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Quando havia Bruno Candé, havia barulho. E não é que na Zona J, em Chelas, onde cresceu e passava grande parte do seu tempo, se faça silêncio.
As crianças cruzam-se nas ruelas cobertas pelos altos prédios, cujas fachadas mais se parecem com um grande estendal, e travam o passo para brincar umas com as outras. Os vizinhos fazem das janelas o sítio para se sentar e conversar. O betão nunca separa, só serve de abrigo no Inverno. Ninguém se cala, não há silêncio na Zona J.
Mas quando havia Bruno Candé, o barulho era outro.
Ouvimo-lo pela boca de quem privou com ele e daqueles que, estrangeiros ao bairro onde cresceu, de passagem como jornalistas, lhe conheceram a intensidade da voz. Um tom grave, não fosse um homem de 39 anos dentro de um corpo parrudo. “Ouvia-se a cinco quilómetros de distância. Sentia-se logo a sua presença e até dizíamos: ‘Olha, o Candé está aí’.”
Pedro Lopes, 36 anos, deixa o olhar caído no nada e adivinhamos que ainda ouve Bruno, o amigo de infância, lá dentro da cabeça. Leva os dedos indicadores às pálpebras, levantando levemente os óculos, esfrega-os para deter o que aí vinha e desabafa: “Tenho saudades desse barulho.”
Pedro aponta para um segundo andar cujas janelas estão tapadas por faixas de alumínio. “Ali era a casa do Candé”.

E dá para o imaginar ali, perto de onde há anos estava o famoso “corredor da morte” de Chelas, um conjunto de oito prédios devolutos, com corredores exíguos e sombrios por baixo, que ganhou este nome por ali terem perdido a vida vários jovens, em ajustes de contas. Um sítio que contribuiu para o estigma desta zona e que acabou demolido em 2009, ainda com António Costa na presidência da autarquia.
Com a demolição, foi-se a casa da família de Bruno Candé que entretanto se espalhou pela cidade. Ele foi para Moscavide, para o bairro dos Machados, embora tivesse continuado a fazer vida na Zona J, onde guardava os amigos e alguma família, como quem guarda um tesouro.
Mas o erário desta comunidade, diz ela, era Bruno. Não por ter morrido. Bruno era um rapaz dedicado às suas gentes e ali mesmo, no lugar improvável, encontrou o palco dos seus sonhos como ator – e levou para lá a sua companhia de teatro, a Casa Conveniente. Ali, elevou o emblema do Futebol Clube do Porto (cujo fanatismo fazia franzir a sobrancelha dos amigos, quais mouros perante um clube com sede nortenha). Ali, reivindicou a sua devoção ao Santo António. Ali também, tornou-se pai de três filhos. Filhos do bairro, como ele.
Até que, no dia 25 de julho de 2020, o telefone de Pedro tocou. Do outro lado, a notícia. Há um exato ano. Bruno, o homem que adorava o seu próprio nome e que sonhou vê-lo conhecido, não adivinhou, porém, que isso iria doer tanto.
Um T1 para oito
1973. É nesta data que primeiro Lisboa se cruza com Bruno Candé, ainda ele nem era um projeto de vida. Nesse ano, a sua mãe, muçulmana guineense, ruma a Portugal. Tinha 18 anos e já três filhos nos braços – Olga, Carla e Nando. A vida não estava fácil, por isso, a melhor solução seria vir para Portugal. Em África, ficou Olga, a irmã mais velha, com a avó: “A minha avó achou que, indo com três filhos, a minha mãe ia ter mais dificuldade.”

Claro que, mesmo só com dois, a tarefa já não foi fácil. “No dia em que chegou a Lisboa, ficou num banco de jardim no Jardim da Estrela com os dois miúdos. Até que alguém passou, ligou para a Santa Casa, que os alojou perto.” A mãe de Bruno acabou por encontrar amparo para os filhos num português, com quem criou mais três filhos, nascidos em Portugal: Bruno, Elisabete e Fátima. Depois, veio Olga, e com toda a família acabaram por aproveitar a loucura do pós 25 de Abril, para ocupar uma casa na Avenida Miguel Bombarda. Só mais tarde, com os apoios sociais, viriam a ter um lar na Zona J.
