Estava com um dos filhos, em casa, quando ambos ouviram tocar à porta naquele dia. Há dois anos que a mulher tinha ido para um lar na Alameda, em Lisboa, e Jorge vivia agora com o filho mais novo, na altura com 20 anos. O dedo na campainha insistia. “Devem pensar que somos surdos”, pensou Jorge. Trim-trim-trim. Trim-trim-trim. Sem aviso e sem parar.

Rita Felix/Lisbon School of Design

No caminho até à porta, passou-lhe pela cabeça a razão de tanta urgência. Afinal, há vários meses que esperava esta visita, ainda que já começasse a imaginar que ela poderia nunca chegar – e o quanto isso lhe convinha. Trim-trim-trim. Mão na maçaneta, porta aberta. À sua frente, dois polícias, uma senhora de meia idade, duas raparigas novas e um homem com uma caixa de ferramentas na mão. “O que é que vocês querem daqui?”, perguntou, embora adivinhando a resposta. “Agente de execução”, respondeu um.

Aconteceu há cinco anos.

Entretanto, um albergue, uma avenida e, por fim, um centro de abrigo de emergência tornaram-se as suas casas. Foi nesta última paragem que o encontramos, no lugar onde se sentava todos os dias, na mesa identificada com o número 1 no refeitório da Pousada da Juventude do Parque das Nações. É um dos espaços da cidade que, desde março de 2020, início da pandemia de covid-19 em Portugal, foram transformados em centro de emergência para sem-abrigo. Partilhou este espaço com os outros que, até há poucos meses ou dias, viveram sem teto. Tal como Jorge.

Depois disso, passou por mais um longo capítulo da sua vida: contraiu covid-19, passou mais de dois meses no Hospital Curry Cabral. Incontactável, não soubemos nada dele durante este tempo. Procurámo-lo, mas as únicas notícias que tivemos, através dos serviços hospitalares, era de que estava a recuperar. Até que, um dia, o telefone tocou com o seu número marcado. Suspirámos de alívio e voltamos a ter a sua permissão para contar esta história – que não leva o seu nome completo e a história que vamos contar mostra porquê.

1. Perder o teto por amor

Penha de França, julho de 1984. Durante quatro dias, no início deste mês, já com cheiro a Verão, a freguesia entrava em festa em honra da Nossa Senhora da Penha de França. Um festejo antigo, que já foi galardoado, inclusive, com um lugar no Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial em 2015. Miúdos e graúdos ali marcavam encontro, com ou sem motivações religiosas: se uns iam pela procissão, outros procuravam os jogos tradicionais e os concertos musicais.

Como morador da freguesia, Jorge estava bem familiarizado com as festividades. Aos 27 anos, fora ali que se atrevera nos passos de dança e bailara com uma rapariga dois anos mais velha a quem jurara amor para sempre.

Nesse ano longínquo, D. [identificaremos assim a sua mulher] fora à festa acompanhada da mãe e das irmãs de Jorge. “Houve conversa para aqui, conversa para ali. Fomos todos para casa da minha mãe, chamei-a e disse-lhe: ´É a minha nova namorada’. Passados quatro anos, casamos.” Já ia tarde para a média de idades com que era habitual casarem-se nesta altura, recorda, mas ele “era seletivo”.

Quatro anos depois, chega o primeiro filho, uma menina. Mais tarde, o segundo, desta vez um menino. A vida corria normal para esta família de classe média em Lisboa. D. era empregada de balcão numa boutique da Avenida da República, Jorge era cozinheiro no Hospital Dona Estefânia.

Até que, um dia, a caminho de casa depois da praia, chegou o prenúncio do fim da tranquilidade com que levavam os dias até então. 

Corria o Verão quente de 2004 e, como já era tradição, Jorge e a mulher tinham ido passar um dia à praia na Costa da Caparica. De volta ao carro, em direção a casa, D. sente uma dor forte na perna esquerda. “Ela dizia que não sentia a perna. Pensei que fosse má circulação”. No dia seguinte, acorda com a mesma dor e a manhã começa no Hospital de São José.

Uma ressonância magnética, o diagnóstico: esclerose múltipla. Uma doença autoimune que afeta o cérebro e a medula. “Eu não sabia o que era, muito menos ela”. Estavam ambos a lidar com o absoluto desconhecido. A médica deixou breves explicações, para que pudessem lidar com os surtos que iriam advir da doença.

