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Quando eu era nova, a palavra “rooftop” nem existia. Não sei o que se passou naquela viagem que fiz, transformadora, para o Brasil. Sei que, ao voltar, três anos depois, já ninguém subia ao último andar. Já não havia varandas, terraços, nem mesmo outdoors panorâmicos. Na altura, eram rooftops. Lá dentro, bebia-se qualquer coisa em copos com forma de balão ou pediam-se tostas de mel com camembert.
O início disto foi em 2017. A sequência é mais ou menos esta: estava em Lisboa, tinha de fazer uma última viagem ao Brasil para apresentar a tese de doutoramento que fizera, voltaria a Lisboa uma semana, e pôr-me-ia a andar para a Ásia logo a seguir, com a mochila mais pequena que encontrara, pronta para três meses a sofrer um calor que não dava para gente como eu. Ali pelo meio, tratei de preparar a vida para não perder tempo, ingénua ao ponto de não saber que viver é perder tempo.
A vida de uma bolseira de doutoramento é não saber bem o que vem depois da bolsa. Durante uns anos, uma gaja espeta-se a escrever uma coisa enorme, minuciosa, escrutinadinha, sobre um assunto qualquer que interessa a duas pessoas e que menos duas irão ler. Ainda assim, enfrenta-se o projecto com a força de um galope, leva-se a investigação avante, calibra-se o que é possível, escrevem-se palavras como zeitgeist e, em vez de conceito literário, diz-se literarische konzepte, que é mais chique. Se, para além de doutoranda, se for escritora, tenta-se aviar a parte académica não dando cabo da cabeça, que para isso temos o romance. No meu caso, isto de escrever na academia e na vida tinha de ser bem doseado, tanto em termos de horas como de cabeça, e ainda havia o perigo – que morreu na praia – de a escrita académica contaminar a outra.
Mas dizia eu que, depois de escritas aquelas 500 e não sei quantas páginas, não sabia o que seria a vida. Sonha-se sempre em continuar na academia, mas essa, para além de fechada, muitas vezes sabe a ilusão. Durante o doutoramento, a escolha não foi o romantismo, foi o bolso. Antes disso, foi mesmo o romantismo. Sem necessidade de condicionar um projecto às possibilidades de financiamento, estudei no primeiro mestrado a chegada de Almeida Garrett. Anos depois, era ver onde é que era possível financiar uma investigação qualquer em literatura, e foi assim que acabei a estudar as obras das autoras portuguesas censuradas pela PIDE. Parece giro, mas não é. Que o diga quem tiver dissecado a prosa de Nita Clímaco, Carmen de Figueiredo ou Maria da Glória. Ou seja, que o diga eu e mais ninguém.
Meter o nariz no Google, na Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional de Portugal ou na Diacrítica, bem se sabe, não dá emprego a ninguém. Como boa estudante de literatura, lá me meti eu no LinkedIn a ver o que pescava. Felizmente, ao longo da vida, sempre me pus a fazer coisas úteis, como ensinar português a aspiradores automáticos. Esse era o meu trunfo num mundo tecnológico. Alguém haveria de pegar numa escritora que achava graça a processamento e entendimento de linguagem natural, vulgo meter robots a falar ou perceber o que lhes é dito. Foi assim que acabei a trocar umas mensagens com um tipo modernaço que, chegado a Portugal da Ucrânia, parecia ter um plano para revolucionar e modernizar tudo e que procurava uma gestora criativa para um projecto linguístico ou, como se diz em português, uma creative manager para um linguistic project. O plano era criar robots que fingissem produzir conversas. Lá me chamou, achei eu, para uma entrevista.
É aqui que entra o rooftop. Como a empresa estava a dar os primeiros passos – ou, digamos, a começar a gatinhar aos tombos –, não havia escritório. Marcámos então encontro num rooftop do Chiado, chiquérrimo. Vesti a minha melhor camisa, apesar do calor, calcei sapatos, passei na perfumaria para pôr uma amostra do perfume mais caro. Na mão, levei um calhamaço que nem sequer estava a ler, só para o estilo.
Pois é, não havia escritório. Também não havia um plano de trabalho ou uma ideia concreta. Havia, para além do tipo, uma tipa, bem mais nova, que estudara Economia e fora modelo na Bielorrússia. Quem nunca foi a um rooftop beber uma água com gás e limão com uma ex-modelo economista bielorrussa que atire a primeira pedra. Lá tivemos uma conversinha informal, o senhor riu-se muito do que eu disse – até demais –, eu senti-me qualquer coisa entre impostora e última bolacha do pacote e, à saída, para mim era evidente que me queriam até ao fim. Sublinhavam muitas vezes que eu tinha um doutoramento, e eu lá me vi obrigada a dizer, embora achasse que era óbvio desde o início, que o doutoramento não era naquilo, que nem via grandes pontes, que também não era por aí. Não fazia mal, parecia que ter um diploma ia bastar para ter sucesso na vida, o que contrastava, no fundo, com todas as notícias de todos os jornais.
Nem tive tempo de chegar a casa, já tinha uma mensagem dele a dizer que gostara muito da conversa e que queria falar outra vez comigo dois dias depois. Mesmo sítio, mesma hora. Eu achava que, se marcavam coisas ali, deviam ter dinheiro para gastar. Mas ainda não era hora disso. Foi mais uma conversa em que falámos de robots e linguagem e tal, e em que o tipo me fazia perguntas e pedia opiniões sem que eu percebesse de que interessavam os meus pensamentos soltos de leiga. Seriam testes? Bebi outra água com gás. Pagaram eles. E então pediram-me que fizesse um trabalho.
