma periferia na cidade, geograficamente. Porque tu, Pallex, vens de um bairro, que depois se transforma no que hoje conhecemos como a Alta de Lisboa. Como é que essa periferia influenciou o que tu fazes hoje?
Pallex: Eu vim do bairro da Cruz Vermelha, que hoje é a Alta de Lisboa, no Lumiar. Vim do meio daquilo que dizem que são bairros problemáticos, os problemas e essas coisas todas…
Isso era o que os outros te diziam. Mas o que era para ti esse bairro?
Pallex: Para mim era um lugar de aconchego, de “vem para a rua, podes brincar com a malta à vontade”. A vizinha ficava a ver, a tomar conta de ti enquanto a tua mãe está a fazer outra coisa qualquer, está a trabalhar. Uma vida mais… mais difícil, mas as pessoas são mais dadas umas às outras, por assim dizer.

Dá, sim, para dizer que passas a estrada e vês uma realidade diferente. Vês os prédios velhos, vês os prédios novos agora, aquilo é a Alta de Lisboa. Hoje em dia diz-se que é a Alta de Lisboa, mas para mim continua a ser o bairro da Cruz Vermelha.
PALLEX
E como é que foi para ti viver a transição para o que conhecemos hoje como a Alta Lisboa?
Pallex: De certa forma, a gente ainda sente a mesma coisa. Mudou-se à volta, levantaram-se prédios novos….
É apenas um embrulho diferente?
Pallex: É. A gente só fica no meio. Dá, sim, para dizer que passas a estrada e vês uma realidade diferente. Vês os prédios velhos, vês os prédios novos agora, aquilo é a Alta de Lisboa. Hoje em dia diz-se que é a Alta de Lisboa, mas para mim continua a ser o bairro da Cruz Vermelha.
E esse bairro, essa vivência, está na tua música? Fazes questão que esteja?
Pallex: Sim. Em certa parte, é um bocado daquilo que eu também sou: a maneira de pensar, a maneira de agir, a maneira de ser. A maneira como lido com as pessoas. Vem tudo de lá.
Quando vinha a Lisboa, saía no Arco de Cego e ia diretamente num táxi para a Cova da Moura. E, para mim, era um fascínio. Eu via aquilo sentia: “olha que há negros afortunados”. As casas eram de betão e no meu bairro em Quarteira não. Depois entravas nas casas e vias onde é que a pobreza residia.
dino d’santiago
Dino, a tua maneira de ser – e tu dizes muito isso sempre que falas publicamente – está muito ligada à tua vivência nesta Nova Lisboa, não é? A que cantas. É interessante pensar que a tua Lisboa começou ali na Amadora: Lisboa, para ti, era aquela imagem da Amadora, da Cova da Moura. Como é que isto te definiu?
Dino D’Santiago: Antes de mais, sempre que saía de Quarteira e vinha para a Lisboa que eu conhecia, era somente sair no Arco de Cego e ir diretamente num táxi para a Cova da Moura. E, para mim, era um fascínio. Eu considerava todas aquelas pessoas ricas, porque via um, dois, três andares em algumas casas de betão, e aquilo, para mim, tinha muito valor. As nossas casas [em Quarteira] eram de contraplacado, chapa de zinco, terra. E então, quando eu via aquilo sentia: “olha que há negros afortunados”. Ou seja, pessoas que têm posses e que podem ter edifícios e até crescer.
Depois fui percebendo que não. Aquilo era uma ocupação, um terreno privado, e aquelas pessoas, na maior parte delas pedreiros, pessoas que trabalham com a construção civil, tinham a capacidade de construir, mesmo que de forma ilegal, aquelas casas de betão. Depois entravas nas casas e vias onde é que a pobreza residia.
Mas eu vinha muito feliz quando saía daquele contexto. Ali já sabia que tinha água na torneira. Em Quarteira não, tínhamos de ir a uma bica buscar água. Então, sentia-me bem sempre que vinha.
Depois, o pessoal estava sempre na moda, estava sempre no ponto. Ver o fenómeno da Babilónia e o número de pessoas que lá iam… Eu gostava de ser uma daquelas pessoas da Cova da Moura.
Quando eu vim para a Baixa de Lisboa, aliás, numa altura em que o meu pai precisava de alguns documentos, foi aí que eu vi muitos africanos, todos à espera à espera do documento. Por acaso, não sei como é que o meu pai conseguiu, mas já estava tudo orientado. Chegámos, conseguimos logo a minha cédula, porque, infelizmente, mesmo nascendo em Portugal, se algum dos teus pais não tivesse nacionalidade portuguesa, tu também, como filho, não tinhas.
