Parecia imagem de filme, realidade de guião. Em que circunstâncias veríamos as ruas ficar desertas, depois de decretado um recolhimento obrigatório da população? Passou um ano desde que as vimos ficar assim. A tela onde passou este filme é uma cidade, Lisboa, e nada tem de ficção. Alguns dos mais afetados por este cenário foram os que faziam dessa rua, e da sua ação, a sua vida. Literalmente. Os sem abrigo.

Estávamos prestes a fechar outubro, o oitavo mês de pandemia no país, e muitos deles ainda se abrigavam naquela que tem sido uma casa temporária, o Pavilhão do Casal Vistoso. É aqui que ainda os encontramos, em cadeiras de plástico brancas largadas ao acaso, distanciadas. Deixavam ao abandono o jogo da Liga Europa que passa na televisão incrustada na parede, para jogar outra partida mais complexa: o das suas vidas. As pernas de uns já acusam ansiedade e tremem que nem ramos de árvores ao relento. “Vamos lá, que vai começar”, alertam uns para outros. Já passava das 19:00 quando arranca, atrasada, a reunião de mais de 50 sem-abrigo que aqui pernoitam. Teresa Bispo e Dina Duarte, coordenadoras deste centro de emergência, abrem a, digamos, reunião de condomínio. Ou Assembleia Geral, como formalmente é designada.

Para quem vivia na rua, era um conceito estranho este de discutir as horas para beber ou comer. Foto: Orlando Almeida

Um a um, os homens e mulheres levantavam-se e perguntam coisas como “Que futuro temos?”, ou que fazer ao rato que passeia à noite pelas camaratas, ao ladrar dos cães que ali dormem com os donos e porque é que não se trocam os filmes de Vin Diesel por mais telejornais na televisão. Até que uma mulher se ergue para falar:

– “Eu gostava que pudéssemos beber café até mais tarde.”

Para quem vivia na rua, era um conceito estranho este de discutir as horas para beber ou comer. Durante os primeiros dias de pandemia em Portugal, logo no início de março, a questão era mais séria: como é que a comida ia chegar às ruas onde dormiam tantas destas pessoas. O decreto do Estado de Emergência, a 18 de março de 2020, tirou voluntários das ruas. O que se seguiu foi um rugir quer da força quer da fragilidade com que a rede de apoio aos sem-abrigo opera. E um teste perante a maior crise de saúde pública de sempre.

A rua esteve mais perto da fome

Soraia Tender, voluntária, durante uma operação de rua Foto: Orlando Almeida

Como todos os portugueses, em março, a voluntária Soraia Tender, de 32 anos, foi obrigada a recolher-se em casa. De um dia para o outro, num grupo de Facebook partilhado entre voluntários da associação CASA, da qual Soraia faz parte há cerca de quatro anos, um a um “começaram a dizer que não se sentiam seguros para ir para a rua”, perante um vírus ainda mais desconhecido do que atualmente é.

Na altura, a covid-19 já tinha matado milhares em todo o mundo. A situação era sobretudo complexa para quem lidava com vários sem-abrigo, nem todas em situação de higiene ideal. “Eu percebi que as pessoas estavam a entrar em choque. Foi como uma bomba”.

Mesmo Soraia, que até de datas importantes no seu calendário anual, como a passagem de ano, estava habituada a abdicar para estar na linha da frente a garantir refeições nas ruas, parou para pensar. Parar a ajuda que presta, de repente, nunca lhe soou certo, com medos ou não. Mas compreende: uns moravam com pessoas de idade e não queriam correr um risco maior; outros passaram a ter filhos 24 sobre 24 horas em casa; e também houve quem sentisse que, se não saía para trabalhar, também não faria sentido sair para o voluntariado. “Foi o choque, com a agravante de percebermos que o contacto físico é muito grande e a possibilidade de os sem-abrigo poderem estar infetados” – embora ainda não tivesse ouvido falar de nenhum caso positivo entre eles -, porque “muitas vezes [os] associamos a falta de cuidados e de higiene”.

