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Afonso Reis Cabral mudou-se há pouco para o terceiro andar de um prédio na rua da Costa, no bairro das Necessidades. “Foi há uns meses”, calcula, impreciso, enquanto convida a entrar. Apesar de recente, a nova morada já cheira à casa antiga, como se o escritor lá vivesse há tempos. Talvez por causa dos livros, milhares deles, a repousarem no mezanino, incensando o ambiente com o cheiro de papel, pó e bolor, perfume que sempre remonta a dias, anos vividos.
Da sala, quem ergue o olhar em direção ao mezanino espreita, para além dos livros, a silhueta de um dorso de pedra a zelar pela biblioteca. O rosto parece-me familiar.
“Balzac?”, arrisco.
“Flaubert”, responde Afonso, expondo os meus parcos conhecimentos em literatura francesa, principalmente relacionados a bustos de escritores vistos em contrapicado. Cioso em não perpetuar o constrangimento, Afonso emendou uma parábola:
“Meu primeiro emprego foi num alfarrabista e o busto era parte da decoração. Logo no primeiro dia de trabalho, esbarrei nele, que rodopiou em câmara lenta e foi ao chão. Sorte que o patrão fez pouco caso. Disse-me apenas que desse um jeito de me livrar dos cacos. Então, trouxe os pedaços para casa e colei-os, como num puzzle”, contou.

A nova casa do escritor de 31 anos, vencedor de um prémio Leya e outro Saramago, fica a poucos metros da primeira que viveu em Lisboa, bem em frente à Tapada das Necessidades, no número 7 de um pequeno prédio. Talvez o retorno à primeira casa onde viveu pela primeira vez só e pela primeira vez também e arcou do próprio bolso com a renda seja uma tentativa de, assim como fez com o busto de Flaubert, juntar os pedaços de um puzzle ou a busca de um tempo perdido, sem querer incluir mais um autor francês no artigo.
Do puzzle do busto de Flaubert faltava apenas uma peça, justamente na fronte, e Afonso não teve cerimónias: preencheu a lacuna com uma “argamassa” de papel, a partir de uma página de Madame Bovary embebida em água. “Se saiu da cabeça dele, nada mais natural que retornasse”, pontuou a parábola que diz mais sobre a cabeça de Afonso do que a de Flaubert.

Especulações à parte, naquele tempo nada perdido, da janela do quarto Afonso observava a imensidão do jardim da Tapada das Necessidades prolongar-se como o cenário de contos de fadas. É justamente por estas lembranças que se deu o passeio, embora não seja numa rua como a rubrica sugere, e sim, a estrada de uma memória afetiva.
“Escolhi a Tapada porque, para além de ter vivido mesmo à frente, faz parte dos meus percursos agora que voltei a viver na zona”, explica.
Um presente dos reis
Bem antes de ser parte dos percursos do escritor, no século XVII o jardim atendia pelo nome de Real Tapada de Alcântara, concebida por Dom João IV, um presente para a cidade de Lisboa. Dois séculos depois, a paisagem ganharia contornos à francesa nas mãos de Dom Fernando II. Outros monarcas também patrocinaram melhorias: Dom Pedro V mandou erguer uma estufa circular em vidro para a rainha Dona Estefânia e Dom Carlos I presenteou Dona Amélia com um atelier de pintura.

Com a exceção dos reis, ainda está quase tudo lá, os jardins à francesa, a estufa de Dona Estefânia e o atelier de Dona Amélia, o esmaecido retrato de uma época, desbotado pelas ações do tempo e inações dos homens. “Infelizmente, está bastante ao abandono”, lamenta Afonso, um diligente guia, de passadas largas e rápidas, difícil de se acompanhar.
Um condicionamento físico construído com sessões regulares de boxe, o desporto que elegeu para manter a forma física. “Que agora, com a pandemia, resume-se ao teleboxe“, revela, em tom de frustração, o escritor-boxeur, que durante a semana dedica algumas horas diante do computador para esmurrar um saco de areia, orientado por um instrutor no outro lado do ecrã.
A visita em ritmo de marcha atlética, portanto, transcorre por entre amplos espaços soalheiros e outros sombreados por copas frondosas, e um lago por onde flutua sossegadamente uma família de patos. “Não há nada mais lindo do que um patinho com dois dias de vida”, comenta Afonso, preciso.
Porém, o bucólico passeio também corta edifícios destelhados, casas sem portas, janelas de vidros partidos, estátuas decapitadas e as ruínas de um moinho amputado das pás.
“Há um projeto para recuperar a Tapada, que é necessário, pois o atual estado é de semi-abandono”, acredita Afonso. A proposta de recuperação mencionado por Afonso foi sancionado pela Câmara em 2019 e prevê uma intervenção concentrada em um dos dez hectares da Tapada. Alguns edifícios serão demolidos, como os de um antigo zoo, para darem lugar a quiosques, esplanadas, parques infantis e até um cowork.

