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Todos os dias, a tempo de fazer o sumo multivitamina da minha patroa Rosarinho, saio do 713, que vem de Campolide, na paragem da São Domingos à Lapa. No saco, o uniforme lavado e bem passado de véspera. Como eu, outras saem do 713 com o uniforme lavado e passado de véspera a tempo de fazerem o sumo multivitaminas de Fredericas, Contanças, Carminhos e Cilinhas, cumprimentando o porteiro engatatão à chegada ao condomínio.
Depois de decorar a nova receita detox que depôs as bagas goji, a patroa Rosarinho salta da cama, testa a flexibilidade, faz um live para o Instagram, e sai para a rua em traje de treino com o sumo multivitamina a correr no esófago. Da casa em frente, com uma assoalhada a mais do que a nossa e um salão de jogos na cave, sai a amiga da patroa Rosarinho em traje de treino e com o batido proteico, substituto alimentar, a chegar ao estômago. Partilham a Volvo, arrancam da Lapa, estacionam no Chiado, e fazem quarenta e cinco minutos de ginástica passiva.
A contradição lexical consiste em estar deitado dentro de um fato de astronauta com elétrodos colados aos glúteos e ler a Vip. Quando a patroa Rosarinho não troca a rua e estaciona a Volvo em frente a uma casa com uma assoalhada a menos do que a nossa e sem claraboia na entrada, regressa à Lapa pela hora em que já fiz as camas, sacudi os tapetes, passei o pano no chão, adiantei o almoço e arranquei para apanhar o menino Francisco, o menino Guilherme e o menino Vicente na escolinha.
À tarde, faço o polimento do serviço que não está a uso, mas que tem de brilhar no louceiro, limpo um a um os livros das prateleiras, posicionando-os por cores no mesmo lugar, enxoto os pombos dos beirais da casa e escovo a porcaria da fachada. A patroa Rosarinho veste as jardineiras Dior, muda os pertences da mala Carolina Herrera da ginástica passiva para a Louis Vuitton a tiracolo que comprou nos leilões do eBay, tira o Francisco, o Guilherme e o Vicente da frente da PlayStation e abotoa-lhes os casacos da Gap, dando-lhes os telemóveis para a mão, põe as pranchas de surf no porta-bagagens da Volvo e sai ao mesmo tempo que a amiga e os três filhos.
Seguem para o Estoril, estacionam em segunda fila, ao lado de outra carrinha Volvo de sete lugares, e fazem um live para o Instagram com as crianças em cambalhotas de náufragos no mar.
Todos as casas do condomínio têm patroas influenciadoras nas redes sociais, que bebem sumos detox e fazem ginástica passiva, todos tem Franciscos, Guilhermes e Vicentes na escolinha e no surf, todas têm carrinhas Volvo de sete lugares compradas por uma pechincha à empresa depois de terminados os leasings, com variante 4×4 por causa dos fins-de-semana na Comporta e do caminho de terra batida para o ‘Aqui há Peixe’, todas têm um serviço a uso e outro guardado, mas polido, todas têm livros ordenados por cores nas prateleiras, porcaria de pombos nos beirais e porteiros engatatões à porta.
Quando venho mais ensonada no 713 e falho a paragem, engano-me e tendo a confundir a casa da minha patroa Rosarinho com a patroa do condomínio vizinho. Por isso, acontece-me passar horas a tirar as grainhas das uvas para o sumo detox de uma Luz ou de uma Maria Helena e só dar pela troca quando me dizem, zangadas, que os antioxidantes lhes provocam refluxo ou que seguem uma alimentação gluten free.
Esta semana, a minha patroa chama-se Maria do Mar e o marido Condeixa, limpo uma moradia com salão de jogos e vista de Tejo, passo os fins-de-semana prolongados na casa dos sogros na Praia Verde e sou entendida em dieta paleolítica. Como esta tem bimby e oferece-me as amostras dos cremes das perfumarias, não voltei a apanhar o 713.
*Texto escrito sob inspiração da crónica “Os meus domingos” de António Lobo Antunes.

Filipa Martins
É escritora. No seu primeiro romance, descreve a plumagem do Passeio Público e, no segundo, as saudades dos que partiram do Cais das Colunas. Os cafés de Lisboa são escritórios convenientes e o rio o repouso dos olhos.
Muito bom.
Obrigada por ler.