Mas, hoje, essa realidade mudou, mesmo que nós cheguemos a uma loja de cidadão, e as pessoas [que lá trabalham] ainda não saibam que uma criança que nasce agora em Portugal, neste outubro de 2023, é automaticamente nacionalizada e naturalizada portuguesa. Infelizmente, essa mensagem não chegou, não passou, temos pessoas que continuam ignorantes à nossa frente, a atender e a dizerem que “ não, o teu pai e a tua mãe não são portugueses, então não há forma de…”. E é duro.
E há pessoas que acabam por nunca conseguir ter os documentos.
Dino D’Santiago: Nunca, nunca. Os meus primos nasceram em 1982 e, adultos, não têm documentos.
Lá está: as notícias que são menos boas são as que vendem mais rápido, mas estamos num país diferente. E esta ocupação pacífica [do Festival Iminente] é prova disso. Haver abertura, para mim, numa Praça do Comércio, num Terreiro do Paço, é dar-se voz, dar-se palco àquilo que um dia foi a periferia desta cidade linda.
dino d’santiago
RECORDE ESTA HISTÓRIA, QUE CHEGOU À ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA:
E afeta todos os campos da sua vida, não é?
Dino D’Santiago: Afeta tudo, porque tu perdes o direito de ser um cidadão, porque não tens o teu número de contribuinte, ou o teu número de BI. Lá está, podes ter a tua residência, mas perdes muitos direitos. Não podes viajar como queres, enfim, são várias… só quem teve o BI azul sabe, estás a ver? E eu ainda fui essa pessoa que teve o BI azul, e depois passei a ter o amarelo e senti que aquilo foi ouro. Hoje, vejo o meu filho e a minha filha com facilidade em ter o seu cartão de cidadão e fico feliz por ver que o país realmente está em ordem.
E eu olho mesmo com muita positividade para tudo isto. Ainda hoje, saí de Quarteira e, porque sou embaixador do programa “Escolhas”, vejo que realmente o abandono escolar é cada vez menor. Desceu drasticamente o número de pessoas que abandonam e há cada vez mais alunos. Mostra que o país está a mudar. Lá está: as notícias que são menos boas são as que vendem mais rápido, mas estamos num país diferente. E esta ocupação pacífica [do Festival Iminente] é prova disso. Haver abertura, para mim, numa Praça do Comércio, num Terreiro do Paço, é dar-se voz, dar-se palco àquilo que um dia foi a periferia desta cidade linda.
Eu tenho muita esperança.

Foi na Cova da Moura que tu viveste essa Nova Lisboa que cantas, ou isso vem com Chelas na tua vida? Tu moraste uma temporada em Chelas…
Dino D’Santiago: É verdade. Eu sinto que a Nova Lisboa, a Amadora e a Cova da Moura, não eram a minha Nova Lisboa, eram só Lisboa. Era a Lisboa que eu conhecia, a única Lisboa. Chelas foi a minha Nova Lisboa. Foi uma Chelas que foi introduzida pelo Barbosa [rapper], o GQ, e o Sam the Kid.
E tinhas noção de periferia em Chelas?
Dino D’Santiago: Não tinha. Não tinha ainda noção de periferia em Chelas. O Sam vivia com a mãe num apartamento que eu considerava muito digno. E o “quarto mágico” [dele] é um paraíso. Chelas pra mim era um sonho. Sinceramente, as pessoas com quem eu lidei viviam muito bem. São pessoas que se conseguiram realizar através dos seus sonhos, conseguiram fazer a sua vida normal. E eram artistas que já estavam bastante conceituados. E quando assim é, as portas todas do bairro abrem-se.
Depois, fui conhecendo algumas pessoas em que realmente notas que se calhar é a Chelas que ficou no nosso imaginário. A da zona J, mesmo romantizada, é dura, ainda hoje. E tu [Catarina Reis] trouxeste um livro ao mundo de uma pessoa que era desse lugar, e que ainda hoje se sente… O nosso Bruno Candé – eu olho para ti e penso sempre nele. Acho que a Chelas de hoje talvez seja muito mais a Nova Lisboa do que a Cova da Moura. Sem qualquer dúvida.