A forma como a recuperação dar-se-á tem sido envolta por uma polémica e chegou a conduzir à uma petição pública de repúdio à mesma. Entre os insatisfeitos está o vizinho escritor.
“Pelo que li a respeito, o projeto parece-me um bocado excessivo, pois não há sentido em se construir um parque de estacionamento ou um pavilhão para 300 pessoas, por exemplo. No fundo, deve-se recuperar, mas sem descaracterizar a Tapada. Essa era a chave”, argumenta.
“Não acho coerente, e é até lamentável, que as obras planeadas não tenham sido antecedidas de um levantamento exaustivo de todos os elementos que estão decrépitos na Tapada, nomeadamente estatuária, pavimentos, escadarias, fontanários, que contribuem para a alma do jardim. Ao que tudo indica, continuarão decrépitos e a denotar um abandono lamentável”, observa.
“No fundo, deve-se recuperar, mas sem descaracterizar a Tapada. Essa era a chave.”
O estado do jardim verdadeiramente preocupa o escritor. Afonso conta que, certa vez, pôs a a correr dois adolescentes que se “divertiam” a atirarem pedras nas vidraças de um dos prédios abandonados na Tapada. A impressão é a de que, se dependesse dele, restauraria a Tapada com as próprias mãos, como fez com o busto de pedra de Flaubert.
A caminhada estaciona num recanto à sombra, pontuado por uma fonte vazia e triste, espreitada ao longe por um prédio de ar altivo. “É o antigo atelier de Dona Amélia”, explica, apontando na direção do espaço, hoje reservado para fins nada artísticos. “Agora, é o escritório do ex-presidente Jorge Sampaio”, indica.
As palavras de Afonso são cortadas pelo súbito alarido de pássaros. “Periquitos rabos-de-junco”, identifica, afinando o ouvido. “São da Índia, mas fugiram das gaiolas e andam por aí aos milhares.”
Inspiração para uma tela de Manet
Em 1859, o pintor francês Manet visitou o jardim e há quem jure que a promenade levou-o a pintar Le déjeuner sur l’herbe, um dos seus quadros mais famosos, destaque no Musée d’Orsay de Paris. A tela retrata dois homens efusivamente a conversarem, alheios à presença de duas jovens nuas e, provavelmente, ao alarido dos periquitos rabos-de-junco.

O jardim parecia mais animado nos tempos de Manet.
Em mais de uma hora, apesar do sol e da temperatura amena, não havia raparigas nuas na relva. Cruzamos apenas por duas pessoas, ao contrário da tela de Manet, devidamente vestidas: um homem que almoçava sossegado num banco por entre as folhagens, e uma mulher que parou de empurrar o carrinho de bebé para trocar duas palavras com o escritor.

Um cenário de isolamento que talvez mude, após a requalificação. Antes da chegada dos novos utentes do cowork, ouve-se apenas o grasnar dos velhos responsáveis pela segurança do imenso jardim. “É o gangue dos gansos”, explica Afonso.
“São à volta de quinze, territoriais e agressivos, como todos os gansos. Por isso, na fase real da Tapada, não serviam só para garantir o foie gras, mas também como alarmas”, ensina Afonso, a lição de ornitologia abafada pelo ruído das aves, incomodadas com a nossa presença.
Mais tarde, diante de um atento Flaubert, Afonso sacaria das prateleiras da biblioteca de sua casa nova um velho livro sobre ornitologia, presente do pai quando era menino, o que de alguma forma elucida o mistério sobre o seu vasto conhecimento a respeito dos hábitos de gansos, a idade precisa de patos bebés e as fugidias aventuras dos periquitos.
A vista do Tejo “tapada” por um hospital
A caminhada pela termina pelo mesmo portão por onde se entra no jardim, na lateral do Palácio das Necessidades, um imponente prédio que antes da construção do Hospital da CUF tinha, a partir da Tapada, uma vista “destapada” para o Tejo.“Foi o último palácio da monarquia”, comenta Afonso. “E é o único palácio real que não está aberto ao público”, sublinha.
O espaço atualmente abriga o Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas já serviu para assuntos bem domésticos.
Erguido como convento no século XVIII, virou residência oficial dos Bragança, de Dona Maria II até ser bombardeado em 1910 pelo Adamastor, o navio das tropas republicanas. Os disparos vindos do Tejo levaram o rei Dom Manuel II a refugiar-se na Tapada, o jardim então como testemunha dos últimos dias da monarquia. “Uma vez, tive um compromisso no ministério e só por isso consegui ver o interior do palácio. É extraordinário e é uma pena que não esteja aberto ao público”, lamenta.
“É um palácio extraordinário e é uma pena que não esteja aberto ao público.”
“Seja como for, a Tapada das Necessidades está aberta todos os dias e, como vimos, dá-se um passeio espetacular. Se há ainda pouca gente, por outro lado é possível sentar-se no relvado principal para ler um livro sossegado, enquanto toma-se sol”, sugere, indicando o que é um dos seus refúgios em Lisboa, quando nem sonhava em ter Flaubert como silenciosa companhia.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
Gostei imenso da “entrevista em andamento” e da informação sobre a Tapada. Obrigado e Parabéns
Um texto delicioso, que nos convida à leitura e nos faz viajar.
Gostei bastante do percurso e da conversa com o Afonso Reis Cabral e concordo com a sua opinião em relação à Tapada, às suas exigências e necessidades, bem como ao projecto de reabilitação, não intrusivo, que se impõe. À parte disso, creio que o autor do artigo terá confundido a criação da Real Tapada de Alcântara (mais tarde Tapada da Ajuda e não das Necessidades), esta sim do sec. XVII, reinado de D. João IV, e associada ao Real Paço de Alcântara. Por sua vez, a Tapada das Necessidades, apesar da ermida pré-existente ter sido datada do sec. XVII, todo o programa da igreja, convento, palácio e tapada tem as suas raízes na primeira metade do séc. XVIII, reinado de D. João V.