“Não podíamos continuar assim. Eu estava a trabalhar, mas estava sempre alerta, à espera que acontecesse alguma coisa.”

Jorge recorda o sentimento de impotência de cada vez que um surto surgia. “De vez em quando, ela ia na rua e tinha de parar, porque deixava de conseguir mexer, de ouvir, de ver. Olhava para ela, já sabia e dizia: ‘Deixa-te estar’.”

E várias foram as vezes em que acabava internada. À medida que a situação piorava, D.  ia perdendo os movimentos voluntários e acabou por ser obrigada a abandonar o trabalho. Tinha já deixado a boutique com contacto direto com o público, para ser auxiliar numa casa de repouso e, depois, funcionária de limpeza numa grande cadeia de hipermercados. “Não conseguiu mais”, lembra Jorge.

Tal como prometia o diagnóstico, com o tempo a situação veio a agravar-se e obrigou a uma decisão séria sobre o futuro. Jorge recorda que o ponto de viragem foi o dia em que chegou a casa, abriu a porta e viu a mulher estendida no chão, de ombro fraturado, depois de ter tropeçado em si mesma. “Não podíamos continuar assim. Eu estava a trabalhar, mas estava sempre alerta, à espera que acontecesse alguma coisa.” De um dia para o outro, decidiu que tinha de largar o trabalho na cozinha do hospital e dedicar-se exclusivamente a cuidar dela.

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No entanto, um casal desempregado não conseguiria garantir as condições básicas de vida por muito tempo a alguém que precisava de tanto apoio. As poupanças não chegavam. Com a ajuda de uma assistente social da Junta de Freguesia e por recomendação da irmã da sua mulher, decidiram que o melhor era D. ir viver para um lar. Encontraram um, que tinha acordo com a Segurança Social, na Alameda. Mais tarde, D. veio a ser transferida para um outro, na Rua Conde Redondo, perto do Marquês. Onde quer que estivesse, tinha diariamente a companhia do marido que a ajudava no que o serviço mais impessoal do lar não chegava. 

O plano era que Jorge voltasse ao mercado de trabalho. Mas não passou disso, um plano. Com um ensino secundário não concluído na escola comercial, Jorge não encontrou quem o quisesse empregar. As preocupações que ocupavam a sua cabeça também não permitiam ir muito longe nesta procura. O estado da mulher preenchia-lhe os dias tanto que não conseguia ter tempo nem vagar para mais. As despesas, essas, é que não paravam de chegar e aumentar.

Com o lar, não tinham despesa, mas Jorge estava responsável por garantir a medicação da mulher, que não era comparticipada na totalidade. Faz as contas de cabeça e muito rapidamente chega ao número de “300 euros por mês”, só para os medicamentos. Uma das caixas de comprimidos de toma mensal, por exemplo, eram logo 75 euros. Sem rendimentos – o subsídio de desemprego já lá ia há muito – “tinha de falhar a alguma coisa.”

A casa era uma preocupação. Decidiu, então, abordar o senhorio para que pudesse acertar um adiamento do pagamento da renda até conseguir novamente um emprego. “Ele entendeu, deixou-me à vontade.” Mas, meses depois, a gestão do prédio mudou e a história deste homem muda com ela. A administração dependia de uma sociedade e, “de vez em quando, os senhorios trocavam”. Quando o novo senhorio tomou conhecimento de que o inquilino estava em falta com vários meses de renda, fez um ultimato: ou pagava ou ia-se embora. 

O assunto foi entregue à Associação Lisbonense de Proprietários, que tomou conta do imóvel. “A advogada da Associação mandou uma carta, eu peguei na carta e fui à Segurança Social pedir apoio jurídico. Como já estava no contencioso, já tinha de ter advogado. Fomos uma vez ao Príncipe Real à associação, mas eles diziam que tinha mesmo de pagar a dívida. E eu não tinha dinheiro”. 

Foi então que bateram à porta.

