Quando conheci o Fogos, ele ainda tinha alguma vida. Como os dias dele contrastavam com os meus, aquilo impressionava-me. Não era que me estimulasse, me agradasse, me entusiasmasse. Tudo ali me sabia a sujidade: as garrafas de cerveja caídas pela casa partilhada com mais quatro, a sala envolta numa névoa, com cheiro a charro acabado de fumar misturado com incenso, centenas de livros empilhados, que iam desde David Ricardo a Hannah Arendt.

Na altura, eu vivia na casa da minha mãe em Guimarães – uma casa permanentemente limpa e arrumada, de cores claras, com livros organizados por ordem alfabética. Até chegar à casa do Fogos, numa transversal à Almirante Reis, nunca tinha visto uma chiclete colada na mesa de uma casa, uma mancha de uma coisa qualquer que já parecia tatuar um azulejo, um cinzeiro a pingar beatas. E, claro, também nunca me tinha passado pela cabeça que houvesse quem não levasse o lixo à rua pelo menos uma vez por dia.

Já nem sei bem como fui lá parar. Tinha vindo a Lisboa para uma reunião qualquer e a cidade ainda trazia a surpresa das primeiras vezes. Até me chocava quando os lisboetas diziam “Isto aqui é uma aldeia”, insinuando que se conheciam todos, que isto era meia dúzia de ruas e mais nada. É que Lisboa, para mim, nunca mais acabava. Eram ruas longas e abertas, arborizadas, edifícios enormes e limpos, um céu azul a encantar de qualquer lado, a esperança de um futuro em que não houvesse limites. E, claro, ruas sombrias e estreitas, subidas que desafiavam as pernas, descidas que criavam a vertigem e algumas vidas que pareciam empacadas. Lisboa era tudo, e só uma metáfora consegue enfiar tudo numa aldeia.

Deve ter sido numa dessas reuniões que conheci alguém que conhecia alguém que morava com o Fogos. Acabámos lá um dia. Já devia ser perto da meia-noite. Ao entrar, ninguém dizia nada: ver implicava aceitar, conhecer implicava não julgar. Os outros, de alguma forma abandalhados, ainda não tinham aquele ar sem esperança que o Fogos já ostentava, ainda que o discurso acérrimo e aguerrido fosse o mesmo, e que destilassem desprezo sem procurarem a bondade.

Queriam mudar o mundo e tinham a solução para isso. Tinham muitas certezas e faziam poucas perguntas. Falavam do rendimento básico incondicional quando ainda ninguém falava disso. Exigiam a liberalização das drogas todas como forma de combate ao capitalismo. Achavam que dar cabo dos ricos era a forma mais evidente de transformação social. E, entre isto, entre o ódio aos burgueses, o Fogos vagueava de roupão por cima da roupa, com barba por fazer, olhos de gente vencida pelo charro, ponta de coisa fumada já a morrer-lhe nos lábios.

Não sei de onde é que ele terá partido, em que momento da vida é que a cinza dos charros a voar pela casa se terá naturalizado. Cada dia era uma luta contra a limpeza: fosse preciso um prato, lavava-se um prato; fosse preciso uma toalha, usava-se a que estava suja; fosse preciso luz, vivia-se na mesma o escuro, e isto numa casa onde não se abriam as janelas. A resposta era sempre a mesma: “Os gajos andam de olho em nós. Eles sabem o que se passa aqui.”

Ora, o que se passava ali era inócuo, só fazia mossa a quem lá estava. Os livros, que podiam abrir olhos, estavam cheios de pó. O álcool era bebido logo de manhã, como leite a encharcar Chocapics, só que a manhã começava já depois das quatro. Eu nem percebia bem como é que se vivia ali. Lisboa parecia-me tão cara. Bem me lembro do que era, entre reuniões, procurar com alguém um restaurante, e acabar com uma tosta de queijo e mesmo assim achar um roubo. Uma casa em Lisboa, então, era para mim como um empreendimento no Dubai. Isto, convém dizer, ainda era na altura em que a cidade era barata, em que não tínhamos fundos imobiliários a vir tirar gente das casas, a pedir como renda de um T0 o equivalente a seis salários. Era na altura – parece impossível – em que a Euribor ainda não nos vinha tirar o sal à sopa.

O Fogos, disseram-me então, vivia ali a conta-gotas na antiga casa de uma tia-avó. Deviam ser dela as loiças por lá empilhadas, quase soterradas em camadas de tempo. E o sobrinho-neto achava que a droga era cool, que o capitalismo lhe espetava preconceitos. Conhecia deputados e assessores parlamentares e funcionários. Todos tinham o discurso de que o consumidor é livre. E, livremente, o Fogos consumiu. E, livremente também, o Fogos consumiu-se até já não ter liberdade.

Quem o conhecia da adolescência dizia que, um dia, ele fora outra loiça. Agora estava preso no vício, era a marioneta de um vício que espetara no corpo. A língua empastelava-se toda na boca e o discurso era sempre o de revolta contra um inimigo qualquer. Ele falava dos patrões que não faziam nada da vida, só gamavam, e eu via-o ali a cobrar uma renda aos amigos com uma propriedade que vinha do esforço alheio. Falava dos betos que viviam de heranças e fugiam aos impostos, e eu via-o ali a dormir sob o tecto pago de uma mulher já morta, que o sangue lhe dera, protegendo-o da rua. Até de camaradagem falava, depois de ter cortado laços com a família, já transformado em droga.

Não sei dizer que idade teria. Uns 25? Uns 33? Parecia-me muito velho para o que devia ter. O cabelo caía-lhe, a pele estava seca, e era tão magro que parecia que eram os ossos que lhe sugavam a carne. Era um corpo chupado por dentro e uma sombra de homem ao mesmo tempo. Podia ter aspecto de doente, mas toda a gente via qual era a doença. E as picadas que tinha nas pernas e nos braços não eram as da insulina.

Há dias, perguntei por ele, nem sei porque é que me lembrei dele. Talvez porque ia a passar por aquela zona. Ainda sei qual é o prédio, mas já não sei do andar. As janelas estavam todas abertas, a maioria tinha persianas ou cortinas claras – abertas para que ali entrasse a luz. A casa já tinha sido transformada noutra coisa, e em duas das janelas havia plantas e na outra um triciclo.

O amigo que me respondeu abanou a cabeça.

– Não soubeste?

Não, não tinha sabido.

– Andou metido na droga muito tempo.

Sim, isso eu sabia: aquilo começou a comer-lhe o estômago, e em pouco tempo banqueteou-se da cabeça. Aliás, nem cheguei a conhecê-lo de outra forma.

– Um dia, olha, a coisa correu mal. – Não respondi nada. Ia dizer o quê? – – Ainda me lembro dele no secundário. Era um gajo com piada, andava sempre a ouvir rap, tinha uma vida normal. E era muito bom a História. Depois pôs-se com experiências, depois meteu-se naquilo a sério, depois transformou-se noutro gajo qualquer e, olha, depois era um sonâmbulo.

Deixei que passassem uns segundos. Subíamos a Almirante Reis, cada vez mais cheia de gente que perdia a batalha com Lisboa. Cada vez mais cheia de gente que vivia em cima do chão por não poder pagá-lo.

Como o meu amigo não dizia nada, também não precisei de matar a frase. Não precisava mesmo de saber quando ou como tinha sido a overdose.


Ana Bárbara Pedrosa

Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.


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1 Comentário

  1. Triste História muito bem contada … e sempre um vocabulário imprevisto ,original e em cheio nas situações que descreve …

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