Lisboa estava vazia de gente. Abateu-se sobre a cidade o silêncio. Se orvalhava, era tudo o que se ouvia durante muito tempo. Se não, às vezes, existia apenas a  persistência do ruído dos transformadores de energia nos postos de iluminação. Numa saída rápida ao centro, para recolher documentos profissionais de que necessitava para fazer o seu trabalho a partir de casa, Soraia lembra-se de uma sensação de arrepio. “Fazer a Avenida da Liberdade e não passar por um carro é assustador. A ideia que nos dá é de estarmos em guerra.”

À falta de movimento, também os sem-abrigo mudaram a morada. “Foram-se afastando” das zonas habitualmente movimentadas por locais e turistas, em busca das pessoas e da ajuda.

Teresa Bispo, coordenadora dos Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) de Lisboa Foto: Catarina Reis

Às associações, iam chegando relatos de fome. “O que nos iam dizendo é que havia gente que não estava a encontrar comida”, explica Teresa Bispo, coordenadora dos Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) de Lisboa. Além da falta de apoio, também não havia esmolas, nem sobras de restaurantes, fechados. “Houve, realmente, risco de fome nas ruas.” Estes núcleos foram criados em 2009 no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas Sem-Abrigo (ENIPSA) e contam com coordenação local. Há atualmente, em funcionamento, 22 NPISA em todo o país, do norte à ponta mais a sul.

Um único dia de fome para alguém pode ter graves repercussões, lembra Américo Nave, diretor da Associação CRESCER e psicólogo clínico. “Esta questão de não terem forma de se alimentar provoca danos na sua saúde psíquica [além de na física], porque entram num funcionamento primário, que pode levar à sua descompensação.” Passar um dia sem comer pode representar, para pessoas já em privações básicas (como o acesso a uma casa) “uma situação de desespero, em que a pessoa pode agravar o seu estado de sobrevivência – porque vivem permanentemente numa situação de sobrevivência”.

“Não fazia sentido abandoná-los! Quando comecei a ver os meus colegas a dizer que não havia condições [para irem para o terreno], alertei: ‘Calma lá. Esta gente tem de comer. Não podemos abandoná-los assim’”, lembra a voluntária Soraia. Se nem no Natal o fazem, “porque é que seria numa altura tão difícil como esta? Para mim, não fazia sentido que, com as ruas desertas, os abandonássemos. E como é que esta gente sabe o que se está a passar? Lá vão tendo o rádio deles, mas…”

Por isso, combinaram, entre poucos voluntários, ir “fazer uma volta” pelas rotas de distribuição de refeições “para dizer às pessoas que não os abandonam, mas que é preciso organização primeiro”.

Voluntários do CASA, durante a distribuição de refeições nas ruas Foto: Orlando Almeida

A rua é uma roda viva. Por isso, torna-se fácil perder o rasto de quem nela vive. “Eles vão e vêm, vão e vêm”, diz Soraia. Quando a Mensagem procurou encontrar sem-abrigo que tenham experienciado o desafio que estes primeiros dias do primeiro Estado de Emergência no país exigiram, não arrecadou nomes nem rostos. Restam as vozes de quem não sai do lugar: os voluntários.

Nuno Jardim, diretor-geral da CASA, garante que não houve um único dia sem voluntários. Mas dos 400 disponíveis até ao arranque da pandemia em Portugal, distribuídos por várias equipas e cinco rotas, sobraram tão poucos que apenas puderam completar uma equipa de rua. A mesma que agora faz três rotas. Assim que perceberam que faltavam voluntários, foram obrigados a “reajustar o tipo de trabalho” e conciliar esforços com outras associações, como é o caso da Noor’Fátima. Antes da pandemia, a CASA assegurava as rotas de Arroios, Saldanha até à Praça da Alegria, Cais do Sodré até Alcântara, Santa Apolónia e Estação do Oriente. Em março, encurtaram caminho para Arroios, Saldanha até à Praça da Alegria e Cais do Sodré até Alcântara. “Não conseguíamos cobrir a cidade toda.”

Antigos sem-abrigo alimentaram sem-abrigo

Aos poucos, a cidade foi cobrindo-se a si mesma, preenchendo vazios, alimentando todos. Além da organização entre associações, a Câmara Municipal de Lisboa assumiu a distribuição em parceria com o Exército, com a confeção das refeições ao encargo de cantinas escolares – que já estavam a preparar refeições para alunos carenciados.