Olga Araújo, agora com 53 anos, é reconhecida como a alma da família e uma das que mais mantém viva a memória do irmão, Candé.
Cedo, a irmã mais velha teve de aprender a trocar a brincadeira por responsabilidades de adulta e ser também ela mãe dos seus irmãos. A infância desta menina mulher foi-se num arder de fósforo. Os tempos eram difíceis, a mãe, Cadi Candé Marques, migrou para Espanha, para trabalhar na apanha da fruta. Durante três anos, indo e vindo, apenas para deixar o salário que arrecadava e, outra vez, voltar. Dinheiro que Olga geria, com apenas 12 anos.
Aquele bairro de habitação social de Chelas tornou-se casa: a de Bruno, de Olga, do pai (não biológico, mas assim lhe chamou Olga até ao fim) e dos outros irmãos. Fernando, ingressou na Casa Pia. E Bruno foi lá parar também, assim que fez seis anos, como aluno interno. “A minha mãe achou melhor, porque nos prédios onde vivíamos, vivia muita gente, e nós só tínhamos um quarto para todos.”
Era um T1, onde uma cama de casal guardava o sono dos mais velhos, um berço, o de Bruno, e um beliche o dos irmãos – Fernando em baixo, Elisabete e Olga em cima. Faltava uma na equação: Carla, que depois de ter estado internada no hospital, doente, ficou aos cuidados da médica que a tratou, vizinha da família, sob autorização da mãe.

“Passamos um pouco de dificuldades, hoje eu percebo isso. Mas, naquela altura, nós éramos felizes”, recorda. Não havia espaço, privacidade nem brinquedos. Mas à mesa nunca faltou comida. “O pai nunca deixou. Era chefe de cozinha na marinha, na base de Alfeite, e nunca nos faltou comida, graças a Deus – ainda hoje digo que estou gordinha por causa dele”, brinca. Nos aniversários, sopravam as velas em cima de um bolo, havia roupa nova, um brinquedo ou outro no Natal. “Éramos mesmo felizes, mesmo com pouco.”
Esta flexibilidade para esboçar satisfação no meio das dificuldades atravessa a família inteira: herdaram-no todos os irmãos, embora nenhum tanto quanto Bruno, admitem, “Crescer com ele foi muito especial. Estava sempre tudo bem. As pessoas, se calhar, pensam que é porque morreu que dizemos isto, mas não. Desde pequeno, foi sempre muito especial.”
Bruno, de sorriso farto e (quase) intacto, levava sempre a alegria nas algibeiras e uma forma de a partilhar. “Mesmo quando eu ralhava com ele, ele parava e dizia ‘ó mana, já não faço mais’.” E voltava a sorrir, o senhor sempre bem disposto, carregando uma palhaçada qualquer na mão que atiçasse o sorriso do outro também.
O sereno justiceiro
Na rua, as hierarquias são claras: quando ainda crianças, cada ano a mais ou a menos faz a diferença e é suficiente para se excluir ou incluir no grupo de amigos. Pedro, quatro anos mais novo que Bruno – que, em linguagem de rua, é o mesmo que dizer uma galáxia de diferença – não cresceu no grupo dele. Os mais novos “são os putos” dos mais velhos. Não há amizade, há um sentido protetor. Todos da mesma comunidade, mas não necessariamente amigos.
Apesar disso, Pedro gostava de atravessar este limbo e observar, quase pisar, o que faziam os mais velhos do bairro. A primeira memória “marcante” que tem de Bruno é no campo de futebol da Zona J. “Dei por mim a fitar o Candé, porque ele tinha corpo de atleta”, era diferente dos outros.
A robustez não deixava ninguém indiferente, o físico de Bruno impunha respeito e cautela.



Mas para ver Bruno não era com os olhos. “Fazia-me confusão que ele não usava aquele corpo para se defender, para a violência, às vezes. Calmo. Aquilo até irritava. Quando os outros o provocavam e ele não reagia, eu perguntava-lhe como é que ele conseguia.” Respondia prontamente que “não tinha tempo para isso” e sorria. “O Candé é muito mais que músculos – o grande músculo dele estava na cabeça.”
