Se a Festa Criola foi pensada como estratégia para juntar a diversidade lisboeta e expressar a verdadeira Lisboa, nova ou não, isso sentiu-se claramente nos dois debates para “Pensar Portugal” e no “Diálogo Sobre Pertença, Identidade e Futuro”. O festival voltou a acentuar a diversidade e a mistura, como acontece com o projeto Lisboa Criola, apadrinhado por Dino d’Santiago.
Convidados para “Pensar Portugal”, os músicos Papillon, Didi e Eva Rap Diva mostraram três realidades diferentes, mas interligadas na primeira pessoa. Papillon MC, português que tem pai da Guiné-Bissau e mãe de Angola, Didi, brasileiro, investigador e artista um dos fundadores da UNA (União Negra das Artes), e Eva Rap Diva, rapper e ativista portuguesa e angolana. Foi no largo do Roque, bairro Portugal Novo, nas Olaias, com a moderação de Claúdia Semedo.
De que forma o bairro nos ocupa e nos atravessa? Lançou a questão Claúdia Semedo…

Eva Rap Diva nasceu e cresceu em Portugal, os pais eram angolanos e tornou-se angolana de nacionalidade antes da mãe, que nascera em Angola e diz que vive o país mais do que a avó, que veio como refugiada de lá. E ela? Ela, que sempre que lhe perguntavam de onde era, ela dizia: “sou de Arrentela!”? Um diálogo que que nunca acabava sem mais, mas era sempre acompanhado de um “sim, mas de onde… de que origem?” Isso, diz , fê-la entender não era daqui, mas… também compreendeu que “não era de lá”.
“É uma honra estar numa mesa com duas referências, uma do meu lado direito e outra do lado esquerdo. Cresci sem referências e tê-las aqui até me deixa nervosa” disse Eva Rap Diva, nervosa por estar ao lado de Cláudia Semedo, atriz e apresentadora, e Francisca Van Dunem, a ex-ministra portuguesa da Justiça. Quando uma pessoa negra de 35 anos, mulher, que vem de um bairro chamado Arrentela, na margem sul, diz que cresceu sem referência ela está a falar da ausência de representatividade de negros – e negras – em lugares de destaque em Portugal.
E este foi um dos temas que passou nos debates, e que sempre se faz presente em mesas de discussão sobre a condição social das minorias. Questionou-se sobre essa identidade e pertença, num país que acolhe milhares de afrodescendentes e africanos, ao longo de séculos. Porque é que “ser daqui é ser branco”? Que discurso segregador é este? Como tentar compreender a visão de quem sobreviveu com a discriminação racial explicita ou velada a vida toda e procurar soluções? Esta era a proposta dos debates.
Didi que se considera um falante de português em trânsito desconstrói a noção de “Portugal Novo” ou de uma “Nova Lisboa”. “De que forma que esta ideia de portugalidade atravessou a vossa vida?”, era a pergunta de Claudia.
“Descobri um Portugal que não é tão novo assim, essa Nova Lisboa que não é tão nova assim”, responde Didi. Quando chegou aqui Didi diz que foi muito confrontado com essa realidade junto dos que chama de “irmãos afro portugueses”, que se adaptavam a uma nova realidade identitária sem perder a base. A raíz, de corpos negros itinerantes ou em trânsito. “Nesse diálogo com corpo em trânsito, consegui entender que essa portugalidade pode ser atravessada muito além do mar e pode ser dissociada da colonização…mas também podemos ter referências de um passado não tão distante de pessoas que influenciaram as lutas, desde Amílcar Cabral, mas também de movimentos negros que existiam desde os anos 20. Somos todos Portugal”, conclui. “E vamos continuar a construir com base em todas as vivências.”