A ideia de periferia, como temos falado aqui, não é só geográfica, mas é também aquilo que, por exemplo, o Pallex viveu na pele, e que traz agora num novo single. E que faz parte também daquilo que vos cruza aqui aos dois. Pallex, conta-me um bocadinho desse single. Como é que viveste esta periferia na pele e como é que a trazes para a música?
Pallex: “Cheiro de cadeia”… Essa música foi inspirada na cadeia, escrevi-a lá. Foi baseada no facto de nós, os reclusos, quando saímos para a rua, vivermos como se o cheiro da cadeia estivesse entranhado. Porque basta entrares numa sala e dizeres que já foste preso que toda a gente vai pensar tu vais roubar a carteira. Sentes discriminação na pele. Daí veio a ideia. Lá dentro, via os meus irmãos a saírem e dizerem “Eh pá, aqui na rua não está fácil”.
Aí é quando te sentes mais na periferia?
Pallex: Eu não diria periferia, porque não vejo a periferia de uma maneira tão negativa. Vejo mais como se ainda estivesse preso. Como se ainda estivesse preso nalgum sítio. Esta música serve para passar a mensagem, a todas as pessoas que passam por essa situação, de que é possível: mesmo vindo com esse cheiro na pele, é possível fazer o que quiseres fazer.
Porque basta entrares numa sala e dizeres que já foste preso que toda a gente vai pensar tu vais roubar a carteira. Sentes discriminação na pele. Daí veio a ideia. Lá dentro, via os meus irmãos a saírem e dizerem “Eh pá, aqui na rua não está fácil”.
PALLEX
Mas tu lá não deixaste de fazer música, mesmo lá dentro. Tens uma música, que vais cantar aqui hoje e que nos mostra isso, não é? Como é que se chama?
Pallex: “Sofrer de Borla“.
Foi uma música que tu escreveste lá dentro [no estabelecimento prisional do Linhó], que tem uma história que tu trazes de lá, dessa vivência…
Pallex: A história da música é de um recluso, um colega meu, que suicidou-se por causa da namorada. Faltavam uns tempos para ele sair, a namorada traiu-o e ele suicidou-se. E fez-me ver que amar é de graça, não é? E sofrer também. E eu digo na música que ele tinha outra escolha. Só que ele não viu. Ele viu e fez aquilo que achava certo. E daí veio a sofrer de borla e amar de borla.
Mas agora estão todos a perguntar: mas porque é que eu disse que o Dino tem uma ligação a esta vivência do Pallex no Linhó? Porque o Dino começou lá um projeto importantíssimo, que valoriza o crioulo, a música e quem está na prisão do Linhó. Como é que começou tudo?
Dino D’Santiago: Na altura foi um professor, o professor Filipe [Gameiro Neves], que me falou de como o crioulo era língua de transformação na vida das pessoas. E porquê o crioulo? Porque grande parte dos reclusos têm origem cabo-verdiana e o crioulo é a língua mais falada no Linhó. Ou seja, não importa se és ucraniano, se as tuas origens são 100% portuguesas – o que é ser 100% português, não é? – que tenhas outra origem, que a tua naturalidade seja outra. Quando chegas lá dentro, fala-se o crioulo. E os guardas não ficavam confortáveis com esta questão. Muitas vezes, proibiam de falar e o professor quis desconstruir esse lugar.
No crioulo de Cabo Verde, a base lexical da língua é composta por 70% da língua portuguesa, então, não há porque nós não nos esforçamos para aprender a comunicar em crioulo. Eles já perderam a liberdade, não é? Física, de estar lá fora. Quando tu matas, a única coisa que a pessoa tem é expressar-se em crioulo, e é muito mais natural. E obrigas e oprimes para que a pessoa se expresse noutra língua. Mas, por outro lado, se tu vieres da Ucrânia, se vieres da Inglaterra, permitem que fales a tua língua natural.
E o professor chamou-me. Porque o crioulo realmente transformou a minha vida, deu-me um mundo, fez-me viajar e conhecer um mundo, quase um mundo inteiro – não digo todo, mas já conheço todos os continentes.
Grande parte dos reclusos do Linhó têm origem cabo-verdiana e o crioulo é a língua mais falada no Linhó. Mas não importa se és ucraniano, se as tuas origens são 100% portuguesas – o que é ser 100% português, não é? – que tenhas outra origem, que a tua naturalidade seja outra. Quando chegas lá dentro, fala-se o crioulo. E os guardas não ficavam confortáveis com esta questão. Muitas vezes, proibiam de falar e o professor Filipe quis desconstruir esse lugar.
dino d’santiago
E dás-nos a conhecer esse mundo que já visitaste quando cantas em crioulo.