Pedro vai conjugando Candé como um verbo no presente, como se o esperasse ali, ao virar da rua, para validar esta biografia.
Entre Pedro e Bruno, a regra da idade esfumou-se e a amizade saiu fortalecida nos últimos anos. Para Bruno, Pedro não era Pedro. Era “o esperto”, por ter sempre a resposta para tudo na ponta da língua.
Com a aproximação, apanhou-lhe todos os gostos, amores e desamores, tiques e manias. Eram poucas, porque Bruno “é de coisas simples”. “Não ligava a padrões de beleza. Não é que se vestisse mal, mas não era prioridade. Para nós, era. Mas para ele não.” Em primeiro lugar, estavam as pessoas, “estar no meio delas, a confraternizar”. “Para ele, sentar-se numa mesa, com amigos e uma cerveja, era o dia mais bonito.” Em casa, recebia os amigos como ninguém e até ganhou a fama de “chato”, por querer sempre vê-los confortáveis, a comer e a beber.
“Uma pessoa agora põe-se a pensar: ele era mesmo especial”, diz Pedro.
Especial e justo. Conta Olga, a irmã mais velha, que apesar de nunca ter sido uma criança que esperneasse pelo que queria, Bruno não deixava de lutar por isso. Tolerava a disciplina, até o castigo, mas não a injustiça. “Podia aceitar que fez mal, mas as injustiças ele não gostava. Dizia logo: ‘Ó mana, eu não vou fazer mais, mas foi assim e assim que aconteceu’.”
O sonho do palco que começou na Casa Pia
Quando chegou a altura de escolher o que queria fazer da vida, o miúdo agitado e sem papas na língua decidiu que queria ir para o teatro. Para a família, nem houve sequer tempo para Bruno escolher o que seria o seu futuro, porque cedo descobriu a vocação. Ele sempre foi teatro.
Com Bruno os dias nunca eram iguais aos outros. Hoje, Tina Turner e os lábios vermelhos, coloridos com os batons que surripiava às irmãs. Amanhã, um deslize com ritmo e classe no chão da casa como Michael Jackson. De homem ou de mulher, Bruno não olhava a géneros e mascarava-se de tudo quanto a imaginação permitia.
“Tu és um palhaço”, brincava a irmã, ao ver aqueles espetáculos. E se a audiência parecia entediada, descia até ao rés-do-chão para dançar e representar no café. Olga lá o chamava de volta para casa. “Ó mana, mas eles estão a gostar de me ver”, respingava.
Quando morreu, Bruno era ator na companhia Casa Conveniente, gerida pela atriz Mónica Calle. Era desde 2011 e foi ele quem ajudou a levar a companhia para a Zona J em 2014.
Todos lhe conheciam o sonho de subir aos palcos, até atravessar as televisões – chegou mesmo a fazer uma breve participação numa novela da estação televisiva TVI, “Única Mulher”, na pele do inspetor Max. Quando invadiu a televisão – o que ninguém da família acreditou ser verdade até ver -, a festa foi tanta que a mãe não parou de abraçar o pequeno ecrã.
Bruno parecia sonhar sempre alto demais, fazer finca-pé com quimeras, mas naquele dia provou que a areia também se faz cimento.



Tudo começara na Casa Pia, com seis anos, no teatro da escola. “Viram que ele tinha jeito e que gostava sempre de teatro, participava muito, e aos 12 anos puseram-no a fazer um curso no Chapitô, durante uns anos, a aprender a representar. Ele estava todo feliz da vida”, conta Olga, que admite ter travado este sonho. Aos 15 anos do irmão, fê-lo prometer que iria procurar estudar uma área que garantia mais segurança e emprego, ter um plano B para a representação.
Bruno ingressou num curso de pastelaria e outro de bate chapas. Saiu aos 18 anos da Casa Pia e foi nesta última área que enveredou. Dois anos se passaram, mas o cheiro a massa consistente e gasóleo das oficinas teimava em não simpatizar com ele. A mecânica era para ele uma ciência sem graça e só conseguia pensar nas personagens que ficavam por criar por cada dia que adiava o sonho de ser ator.