E até antigos sem-abrigo saíram à rua para alimentar outras bocas. A iniciativa partiu num pequeno restaurante sediado na Rua São José, uma paralela à Avenida da Liberdade. Não é um restaurante normal, mas “É Um Restaurante”, como assim decidiram chamar-lhe. Nele, trabalham homens e mulheres que foram sem-abrigo, que estavam ansiosos por mudar as suas vidas e que ali encontraram a oportunidade para o fazer.

O restaurante abrira em outubro de 2019, sob a alçada da Associação CRESCER, para provar que “estas pessoas que estão em situação de sem-abrigo têm competência como qualquer outra pessoa”, como conta o diretor da associação, Américo Nave.

No restaurante criado para ajudar pessoas sem-abrigo, a carta é da autoria do chef Nuno Bergonse Foto: CRESCER

A proposta veio endereçada da Câmara Municipal de Lisboa, contraram a ajuda do chef Nuno Bergonse, conhecido Master Chef, que desenhou as fichas técnicas e o projeto onde os sem-abrigo são desafiados a mudar de vida aconteceu. Desde a abertura, já conseguiram colocar mais de dez pessoas no mercado de trabalho. Um desafio que assume vir a tornar-se mais complicado devido aos efeitos económicos da atual pandemia, com os quais também eles sofreram.

O vírus obrigou-os a encerrar portas, durante os meses de confinamento, tal como a restante restauração no país. Mas ali havia uma especial responsabilidade: “Quando soubemos que houve esta quebra nas refeições de rua devido a não existirem recursos humanos, fomos nós, em conjunto com estas pessoas que estiveram em situação de sem-abrigo, que se disponibilizaram para cozinhar e para irem à rua distribuir.” Nenhum deles teve dúvidas na hora de ajudar. Regressaram à rua, a sua antiga casa, reencontraram antigos camaradas e garantiram que, tal como aconteceu com eles, não eram esquecidos.

Pavilhões que são casas, com reuniões de condomínio

A chegada da noite pronuncia-se quase sempre num alvoroço de entradas no pavilhão do Casal Vistoso. Os que mendigaram durante o dia estão de regresso. Há quem tenha chegado de entrevistas de emprego, desabafando a fatalidade da tentativa. Outros já vestem pijama e pantufas.

No dia de Assembleia Geral, nas Olaias, onde os novos inquilinos, 200 sem-abrigo – antes crianças provenientes das várias escolas da freguesia e munícipes que aqui exerciam desportos -, debatem sobre o estado do seu condomínio improvisado. Uma vez por mês, levantam o dedo para falar. Deste modo, exerce-se aqui um direito de cidadania. É assim, porque não bastava tirar as pessoas da rua, era precisa dar-lhes uma casa – e com ela, reuniões de condomínio. E o direito a reclamar.

Um homem levanta a mão para falar durante a “reunião de condomínio” no Casal Vistoso Foto: Catarina Reis

O Casal Vistoso tornou-se casa de centenas de pessoas em março, como um centro de emergência de abrigo. Foi uma das soluções que a autarquia de Lisboa encontrou para defender os sem-abrigo que poderiam ficar abandonados nas ruas desertas, sem que lhes fossem prestados quaisquer cuidados de saúde. O pavilhão encheu ao final de dois dias. E outros centros de emergência foram abrindo. O Pavilhão da Tapadinha, por exemplo, abriu com capacidade para 50 pessoas. Entretanto, com o desconfinamento, foi necessário devolver o espaço para as suas atividades habituais e as pessoas que aqui tinham ficado alojadas foram realocadas na Pousada da Juventude do Parque das Nações. O Clube Nacional de Natação também cedeu, inicialmente, as suas instalações para 50 pessoas, mas estas acabaram por passar para a Casa dos Direitos Sociais, no bairro da Bela Vista. O quarto centro foi disponibilizado pela Santa Casa da Misericórdia: a Casa do Largo, que estava a ser utilizado para albergar rapazes com problemas com a justiça e que estavam de saída para novas instalações. A residência ficou destinada a mulheres sem-abrigo.