Dino D’Santiago: Sempre, sempre. E, hoje em dia, grande parte do meu repertório é em crioulo. O crioulo veio dar-me um espaço que a língua portuguesa não me tinha dado, porque eu transportava para a minha vida vários dogmas religiosos, que faziam com que quando começava a escrever em português, eu próprio bloqueasse automaticamente, por sentir que estava em pecado, ou por sentir que deveria estar a ser ambicioso demais, e limitava-me. Quando comecei a escrever em crioulo, não tive fronteiras. Mudou a minha vida, aceitei prontamente.
Quando cheguei ao Linhó, a parte mais interessante foi quando eu comecei a cantar algumas canções minhas que tinha levado, e depois sugeri ao professor deixar os beats para que eles pudessem desenvolver e fazer, por exemplo, remix. Mas aquilo depois desenvolveu-se de tal forma… eu fui recebendo algumas maquetes, então decidi mesmo comprar um estúdio, levar o estúdio lá para dentro, e começarmos a trabalhar de dentro para fora [de Dentro para Fora é o nome do projeto no Linhó].
Foi quando eu ouvi o Pallex. Disse logo: “este gajo tem que fazer mais música”. Mas tem muita gente lá com muito valor, que já escreveram para muitas outras pessoas que estão cá fora. Eu ouvi a “Sofrer de Borla” a capella, porque ele nem queria mostrar, ele estava ali só a curtir. Foi bonito, porque depois nasce uma canção do Pallex, com um rapaz de etnia cigana, que é o Tsunami, e foi a primeira vez que eles se juntaram, em estúdio.
Há muita gente também de etnia cigana lá dentro, mas eles isolam-se. Produziram e está a canção feita.
Neste momento, temos 10 canções, neste cruzamento maravilhoso. Deixou-me mesmo muito, muito feliz. Está quase a sair o disco. Felizmente, temos o Pallex cá fora, é o primeiro ainda de todos. E está aqui [à nossa frente] o Berlok, o produtor de todo o álbum. Veio de Bragança, trouxe os beats, montou tudo. Acabou de entregar os temas todos ao Brunex. O Brunex já está a misturar e sem o Berlok seria impossível.
Pallex: É um mágico.
Dino D’Santiago: É um mágico. E hoje o beat que vamos tocar é mais um beat dele, e é bom tê-lo aqui, diretamente de Bragança. O Linhó mudou a minha vida e a minha perspetiva de vida. Sobre valorização e a gratidão – e aproveito para agradecer ao professor Filipe e à diretora do Linhó. Eles ensinaram-me muito, por exemplo, quando eu disse: “manos, temos que fazer um som que respira saudade, porque é o sentimento que todos nós conhecemos”. E eles responderam: “Ó Dino, aqui a saudade não entra, porque a saudade ferve, e a saudade faz-nos sentir. Aqui, no máximo, deixamos entrar a lembrança, por isso, podemos lembrar coisas boas para nós, mas saudade é proibido neste lugar”. E aquilo bateu-me de tal forma…
No final do dia, cada um deles estava isolado na sua cela. Quando chegou a altura do Natal, os guardas começaram a fazer greves, e eles só tinham direito a uma hora do dia lá fora, para poderem ir ao parque. Um de cada vez, ou alguns, mas foi uma situação dura. Sem visitas, sem nada, só depois é que pude lá voltar, e foi duro perceber isso. Porque vi realmente, depois de passar mais tempo com eles, que eu ou o Berlok podíamos ser um deles.
O Linhó mudou a minha vida e a minha perspetiva de vida. Sobre valorização e a gratidão.
dino d’santiago
Às vezes tentamos perceber o que é que define uma pessoa, o que é que define o crime, o que é que podemos chamar de crime, mas se eu fizesse algumas perguntas simples a esta plateia, nós poderíamos entender um pouco melhor tudo isto. [Dino dirige-se à plateia] Quem daqui é filho de uma família monoparental, ou seja, só tem um pai ou uma mãe em casa? Metam o braço no ar. Então todos os outros tiveram pai e mãe em casa, não é? Quem daqui já teve alguém da sua família encarcerado? Preso. Certo. O resto nunca teve ninguém preso. Quem daqui teve mais do que cinco irmãos em casa? Ok, bom. Quem daqui já sentiu fome sem saber se o frigorífico iria ter algo no dia seguinte? A cor é quase sempre a mesma, os mesmos foram sempre levantando a mão.