Em casa, anunciou: “Mana, não gosto daquilo, não gosto do cheiro dos carros, dessas coisas, não gosto daquilo. Vou fazer castings, a ver se consigo trabalhar na representação, fazer alguma publicidade”. Surgiram alguns trabalhos, “publicidades”, “mas que não davam rendimento”.
O sonho tardava e a ansiedade da família para que Bruno se fizesse à vida era (para já) maior do que a intensidade com que Bruno sonhava. Por isso, emigrou com Olga e com o cunhado e sobrinhos para Espanha, onde trabalhou durante dois anos numa fábrica de embalamento de sal, em Madrid. Construção recusava sempre: negava perpetuar a ideia de que “os negros só trabalham nas obras”. Uma das poucas vezes em que terá usado esse argumento em alguma coisa na sua vida.
Por lá, guardou todo o dinheiro para o dia em que diria: “Agora está na hora de eu voltar para Portugal, para ver se consigo alguma coisa”. No palco, finalmente.
Tinha “uns 22 ou 23 anos” quando regressou. “Até que alguém lhe apresentou a Mónica [Calle], da Casa Conveniente, em 2011. O Bruno ficou com eles até falecer. Conseguiu fazer disso vida e acabou por nos provar que conseguia”, recorda Olga.
Como se a frase que disse em palco, um dia, (e que abre esta reportagem) dissesse tudo: “Eu tinha tudo para dar errado, mas sou o Bruno Candé.” Proferiu-a na apresentação do espetáculo da companhia, Rifar o Meu Coração, no Porto, em 2016. Como contava a jornalista Cristiana Faria Moreira na sua reportagem no jornal Público: vestia a pele de um “macho latino”, de seu nome Marcos, transformado num travesti, e levava a canção Ne me quitte pas, de Jacques Brel, como pano de fundo. Uma canção romântica escolhida por alguém que amava a vida.
A frase está agora também gravada num mural na Zona J de Chelas inaugurado este fim-de-semana – numa iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, ilustrada por Nuno Alecrim.

O espetáculo de que a reportagem do jornal Público dava conta, em 2016, foi no bairro da Sé, no Porto. E a morada não era um pormenor para Bruno. É ele que toma a iniciativa de dizer ao jornal, sem que lhe perguntassem, o receio que o assaltara a caminho da cidade desconhecida. “Eu estava tipo… Porto, bairro, eu sou black. É aquela coisa de pensar que os outros têm preconceito”.
Admitiu o “erro”, agradecido. O black foi bem recebido e este episódio sedimentou em Bruno a esperança, que foi sempre a sua, e que alguns amigos consideravam ingénua – e demasiado generosa: de que a cor da pele não tem importância.
A devoção de Santo António

Na mesma peça, que se viria a revelar premonitória, Candé anunciava em palco: “A minha mãe sempre me disse que eu não era para estar aqui, que eu não pertencia a este mundo.” Também isso era mais biografia que ficção. A história conta-se rápido: Bruno, com meses, foi internado no Hospital Dona Estefânia, para morrer. Problemas de respiração.
“Chamaram um padre, disseram-nos que ele tinha dias de vida”, conta a irmã Olga. Mas, para o batismo forçado, não havia padrinho. E a mãe, sob conselho do padre, escolheu Santo António. E assim foi. Num batismo que parecia uma extrema unção.
Mas no dia seguinte, quando a mãe voltou ao hospital, e depois do susto de não o ver na cama onde o deixara – ‘Ai, que o meu rico Bruno já foi’ – a enfermeira disse-lhe que ele estava ótimo, ao colo de uma outra enfermeira, com a cor da vida no corpo, a mamar de um biberon. Como se nunca tivesse estado em risco.
Bruno e a família ficaram devotos de Santo António, o santo da cidade que era a sua. No acidente de bicicleta que quase lhe roubou a vida, prometeram rumar a um pequeno altar dedicado a este santo em Chelas, assim que recuperasse. Acordou do coma, recuperou a memória perdida na queda, retomava a pouco e pouco ou velhos movimentos no corpo e a família lá peregrinou, bairro abaixo, com flores na mão.
Um dia, o santo padrinho havia de não protegê-lo. Quando morreu, encontraram a figura do santo no seu bolso. Seguiu com ele para debaixo da terra.