Para Papillon a ideia da portugalidade “é uma ideia que tem evoluído”.
“Sinto que atualmente é mais esclarecida, mas passa muito pela questão da aceitação, se somos ou não considerados portugueses” argumenta o rapper MC português. Um exemplo: há uns tempos Papillon pediu à namorada, branca, que fosse ter com o senhorio para arrendar a casa onde moram no Mem Martins. Garante que havia poucas chances de ele ter conseguido arrendar a casa se fosse ele a negociar, por ser negro. Em todos os debates há histórias destas, vividas no dia a dia de uma realidade que nem todos conhecem.
A documentação portuguesa é um outro entrave. “Nasci em Portugal, mas só tive a minha documentação aos 15 anos”, conta Eva. “Cresci a acreditar que não pertencia a este lugar.” E, no entanto, não devia ser assim, não tinha de ser assim: “Ser português devia incluir todas as formas de ser português, de estar em Portugal e de existir neste lugar. Tudo isso deve construir a portugalidade. Infelizmente continuo a notar que existe uma barreira para essa construção ser inclusiva.”
Mais um exemplo: “As academias são os lugares mais racistas e excludentes deste país. Os criadores de opiniões e pensamentos são os que mais criam barreiras a que se inclua as várias maneiras de ser culturalmente, e para que haja um cinismo… Há um discurso bonito de “somos todos portugueses”, mas na prática “a forma como expandem ideologicamente as suas conceções sobre o que é uma nação acabam por nos excluir a todos. Ainda hoje em 2023.”
Um exemplo que foi repegado por Tom Farias, jornalista brasileiro, na conversa focada na questão da pertença e da identidade. O jornalista que escreve para O Globo sobre literatura e Folha de São Paulo sobre política deu ideia de um assumir do racismo até nas estatísticas, com vista a implementar medidas que o inibam. Nomeadamente, ao nível da academia, ter estatísticas que mostrem quem são os portugueses. Tom vem do Brasil, um país que tem uma realidade bastante diferente de Portugal, e com situações de racismo e ilustrações da sua materialização através de histórias e vivências – mesmo dele próprio, como a cena que contou sobre uma saída da sua casa, certo dia, quando uma menina ficou “parada a olhar em pânico”, até chegar o uber de que ele estava à espera. No Brasil existem desafios que levarão anos para serem vencidos no que se refere a discriminação racial, homofobia e outros tipos de práticas de exclusão – e em Portugal?

“Somos todos os humanos, mas em certos casos a humanidade foge de nós” diz Tom, ao defender que apesar das lutas antirracistas que se perpetuam no Brasil, “o problema do racismo só pode ser resolvido por quem o criou…o homem branco que constitui o poder no Brasil”. Essa é a ideia central que Tom defende claramente mesmo com alguns olhares que o contradiziam em alguns pontos.
Para este debate, Magda Burity, a moderadora, convidou cerca de 40 jornalistas. Apareceram 4, numa área onde há uma falta de diversidade gritante.
Em Portugal as exclusões estão inevitavelmente ligadas à discriminação social por questões económicas. “Antes de saber quem era descobri que era pobre”, foi a deixa de Cláudia Semedo ao citar uma brasileira que escolheu viver em Portugal… Eva considera que é importante “quebrar a construção de periferia na mente das pessoas que definem que uns devem estar aqui e outros devem estar ali. Lisboa para mim só vai ser nova quando se quebrarem as fronteiras e quando pessoas como nós estiverem a viver no centro de Cascais e não forem vistas de lado”.
A Nova Lisboa, essa, cantada por Dino d’Santiago e que o impele a organizar esta discussão e outras discussões na sua Lisboa Crioula.

Karyna Gomes
É a jornalista responsável pelo projeto de jornalismo crioulo na Mensagem, no âmbito do projeto Newspectrum – em parceria com o site Lisboa Criola de Dino D’Santiago. Além de jornalista é cantora, guineense de mãe cabo-verdiana, e escolheu Lisboa para viver desde 2011. Estudou jornalismo no Brasil, e trabalhou na RTP, rádios locais na Guiné-Bissau, foi correspondente de do Jornal “A Semana” de Cabo verde e Associated Press, e trabalhou no mundo das ONG na Unicef e SNV.
Parabéns pela iniciativa! Muito interessante, espero que no futuro este tipo de eventos possam ter lugar na perifeira (por exemplo na linha de Sintra ou na Margem Sul). Ao meu ver somos nos que moramos nos arredores da cidade que estamos a construir esta Lisboa Crioula. Vê se claramnete no público que participou ao festival, que não é minimamente representativo da sociedade multicultural que se celebra. Obrigado