Se estas pessoas estivessem numa maratona, ficariam lá atrás e os outros começariam lá à frente, para fazer a mesma corrida. E, muitas vezes, é isto que acontece na nossa vida. De onde nós vimos, temos que ultrapassar muitas barreiras até chegarmos a algum lugar. Outras pessoas têm o privilégio de simplesmente serem cidadãos comuns, com os direitos e oportunidades que os Direitos Humanos definiram um dia. Estamos quase a fazer 50 anos de democracia e há muita gente ainda que vive no limiar da desumanidade. Quando começamos a pensar nisso, temos que ver o que é que leva algumas pessoas a cometerem um delito.
Em minha casa éramos só três e a luta era gigantesca para os iogurtes. Então, eu nem quero pensar o que é ter 12 irmãos, como o Pallex tem.
O Tsunami, do Linhó, por exemplo, tem toda a família presa. A irmã, que vive em Coimbra, é a única que está livre e, como não se dão bem, ela não o visita. Ele disse “eu saio para quê? O meu pai está preso, a minha madrasta está presa, o meu irmão está preso – o que é que eu vou fazer lá fora?”.
Eu peço que reflitam sobre isto em casa: nós não nascemos todos com as mesmas condições, não temos todas as mesmas oportunidades. Quando, vocês virem alguém como o Pallex, a ter uma segunda oportunidade, não olhem para ele como um ex-recluso, mas como uma pessoa que teve o direito a uma segunda oportunidade, porque errar é humano. É só isso.
(APLAUSOS)
Em minha casa éramos só três e a luta era gigantesca para os iogurtes. Então, eu nem quero pensar o que é ter 12 irmãos, como o Pallex tem.
dino d’santiago

Pallex, deixa-me perguntar-te: o que é que tu sentes quando o Dino te diz que tens uma obra de arte nas mãos? Que és bom a fazer aquilo que sonhaste fazer, quando te diz “isto dá música”. Sentes que o teu lugar na maratona, como o Dino dizia, está um bocadinho mais adiantado?
Pallex: Quando me dizem “tu fazes isso bem”… de onde eu venho isso é normal, somos muitos a fazer isto. Eu escrevo bem, o meu irmão dança bem. Na periferia, isso é normal, há muito talento. Quando somos mais jovens, a gente ocupa-se disso. Eu sempre gostei muito de música, foi um bichinho que me foi passado pelo meu irmão mais velho. O primeiro rap de que me lembro de ouvir foi ele que trouxe. Ele tinha dois [leitores de] MP3 e um estava lá sempre em casa. Quando um se estragava nós dobrávamos os fios até dar. Na altura, eu não escrevia, eu só estava a ver e fazia freestyle. Ele já escrevia, já cantava.
Depois disse-me “olha, tu és bom, é melhor que comeces a escrever”. Então, fomos à casa de um amigo dele, que tem um estúdio improvisado no quarto. E isso é uma coisa que na periferia pega, porque nós não temos nada para fazer. Porque, em casa, éramos 13 irmãos, éramos 17 ao todo, com primos e tal. Dentro de casa, somos só mais uma pessoa. A mãe não tem tempo para dar atenção a todos, porque tem que trabalhar, o pai está fora também para trabalhar, a mãe também está em casa a cuidar das coisas, tem roupa para lavar, dar comida, isso e aquilo.
E a gente, quando sai para a rua com os nossos colegas, estamos ali. É o nosso interior. Vamos lá, tem gente para cantar, canta, o outro já dança. Eu não imaginava cantar durante estes anos todos, era daquelas coias em que a gente diz: “ah, eu gostava de fazer isso, é um sonho”. Mas não é algo que tu olhas para o lado e vês que está perto.
Dino, que mensagem trazes tu quando pegas no Pallex e o trazes para este palco do Iminente contigo?