De Chelas para Moscavide
A história foi papagueada, uma e outra vez, durante dias. Nas imagens via-se a movimentada Avenida de Moscavide, e ele ali, sapatilhas nos pés, calções de ganga, imóvel. Numas outras, um retrato a preto e branco, onde surgia de ar sereno, de rosto sombreado e um olhar largo preso num qualquer lugar. Depois, os testemunhos.
Mas aquilo não era Chelas. E ninguém sabia falar de Bruno como em Chelas.
– Ó vizinha, há tanto tempo!
– Então? Como está a vida por lá, na Inglaterra?
– Vamos andando. E o teu pai?
– Já faleceu há nove anos.
– Ai, como o tempo passa!
– Mas ele estava doente. Esta [aponta para o mural onde jaz o nome de Bruno] foi uma morte injusta. O meu pai já estava doente.
Olga, irmã de Bruno, está em Lisboa para o fim de semana de homenagens ao irmão – um ano depois. Com parte da família ao lado, revisita a Zona J, onde todos cresceram e viveram grande parte das suas vidas. Mas a testa enruga, os olhos semicerrados, à procura de alguma coisa. Faz um esforço para delimitar onde começava e acabava a sua casa, demolida. “Isto está tão diferente, meu rico bairro!”
O bairro onde chegaram em 1984 e de onde todos saíram já adultos, depois desdobrados por outros lotes habitacionais da cidade. Olga no Lumiar, até emigrar para Londres (há cerca de nove anos), a outra irmã e o pai ainda na Zona J e Bruno e Fernando no bairro dos Machados, em Moscavide.
Mas Bruno não era de Moscavide. Dormia lá, passava os dias em Chelas. Só depois um grave acidente e, mais tarde, a pandemia, o fizeram ficar por ali. Sobretudo naquele largo. Quando foi assassinado, Bruno ainda estava a recuperar do acidente de bicicleta que o colocara em coma durante dias, lhe retirou grande parte da mobilidade e que o fez perder a memória dos seus e da sua história durante meses. “Até hoje, ninguém sabe o que aconteceu”, se foi atropelamento, se caiu sozinho.
Os que o rodeavam tiveram de se habituar à ideia de ver esta figura possante – antigo jogador de futebol pelo Casa Pia e Olivais, entre outros clubes, e atleta de luta livre – mais debilitada. “Custava tanto ver um homem cheio de vida assim”, recorda Pedro Lopes, o amigo.
Quando morreu, Bruno ainda caminhava e executava tarefas quotidianas com dificuldade, arrastava a perna esquerda e mal conseguia lavar a louça sozinho. Teve de se reformar por invalidez, registado com 67% de incapacidade física. E viveu os seus últimos meses com 350 euros desta pensão.
Mas, para o amigo Pedro, o mais difícil de assistir foi a Bruno, deitado numa cama, vindo do hospital, sem reconhecer “o seu puto”, “o esperto”. “Vi-o na cama, entrei no quarto e ele não me reconheceu, ficou a olhar para mim sem reação. Saí e fui chorar. É que… eu dizia-lhe: fogo, tu és mesmo forte. Se eu passasse por aquilo, morria. Passado uns meses, estava aí forte outra vez”, conta.


Por causa das limitações físicas cravadas no seu corpo, Bruno arranjou Pepa, a sua cadela guia, que o acompanhava no momento em que foi alvejado. Já não existia Bruno sem Pepa, todos sabiam. Em Chelas ou Moscavide. Antes de morrer, foi a última paragem dos seus olhos: “Onde está a Pepa?”. Fugiu com o barulho dos disparos.
A propósito de Pepa, a escritora Dulce Maria Cardoso escrevia na revista Visão, quando da morte de Bruno, um episódio com ele e que quis ver perpetuado.