2. Outra vida, clandestina, e um segredo 

No dia em que nos sentamos frente a frente, a chuva fazia-se ouvir na Pousada da Juventude do Parque das Nações, onde Jorge vivia, depois de todos os sem abrigo de Lisboa terem sido recolhidos da rua por causa da pandemia. Ficava por aqui todos os dias, no fundo da sala, onde lhe atribuíram uma mesa. Uma por cada utente do centro, para garantir as distâncias de segurança, em tempos de pandemia. Não que isso o tivesse protegido da doença. 

Quando o tempo dava tréguas, fazia as suas caminhadas habituais todas as manhãs. “Vou variando. Umas vezes, daqui até ao Oriente e venho, outras vezes vou até Cabo Ruivo. Ou apanho o metro e o autocarro e vou até à Alameda”. Era ali que costumava dormir – e daqui partiu para o processo de arranjar um novo teto. Se a chuva vinha, juntava-se aos parceiros de cartas e dominó. Ou tomava notas num pequeno livrinho, tão pequeno que cabia numa única mão. Folhas amareladas, envelhecidas, e capa gasta. Escrevia lembranças, recados e rabiscava traços que contabilizam os resultados dos jogos que disputa com os seus parceiros.

Às vezes, fartava-se dos dias quietos. E quando o silêncio se fazia notar, a cabeça voava para lugares mais sombrios. Por exemplo, o dia em que Jorge poderá finalmente contar aos filhos que há cinco anos que não ouve uma campainha de porta, porque não tem porta, nem tem casa desde que se tornou sem-abrigo. E que desde o início de 2020 o seu único teto é um centro de emergência e não num quarto no centro da cidade, como lhes fez crer. Els sabem que viveu num albergue durante três anos, seguros de que não havia outra solução, mas não adivinham que dali tivesse partido para a rua.

Por não querer ser um problema na vida dos filhos, Jorge mentiu-lhes assim que abandonou o albergue. “Eles já sabiam que havia a possibilidade de eu arranjar um quarto, através da assistente social, por isso, disse-lhes: ‘O pai vai morar para um quarto, mas as pessoas que lá moram comigo são de idade e não querem mais ninguém lá. Até saio de manhã cedo e volto tarde’”.

Foi o suficiente para os tranquilizar, conta. O filho mais novo foi morar com uma tia depois do despejo, numa casa onde não havia espaço para mais dois, e só há pouco tempo arrancou com uma vida na sua própria casa. A casa da sua filha “é muito pequena”. E pedir ajuda era assumir que representaria um fardo para eles. Mais família, não havia. Os irmãos, estão emigrados no Reino Unido. 

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Os encontros com os filhos passaram a ser marcados ou nas casas deles, onde Jorge tem passado também o Natal, ou num mesmo café na Estação do Oriente. Conversas leves, sobre o banal do dia-a-dia, algumas piadas, não fazendo, nem os próprios nem os transeuntes, ideia da complexidade da vida deste homem.

Jorge mede cada passo, como se estivesse constantemente num jogo. “Às 23 horas ou meia noite chegava à Alameda, seis e meia da manhã saía de lá”, conta. “Eles nunca diriam que eu sou um homem sem-abrigo”. Até porque, todos os dias, sem exceção, garantia o seu banho nos balneários da Associação João13, onde também lhe lavavam a roupa. Tudo contribuía para que a história que Jorge contava à família nunca soasse estranha. “Se eu dissesse que estou na rua, eles começavam a rir-se.”

Ainda hoje, anda de camisolas, polos, calças e boina sempre imaculados. Não há sequer vestígios de gasto, o borboto que o passar da vida deixa na lã e no algodão. Quantos, com a vida transformada desta forma, teriam a persistência de permanecer fiéis à sua etiqueta? Nem que seja ao simples hábito de um – difícil – banho diário?

As mãos pousam na mesa e o corpo, sentado, pesa sobre os braços numa postura que parece, apesar de tudo, denunciar tranquilidade. Quando recorda o seu passado, não tão passado assim, quase o faz num encolher de ombros. A sua tranquilidade deve-se à garantia que tem que fez sempre o melhor pelos seus. Por isso é que conta a sua história assim, de forma leve. Se acabou a viver cinco anos na rua, sem que a família nunca desconfiasse, foi por “azares da vida”, diz.

A mulher D. morreu a 15 de junho de 2020, vítima de covid-19. Estava sozinha, e também ela acreditava que Jorge levava uma vida tranquila. Foi para a manter viva e sã que Jorge abdicou de ter uma casa. Abdicou do seu conforto por amor. E isso tranquiliza-o.