Dino D’Santiago: Eu acho que ele é que me traz, estás a ver? Eu lembro-me que, quando o Vhils me convidou, o Pallex foi o primeiro nome em que eu pensei: “eu tenho que conseguir metê-lo mo palco”. E quando fui atuar à Amadora, consegui finalmente levá-lo. As quartas-feiras no Linhó são religiosas para mim, naquele lugar. E esta oportunidade é como se eu trouxesse todos eles cá para fora, através do palco. E eu sei que eles sentem isso lá dentro. Então, só de pensar que estas pessoas… eles não podem ter um MP3, não podem ter um telefone, não podem ter nada disto, eles decoravam o beat, decoravam o tempo do beat e iam para a cela escrever. Esperavam uma semana até conseguirem gravar outra vez, a decorar a letra. Muitos deles não sabiam escrever no papel, e então decoravam a letra na mente, sem ouvir o beat. Porque o sistema não permite que eles tenham acesso àquilo que, para mim, devia ser um bem comum.
Mas eu já combinei: vou falar com a Ministra da Justiça, que já está a falar para precisamente mudar esta atitude. Agora, é só para este projeto, mas não faz sentido que isso se perpetue, é o mínimo. Qualquer um de nós pode cometer um crime, estar atrás das grades, podem ter a certeza disso, podem mesmo ter a certeza disso. Se entrarem num estabelecimento prisional, vocês vão aperceber-se de que há uma tez que continua insistentemente a ser a mais presente em qualquer estabelecimento prisional, desde a Suécia, à Dinamarca, à Holanda, Portugal, Alemanha, sei lá… E isso tem que mudar, tem que mudar a forma como estes corpos continuam a ser vistos.
Eu não imaginava cantar durante estes anos todos, era daquelas coias em que a gente diz: “ah, eu gostava de fazer isso, é um sonho”. Mas não é algo que tu olhas para o lado e vês que está perto.
pallex
Já muita coisa mudou, e acredito que foram 400 anos muito desumanos, mas há muita coisa que mudou neste último século, pelo menos, e acho que temos que estar atentos. Hoje em dia, não é tudo racismo, simplesmente há pessoas negras a falar sobre o racismo. E isso é o que nunca houve, nunca houve este lugar de fala. Eram sempre pessoas não negras a falarem sobre o racismo e como se deve combater o racismo.
Ainda hoje, estive na apresentação do programa “Escolhas”, que fala mais para esta população que vem de condições mais vulneráveis, mas não havia ninguém no grupo de oradores, ninguém no grupo de assistentes, que fossem ou negros, ou de etnia cigana, ou de outra etnia mais vulnerável. Isso mostra que nós temos que parar de ser caridosos e sermos mais justos, e ser justo é olharmos para esta mesa, para quem cá está – e esta mesa até está uma mesa fixe, mas a Mensagem de Lisboa também já tem esse cuidado.
É um cuidado que deve passar de forma transversal para as escolas. Quanto menos representatividade nós virmos – e a minha escola [em Quarteira] tem 40 nacionalidades – e se nós nos focarmos somente a ensinar a história de Portugal numa ótica ocidental quando temos outras culturas onde vamos beber também, nós perdemos nessa luta de querer defender o que é nosso. O que é nosso é de todos, o que é de todos também é nosso e este é o mundo em que eu acredito.

Quando levo o Pallex para o palco, vão ser muitas nacionalidades a assistirem. Ele vai estar a cantar em crioulo, vai estar a trazer as suas raízes. Vai, espero, ser feliz no palco. Não é um ato de caridade, eu sinto o teu valor. Tu és um Dino, e o que eu quero é só presentear e dar-te um pouco do espaço que já me foi cedido. Que tu possas finalmente ver que é possível, e é só isso que eu quero. Eu só quero semear isto, que é possível contigo, como foi com o Berlok, que finalmente levou o disco para a família dele em São Vicente [Cabo Verde] escutar.
Ver a comunidade toda do bairro dele feliz, com o trabalho de um filho da terra, e saber que ele quer investir também em Cabo Verde. Saber que a miséria é dura, saber que o crack voltou a inundar as nossas ruas – e as nossas ruas em Lisboa também estão a ser inundadas pelo crack. Já não é um cenário dos anos 1980, é real, e isso tudo porque as pessoas não estão bem. Não estão bem mentalmente, não estão bem financeiramente e este pós-covid está a trazer agora as suas repercussões.
Ao mesmo tempo, é um pós-covid que também está dar-nos um Terreiro do Paço, uma Praça do Comércio, para que a mensagem chegue a toda a gente. E hoje eu quero que a mensagem seja realmente Pallex. Não um ex-recluso, mas apenas Pallex.