“No final de outro espetáculo, julgo que Esta Noite Improvisa-se, já na Zona J, em Chelas, fiquei à conversa com os atores. Estávamos na rua, com outros espectadores e moradores do bairro, era uma bonita noite de verão. Discretamente, um cão pulguento apareceu ali com uma perna partida e foi enroscar-se debaixo da luz do candeeiro. ‘Leva-o contigo, vou tentar descobrir porque o dono o tem maltratado’, disse o Candé, contrariando a maioria, e eu assim fiz. No dia seguinte, ele calcorreou as duas encostas do vale de Chelas até saber que o cão se chamava Piruças e pertencera a um homem do bairro da Flamenga que uns dias antes o fechara na sua carrinha. O homem, desempregado há muito, não quis que o Piruças estivesse em casa quando se enforcou. Desde então, o pobre cão deambulava pelos caminhos que costumava fazer com o seu companheiro.” Pergunta-se ela no fim: “Como podia o Candé adivinhar que a sua cadela Pepa também iria ficar sem ele?”
A crença num país onde a sua morte seria a exceção
Na Zona J, a visita da irmã Olga passa rapidamente a convívio, matam-se as saudades e fazem-se juras: “Ai de quem vandalize este mural!”. O nome de Candé, do qual ele próprio tanto gostava, jamais sairá daqui ferido.
“Se aquele senhor ao menos tivesse parado para conversar com Bruno e conhecê-lo…” Olga deixou o luto por fazer, logo nos primeiros dias. Soube da notícia por telemóvel. “Parece que aquele dia ainda está vivo na minha cabeça.” Era hora de almoço, tinha regressado a casa do trabalho e atendeu o telemóvel à filha, sobrinha de Candé que, devido à proximidade de idades, se tornara uma das suas melhores amigas. “Peguei no telefone e ela não conseguia falar.”
– Andreia, o que se passa?
– Mãe, não tenho coragem…
– …
– O Bruno…
“O meu mundo caiu, acabou.” Sozinha em casa, correu para o parque de estacionamento junto à sua casa, correu para o quintal, aflita. Gritou. Correu e gritou. “Pensei que o Bruno tinha caído, tinha batido com a cabeça, por causa do acidente. Nunca me passou pela cabeça que fosse o que foi.”
Bruno foi assassinado com quatro tiros. Atrás do gatilho, um homem de 75 anos. O assassino de Candé foi recentemente condenado a 22 anos e 9 meses de prisão, tendo sido provado o crime racista.
Mas nada avivava a ideia do que poderia ser o real móbil do crime. As televisões avançavam já crime de ódio racial. E Olga, embrenhada num pot-pourri de perplexidade e desolação, questionava-se: “Meu Deus, mas o que é que o Bruno fez?”. Porque “em Portugal, isto não acontece.”
Disse-o e repetiu. A família Candé sempre foi mista – o pai biológico de Olga era branco e companheiro da vida da mãe, também. “Quando éramos crianças, foi-nos passando ao lado. As crianças são muito verdadeiras, dizem o que pensam, os miúdos falavam diretamente e chamavam-nos pretos, porque só começaram a ver negros nessa altura. Havia uma crueldade ou outra, mas nada que nos fizesse ficar muito tristes. Eu nunca tive um trauma.”
O mesmo dizia Bruno. Sempre que lhe falavam de racismo, Candé respondia: relaxa. Era, aliás, um dos pontos de cisão entre ele e o amigo Pedro. “Ele dizia sempre que eu exagerava.” Advogava que “nem tudo é uma questão de racismo”. Talvez por isso tenha minimizando o impacto da ameaça que receberia dias antes de ser assassinado? Nunca saberemos.
Bruno preferia acreditar que a bondade estava em maioria e, de certa forma, no fundo de cada um de nós.
“Queremos construir um país bonito”
Depois do que aconteceu ao pai, será mais difícil que esse legado de bondade permaneça na vida dos três herdeiros do legado Candé que deixou: Rúben de sete anos, Ivo de oito e Beatriz de três. Todos seus filhos, de três relacionamentos distintos.
“Quero protegê-los, quero educá-los para que, quando crescerem, não tenham ódio, porque tirar um pai desta forma… Mais tarde, eles vão querer saber e quero organizar a cabeça deles até chegar essa altura”, diz Olga.
Financeiramente, a vida não fica mais fácil para estas crianças. “Fica a faltar”, embora a família garanta apoio. Logo após a morte, uma petição para atribuição de subsídio vitalício aos filhos corria a internet, mas o número de subscritores da petição não saiu das poucas centenas. Servirá de escudo a indemnização de 120 mil euros que o tribunal decretou, depois de ter provado um crime com motivação racista.