3. Num canto da Alameda

Se tivesse minutos para sair de casa, o que levaria consigo antes de bater a porta atrás de si? É um dilema muitas vezes posto entre conhecidos e amigos, em tom de brincadeira. Para Jorge foi real. Com as autoridades à porta exigindo que saísse de casa para não mais voltar, só se preocupou “com meia dúzia de coisas”.

Roupa, com certeza; calçado, claro. O essencial do guarda-vestidos. Mais importante ainda: “as fotografias todas e a documentação” que guarda desde os seus primeiros dias de trabalho, aos 14 anos. “Tudo o que me fazia falta”.

O que levou de anos de vivências naquela casa está agora num pequeno cacifo de uma associação de apoio aos sem-abrigo em Lisboa, a Associação João13. Uma vida largada num armário de inox.

Na rua, Jorge procurou um albergue. Nos dois primeiros dias, ficou hospedado no Centro de Alojamento Temporário Mãe d’Água. Dali, encaminharam-no para os albergues noturnos de São Bento – três anos depois, conta, terá sido uma disputa com uma responsável do espaço a fazê-lo bater o pé, pelos seus princípios, diz, e abandonar o lugar. “Tínhamos um encontro marcado com uma assistente social, que tinha um quarto disponível para mim, mas ela [a responsável] tinha de aceitar. Faltou à reunião sem dar indicação.” E ele, diz, ficou sem acesso ao quarto prometido. “No outro dia de manhã, peguei nas minhas coisas e fui embora. Fui para a rua.

Era Verão lá fora.

Jorge voltou a fechar uma porta e, desta vez, caminhou sem destino – esta é a história que ele conta. Foi descendo a cidade e abrigou-se junto à rotunda do Marquês de Pombal, numa esquina. “Era mais abrigado ali e não estava muito longe do lar” da mulher. No dia seguinte decidiu ir até à Alameda. “Fiquei lá, na Avenida Guerra Junqueiro. Tinha um saco de cama, a documentação que era precisa, poucas roupas e o meu telemóvel.” Tudo o resto estava guardado na Associação João13, onde também ia comer e tomar banho todos os dias. “Ainda lá estão as coisas guardadas. Até lhes mandei uma mensagem no outro dia a agradecer. E eles: ‘estamos cá sempre’.”

Começaram a perguntar se eu precisava de alguma coisa. Dizia que não, que tinha tudo: ‘Olhe, comer tenho onde comer, roupa tenho aqui. E também só preciso deste canto para dormir’.”

Rita Félix/Lisbon School of Design

O teto de Jorge era agora o céu de Lisboa. Num dia normal, a manhã era passada na Alameda, a jogar às cartas ou ao dominó, como ainda faz, com alguns companheiros de rua. A seguir ao almoço, descia até à Praça da Figueira para cumprimentar outros que “também andavam nas carrinhas da comida”.

Os melhores dias sempre foram aqueles em que se levantava para ir trabalhar.

Jorge tem a quarta classe de ensino presencial e dois anos de telescola – embora não tenha terminado a escola comercial, aos 14 anos, por se ter aborrecido. Diz que tinha queda para letras e humanidades, aprendeu a língua francesa na telescola, mas quando chegou à escola comercial teve de iniciar a língua do zero e aprender perdeu o seu encanto, conta. 

“Há um dia em que eu chego a casa e digo à minha mãe: ‘Olha, amanhã já não vou mais. Vou trabalhar’. E, pronto, fui trabalhar para uma oficina de automóveis como aprendiz mecânico.” Não ganhou amor aos motores. Viu um anúncio para uma fábrica de reclames luminosos e lá foi. Antes de ir para a tropa, para a Marinha, ainda chegou a saltar para a construção civil e num armazém “de peças marítimas” – onde importavam búzios, estrelas do mar, “aquelas coisinhas do mar todas”, para serem envernizadas e vendidas em lojas.

Depois da tropa, a avó paterna, funcionária no Hospital de São José, arranjou-lhe um lugar na cozinha. Estava habituado às panelas, fornos e fogões, receitas leves e pesadas. “A minha mãe andava na venda [a vender cabides de madeira na rua, nas fábricas ou nas lojas; no Verão, chapéus] e eu tinha de me desenrascar e aos meus irmãos. Era o mais velho.”