E antes de terminarmos, quero perguntar-te, Dino, que falavas deste mundo que está doente: sentes que é cada vez mais difícil esse teu lugar de fala positivo?
Dino D’Santiago: Sabes… eu já fiquei muito triste, já fiquei muito triste porque é um país que dá-te coisas tão maravilhosas, é um país tão maravilhoso. Depois, ao mesmo tempo, do outro lado da moeda, consegue-te dar coisas tão duras que te fazem repensar se faz sentido estares aqui. Conectei muito com o Brasil e novamente com Cabo Verde. Percebes que há pessoas que ainda não têm o direito de ter uma opinião. Tens uma opinião e és crucificado, e eu acredito mesmo que, se Jesus Cristo nascesse no século XXI, ele seria muito certamente do bairro da Cruz Vermelha, seria muito certamente da Cova da Moura. Seria novamente morto, assassinado, porque o grande mártir da religião católica é Jesus Cristo, mas Jesus Cristo não nasceu num estábulo porque só estava fugido, não, ele vinha de uma família miserável. Não tinha dinheiro nem sequer para ir para uma pensão, não tinha dinheiro para nada. Há a questão do bafo dos animais para aquecer a criança, o romantismo que nós demos a toda esta questão de Jesus Cristo… Ele nasceu miserável e morreu miserável. E isso é o que acontece todos os dias, todos os dias nos bairros sociais, mães a suicidarem-se porque os filhos vão presos…
Como o Bruno Candé tentava contar, ele que andava com um blocos de notas a perguntar quem é que era os miseráveis da sociedade, não é?
Dino D’Santiago: Claramente! Comprem o livro, acho que é uma das melhores coisas que poderiam fazer. Acho que é uma homenagem lindíssima. Usaste a tua plataforma para dar voz a uma história que muito dificilmente iria para um livro. E ele queria muito.
Nós ficamos à espera que as pessoas façam, mas cada um de nós pode fazer a diferença. Não precisa de muito para fazer a diferença, e às vezes é só olhar para o lado, olhar para o vizinho, ver e perceber se está tudo bem, vermos e percebermos se a pessoa precisa de um ovo, se precisa de arroz, as coisas básicas, eu fiz isso. Fui a Cabo Verde, levei roupas, e vinham as senhoras e diziam: “Não, Dino, traz arroz, traz batata, traz esparguete”. Ali, as pessoas saem do interior de Santiago, onde têm campo para plantar e vão para a cidade à espera de um mundo melhor. Chegam lá e são confrontados com a realidade da inflação e a terem que pagar o triplo por coisas que eles plantavam.
Isso acontece na Europa, as pessoas saem dos meios rurais, vêm para as cidades e são engolidas por não conseguirem dar dignidade sequer à sua família, não conseguem criar os filhos, e depois estão afastados dos avós. Os filhos já são criados pela rua e nós, loucos, já deixamos os nossos mais velhos entregues aos lares da terceira idade. Perdeu-se a magia do nosso mais velho educar o nosso filho, ficar com o nosso filho. Dar amor, nutrir de amor o máximo possível. O nosso tempo é dedicado àquilo que nós chamamos de trabalhar para sobreviver e um dia acabamos todos mortos, exaustos, e sem conhecer a verdadeiro olhar, e o verdadeiro toque do amor.
Sinto-me mais triste do que algum dia fui. Já fui muito mais alegre. Preferia ser mais ‘naive’ [ingénuo], mas hoje também percebo que, muitas vezes, essa resposta violenta é mesmo fruto de uma ignorância profunda.
dino d’santiago
Acho que a melhor mensagem que se pode tirar daqui é precisamente olharmos mais nos olhos uns dos outros, e não julgar. Tentar perceber que realmente é nas crianças que devemos investir. Eu acredito muito na questão da educação, nas crianças, recontar a nossa história, trazer vozes diferentes – ou mais vozes iguais, porque eu acredito que somos todos iguais nesse sentido, e todos diferentes –, para que o mundo fique um pouco melhor.
Sinto-me mais triste do que algum dia fui. Já fui muito mais alegre. Preferia ser mais naive [ingénuo], mas hoje também percebo que, muitas vezes, essa resposta violenta é mesmo fruto de uma ignorância profunda, num mundo que tem tanta comunicação mas onde preferimos educarmos pela comunicação que não é a mais correta e aquela que não atrapalha.

Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
✉ catarina.reis@amensagem.pt

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