Mas há um trabalho mais profundo a fazer com estas crianças, por isso, Olga está a disponibilizar-se para cuidar delas, tal como cuidou de Candé. A sobrinha Beatriz, mais nova, está a viver com a filha Andreia. O Rúben espera que se mude com ela para Londres em breve e “se a mãe do Ivo quiser”, cuidará dele também.
A empatia é a melhor educação, continua a garantir a irmã de Bruno. No fundo desta tragédia Olga ainda é capaz de ver mais além. “Queremos construir um país bonito. Não vamos estar com essas conversas, porque não acontece sempre. Que estejamos alertas, porque o racismo existe, mas não se combate com ódio.”
No futuro, planeia criar a Associação Bruno Candé, “onde podemos falar abertamente sobre vários assuntos e chegar a pessoas que estavam na situação do Candé, ajudá-los a valorizar ameaças, aconselhá-los”. Uma associação que vise “combater pensamentos, não pessoas nem cores.”
Em Chelas, os amigos de Bruno ainda não conseguem tratá-lo no passado. Embora todos saibam que a Zona J está hoje mais perto do silêncio do que quando ele andava por cá.
Bruno Candé em concerto
No dia 25 de julho (domingo) terá lugar a iniciativa “Concerto 25 de Julho”, que nasce de uma parceria entre a #MAKAlisboa e o Festival Iminente, para uma homenagem à memória de Bruno Candé e de todas as vítimas de discriminação.
O concerto decorre às 21:30, com transmissão online pelas redes sociais do Festival Iminente.
Entre os convidados, estão Dino D’Santiago, Jacqueline Monteiro + Active Mess, Sam The Kid, G Fema, Tristany + Lindu Mona, e o grupo de Batukadeiras Bandeirinha da Boba acompanhadas do trompetista Ricardo Pinto

Catarina Reis
Nascida no Porto há 27 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.
✉ catarina.reis@amensagem.pt
Candé vive!
Nunca serás esquecido Bruno Candé🙌🏿
O meu nome é Carla, irmã do Bruno, venho dizer que fiquei emocionada com este texto e agradecer por nos ajudarem a dar voz ao Bruno, a todos os Bruno…. Haveria muito para dizer, mas…
Sinto uma imensa gratidão por todos os que estiveram, ajudaram, apoiaram a família Candé.
Bem haja!
Não é mais que a nossa obrigação, Carla. O Bruno era uma pessoa especial e representava a Lisboa que queremos, unida, misturada, bonita. Obrigada por nos abrirem as portas da vossa vida. E contem connosco.
Que texto tão importante,humanone belo. Vamos fazer o Bruno reviver nos dias,nas nossas ações,nas nossas concretizações,no nosso coração!
Entendo a emoção despertada pelo caso concreto, e simpatizo, naturalmente, com a família enlutada, à qual textos como este não deixarão, certamente, de trazer algum conforto.
Mas quantos outros assassinatos, com as mais diversas motivações, houve de há um ano para cá? Alguém se preocupa, minimamente, com as vítimas ou com a dor dos sobreviventes?
Não me parece que inflamadas diatribes contra o racismo sejam a solução. Entendo, antes, que é altura de racionalizar, de fundamentar, de arrefecer.
Foi o que procurei fazer no minúsculo ensaio que publiquei e a convido a visitar, se tiver paciência para o ler e comentar.
https://mosaicosemportugues.blogspot.com/2021/06/racismo-o-homem-cor-de-rosa_26.html
Bom Domingo!
Será que ninguém vê que somos todos seres humanos somente. Este mundo está virado ao contrário. Não há evolução, o homem que o matou porque era de outra geração carregada de ódio, diz-se, mas os homens de hoje não são educados para que não tenha preconceitos. Sejam todos Bruno Candé para que haja um País melhor.
Muito bom!
Que grande lição me deu Olga, a irmã mais velha de Candé. Que grande lição de humanidade.
Texto brilhante, obrigada Catarina Reis.
Obrigado, Mensagem. E obrigado, Família Candé. Bem-haja a todos e à memória do Bruno!