Um dia, ouviu na rádio do seu telemóvel – cuja bateria ia carregando – que a pandemia tinha chegado a Portugal. No outro dia, o país era obrigado a recolher-se. “Mas recolher onde, se estou na rua?”

Solta uma gargalhada a lembrar os primeiros dias de experiência doméstica, quando fez “uma panela de sopa que dava para um mês”. “Naquela altura, não havia como congelar, por isso, tivemos de andar a comer só sopa e a distribuir pelos vizinhos”. Os vizinhos da antiga Quinta da Curraleira, onde cresceu. Dali foi para o Hospital Dona Estefânia, onde passou a cozinheiro. 

Parar é que nunca esteve nos seus planos. Por isso, garante, mesmo quando se tornou sem-abrigo, não cruzou os braços. De vez em quando, “vai fazendo algum serviço que apareça”. “Qualquer um, eu aproveito todo o trabalho, nem que seja por duas horas.”

Limpou quintais na Alameda, os terraços traseiros dos prédios, ajudou em obras. A comunidade da zona, habituada à presença de Jorge, também deu uma ajuda.

No início, lançavam-lhe olhares de desconfiança e ele tinha alguma insegurança, perante a sua presença e postura frágil, com o passar do tempo ganhou a confiança de muitos. “Algumas pessoas já sabiam que eu não trabalhava e que precisava, por isso, propunham. Viam que eu não trazia problemas, que não chateava ninguém. Outros que passavam muito ali começaram a perguntar se eu precisava de alguma coisa. Dizia que não, que tinha tudo: ‘Olhe, comer tenho onde comer, roupa tenho aqui. E também só preciso deste canto para dormir’.” Embora nunca tivesse estendido chapéus ou malas de viagem para pedir dinheiro na rua, “de vez em quando, quando acordava, lá aparecia uma nota de cinco ou de dez euros”.

Viveu assim, saltando de cantos em cantos na Alameda, durante cinco anos. Os dias mais fáceis de se levar do que a noite. A noite silenciava a cidade e dava voz às incertezas e receios. Quando o sol se punha, “pensava em tudo e não pensava em nada”. “Umas vezes pensava que, quando acordasse, tinha uma casa. Outras vezes, pensava que, quando acordasse, tinha de procurar outro sítio.”

Um dia, ouviu na rádio do seu telemóvel – cuja bateria ia carregando na Associação João13 ou nos locais por onde passava – que a pandemia de covid-19 tinha chegado a Portugal. No outro dia, o país era obrigado a recolher-se. “Mas recolher onde, se estou na rua?”, perguntou-se, sem resposta. Mas num passeio pelo Rossio, um rapaz também sem-abrigo falou-lhe dos centros de emergência. Esteve dois meses alojado no Clube Nacional de Natação, que depois passou os seus hóspedes para outros centros: a ele calhou a pousada no Parque das Nações.

No início de janeiro, Jorge soube que iria ter uma casa. Mas horas antes da visita, estava a dar entrada no hospital, onde ficou mais de dois meses.

A pandemia deu-lhe um teto temporário, mas tirou-lhe o amor da sua vida: D. morreu infetada, no lar, logo em junho do ano passado. Morreu sem saber que o seu marido estava sem-abrigo, apesar de Jorge não ter falhado um dia da sua vida a visitá-la – até conseguir, antes de o lar ser interdito por causa da pandemia.

4. Dois meses no hospital

Aos filhos, que passou a ver menos devido às restrições que a pandemia impôs, Jorge continua a contar a história de um quarto onde eles nunca poderão entrar. “Não quero dar-lhes esse peso”, justifica-se. Mas não fechava a porta ao dia em que a verdade possa ser contada. Previa ser quando finalmente conseguisse a chave de um quarto, ao abrigo de um qualquer programa municipal de apoio aos sem-teto. “Tenho de os ir mentalizando: ‘Olha, tenho uma coisa para contar, mas tem de ser devagarinho. Depois conto’. Até que um dia conto mesmo.”