No dia seguinte, estava o trabalho feito. Como se vestiam os dois muito bem, tive a esperança de receber uma batelada, e lá recebi, depois de explicar que o trabalho teria de ser pago, cem euros num envelope por uma tradução. O gajo parecia muito orgulhoso e parecia esperar muita gratidão. Ou não, porque me tranquilizou: “Parabéns! Mereceste-os!” Dava a ideia de que receber por traduzir um site era chegar aos Jogos Olímpicos de Taekwondo.
Marcámos um terceiro encontro. Com os cem euros no bolso, eu já tinha alguma segurança, embora não me passasse ao lado a anormalidade de se meter uma nota de cem num envelope. Mas fecha-se a porta à suspeita quando há uma esperança. Nesse terceiro encontro, afinal éramos quatro. Tinha chegado outro rapaz qualquer, também pescado no LinkedIn, e aqui é que a história ficou linda. O gajo apresentou-me, lá fizemos os cumprimentos, e eu já sem saber para onde é que aquilo ia. Já eram demasiadas horas sem propostas de contrato, só com perguntas, perguntinhas, só com ideias, ideiazinhas. E então eu dava uma ideia qualquer, uma coisa como: A+B+C. E o gajo perguntava ao rapaz: “E tu, o que é que achas?” E ele respondia: “Acho que o ideal seria juntar A com B e C e ver qual era o quociente. Assim, teríamos a junção das partes e podíamos ver o resultado final.” Eu em pasmo, e o gajo: “Excelente ideia!” E então para mim: “O que achas?” E eu dizia “Pois…” – como quem tinha entrado numa realidade paralela. E perguntava-me outra: “Então, como é?” E eu dizia: “Metemos água no copo e então bebemos.” E depois o rapaz: “Uma excelente ideia, parece-me, é conseguirmos ter H2O e um utensílio de receção, vulgo copo. A partir daí, não será de somenos o passo seguinte: verter o material aquoso no recipiente. O próximo passo, ouso afirmar, seria levar o que é de vidro aos lábios, procedendo a um movimento de sucção que, após a escorregadela pela garganta, fosse levar à hidratação.” E o gajo outra vez fascinado: “Excelente! Excelente!” E então virava-se para mim: “E tu, que achaste desta ideia fantástica do rapaz?” Lá me irritei: “Concordo, na medida em que fui eu que a tive.”
Depois, os homens foram fumar, pedindo desculpa às senhoras. Ao longo desse dia, isto aconteceu várias vezes. Engraçado nunca me terem perguntado se eu fumava. À saída, o salamaleque do costume: corriam para a porta para abrir a porta à senhora. À terceira, e tendo verificado que os gentlemen não abriam a porta um ao outro, lá lhes disse: “Obrigada, mas eu também tenho mãos.”
Já estava para lá de irritada com o gajo, o rapaz do mansplaining e a vida em geral. Se me irrita que alguém explique depois de dizer, quanto mais que me explique depois de eu dizer. E a minha paciência tinha chegado ao fim. Na altura, tantas meias-palavras já tinham feito palavras inteiras e era óbvio que aquilo nem start-up era. Era uma pré-start-up. No fundo, a ideia era do gajo, e queria fazer uma equipa sem salários: se a coisa funcionasse, óptimo. Até lá, que se marcasse o WebSummit na agenda, que se tivessem conversas filosóficas com um robot qualquer, que se formassem documentos para apresentar a potenciais clientes, que se trabalhasse para aquecer, que se metessem as mãos no sonho de outro. Ou seja, o gajo era como os Winklevoss: mandava uma ideia para o ar e arranjava um palerma qualquer que a pusesse a andar.
Continuava a haver muitos elogios. O doutoramento, por motivos até então desconhecidos, era elogiado como a última Coca-cola do calor lisboeta, e então tornou-se claro que a ideia era formar uma equipa de gente que parecesse muito esperta: a gaja que tinha as ideias e o Ph.D, o gajo que as apresentava e fumava à bon vivant no rooftop do Chiado, e aquela indefinível mistura, que rompe com todos os clichês, da ex-modelo economista que, sendo da equipa do gajo, pouco mais fazia do que esperar comigo enquanto os homens interrompiam as reuniões para fumar.
Pachorra é que já não havia. E eu já estava farta de vestir camisas de manga comprida com 30 graus lá fora. Já me dava vergonha ser vista ali naquele meio de inglês ver, de fingir isto ou aquilo, de andar a engonhar sem chegar a lado nenhum. A vida tinha de ser muito mais do que fazer de mim a senhora que espera que os homens acabem de fumar.
À saída do hotel onde estava o rooftop, muito sorridente, o gajo lá disse o que já costumava dizer: “Então, amanhã à mesma hora? Acho que isto contigo vai correr muito bem.” O sol caía a direito no Chiado, os turistas já invadiam Lisboa e eu partiria para o Brasil dois dias depois. E ele lá no fundo talvez tivesse noção de que o rapaz só ocupava espaço. Disse-lhe assim: “Muito bem. Então, se acha óptimo, temos de avançar. Nos próximos tempos, faço tal e tal, mas a partir de etc. estou livre para isto. Envie-me a proposta de contrato esta noite e, se tivermos algum acordo, comprometo-me já para a data a partir do meu regresso.” Ele continuou a chover no molhado: “Queríamos muito contar contigo. Tens muito para dar a isto. Acho que vai ser óptimo. A sério, juro, queremos muito contar contigo.” E eu: “Muito bem, então envie lá a proposta de contrato.” Despedimo-nos, fui apanhar o metro aos Armazéns e nunca mais ouvi falar do gajo.

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.

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