Na segunda semana de janeiro, Jorge recebeu uma “feliz notícia.” A equipa do programa Housing First iria mostrar-lhe uma casa para morar. Os olhos por cima da máscara cirúrgica encolhiam e anunciavam o sorriso que estava ali atrás escondido. Nesta altura, já tossia levemente e resmungava com o tempo frio que janeiro trouxera a Lisboa. Agasalhava-se tanto quanto podia e garantia que era “só uma constipação”. Mas o findar da semana trouxe um diagnóstico pior e a visita tão esperada nunca chegou a acontecer.

No dia 15 de janeiro, Jorge estava a ser transportado para o Hospital Curry Cabral com covid-19. Lá, travou várias batalhas pela vida. Nesse mesmo dia e durante mais de dois meses, perdemos-lhe o rasto: estava incontactável e pouco ou nada as assistentes sociais e voluntários da Pousada conseguiam avançar. Sabíamos que não éramos os únicos a fazer perguntas: do outro lado da linha, diziam que eram vários os voluntários que tinham criado uma ligação com Jorge, que estavam ansiosos com a situação que enfrentava e, por isso, ligavam habitualmente.

No final de fevereiro, após várias tentativas para conseguir conversar com algum profissional de saúde do hospital, ao telefone, uma médica anuncia que Jorge tinha acabado de largar o ventilador. Começava agora a comer e a falar. Embora a situação em que se encontrava ainda pedisse todos os cuidados. Ficamos a saber, mais tarde, que se cruzou com a morte duas vezes, naquela cama de hospital.

Mas venceu.

E os filhos? A pergunta estava na nossa cabeça, todo o tempo. Jorge conta que o telemóvel dele “andou perdido pelo hospital”, o que impossibilitou que falasse com eles. Na Pousada, reclamavam a falta de contactos de familiares na sua ficha de utente. No papel, Jorge vivia só, não tinha família. Mas os voluntários que o conheciam não acreditavam na sua solidão. Por isso, preocupados com as proporções que o seu estado de saúde estava a tomar, lançaram o apelo nas redes sociais para encontrar familiares ou amigos. Não mencionaram que Jorge se tratava de um sem-abrigo, apenas que era um homem internado e sem contactos na ficha. Jorge diz que os filhos responderam ao apelo, mas continuou a guardar o resto da história.

Abandonou o hospital a 25 de março. “Mais magro”, mas “como novo”, diz. Voltou à Pousada, ainda que apenas por umas horas. “Vim fazer as malas para ir para a minha nova casa” – o sorriso nos olhos estava de volta. Dentro de dias, já de chave na mão, voltará a sentar-se à conversa com os filhos. Mas, desta vez, para lhes contar toda a história.

Nota final: A história deste homem chegou-nos pelo testemunho de pessoas que lidam com homens e mulheres sem-abrigo de perto. Entre tantos rostos com história, esta marcou-os o suficiente para ser contada. Porque Jorge garante a quem o conhece a necessidade, quase urgente, de olhar para os outros uma segunda vez, à margem da sua condição.



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Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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6 Comentários

  1. Catarina, desconhecia o Prémio mas não me espanta. De todo. Os temas, as palavras, tudo sempre escolhido a dedo para a reportagem perfeita. Quero mais. Saudações camaradas, Dina G.

  2. Parabéns por este excelente comentário.
    Emotivo e muito verídico, mas com um quê de romance por todo o amor wue este homem teve à mulher e continua a ter à família.
    Grata por dar-nos a conhecer esta maravilhosa história de vida, com um final feliz!!!

  3. Parabéns por este excelente documentário.
    Emotivo e muito verídico, mas com um quê de romance por todo o amor que este homem teve à mulher e continua a ter à família!!!
    Grata por dar-nos a conhecer esta maravilhosa história de vida, com um final feliz!!!

    (Por favor não partilhem o anterior, enganei-me)!!!

  4. Na vida temos momentos em que as palavras nos ficam presas na garganta e não conseguimos expressar a nossa dor e/ou a nossa revolta.
    Da mesma forma que, mesmo que o queiramos, também os nossos dedos tremem, na hora de escrever algo que nos emocionou e nos perturba.
    Defino a atitude do Jorge, muito simplesmente: DIGNIDADE!
    A dignidade que passa por mim todos os dias em vários locais. A que caracteriza a pobreza envergonhada, a dignidade que é apanágio das pessoas com CARÁCTER!
    O meu abraço solidário ao Jorge e a todos os Jorges deste país.

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