Sem voluntários, a Câmara Municipal de Lisboa viu-se obrigada a lançar um apelo à população para ajuda nestes centros, bem como na distribuição de cabazes a famílias carenciadas e de comida nas ruas. A partir de maio, com o desconfinamento e grande parte dos voluntários a regressar aos seus postos de trabalho, a autarquia fez um acordo com o Instituto Universitário de Lisboa para colocar alunos nos centros e é com eles. Funcionavam em turnos de oito horas, porque todos os espaços estão abertos diariamente e durante 24 horas.

Américo Nave, representante da CRESCER, não tem dúvida de que, na equação, o que deve ser considerado primeiro é a oportunidade de dar um teto a estas pessoas. É certo que a falta de alimentação traz graves problemas, diz. “Um sentimento de impotência e até de baixa autoestima, porque começam a pensar que não têm esse direito.” Por isso, “muitas delas, são pessoas que reclamam pouco, porque várias vezes têm sobre si próprias este estigma”.

“Tudo isto leva a que, muitas vezes, haja, de forma errada, quem diga que o problema das pessoas em situação de sem-abrigo é a saúde mental – e as adições. Nós discordamos muito disto. O problema da saúde mental existe em todos os estratos e é transversal a todos nós, tenhamos casa ou não, tenhamos emprego ou não. Em primeiro lugar, elas precisam de uma casa. Há muitas pessoas que descompensaram depois de estarem em situação de sem-abrigo. Vivem diariamente na rua situações de agressão, de falta de segurança”, sublinha.

Temas tão prementes que não deixam de ser preocupação, mesmo debaixo de um teto. Em todos os centros de emergência há, por isso, regras a cumprir. A violência e o consumo de drogas ou álcool dentro das instalações pode dar direito à expulsão dos utentes. Para quem luta com a dependência, os centros disponibilizam uma carrinha de consumo vigiado, com programa de metadona, a chamada ‘droga boa’.

E, dados os riscos de infeção por covid-19, todos os dias, antes de entrar, devem fazer a triagem – medir a temperatura, recolher máscaras limpas, limpar as mãos – para manter o local seguro. Teresa Bispo, coordenadora do centro do Casal Vistoso, está em frente dos utentes e termina a reunião com o alerta. “Temos de ter atenção sobre a importância de cumprir as normas da Direção-Geral de Saúde (DGS). Não queremos correr o risco de a DGS entrar aqui e fechar isto.”

Num dos cantos do átrio onde decorre a Assembleia, um homem de casaco vermelho, com uma fraqueza de corpo visível, olhar cerrado, levanta ligeiramente a cabeça, acena e diz alto: “obrigada”. Mais tarde, já com a reunião terminada, dirige-se a uma outra coordenadora, Dina Nunes, e faz questão de lembrar que está agradecido por estar aqui. Se Dina não se recorda, ele faz questão de dizer novamente: há meses, o álcool era um problema; agora, já não. É preciso “força de vontade”, garante, e diz que a teve toda.

“O que prova que a descompensação destas pessoas era não terem um teto”, comenta Américo Nave, que estabelece uma relação direta entre as histórias de sucesso que testemunhou e a entrada nos programas de alojamento para sem-abrigo.

Dá o exemplo do projeto “É uma casa, Lisboa Housing First”, ao abrigo do Programa Municipal de Apoio aos Sem-abrigo, que se compromete a dar uma casa a cada uma destas pessoas – todas elas dispersas pela cidade. “As pessoas com patologias psicológicas, quando entraram na casa, começaram a reverter os sintomas e a ter uma melhor saúde psíquica.” Desde 2013, já cederam 80 casas e a perspetiva é aumentar para 120 até ao final do ano.

A iniciativa tem ajudado a quebrar mitos que penetraram nas opiniões sobre as pessoas que vivem na rua. “Diz-se que ‘há pessoas que não querem sair da rua’ e nós, com este projeto, nunca encontramos ninguém que não aceitasse ir viver para uma casa.” Américo conta que há rejeições por parte de alguns quando são convidados a dormir em abrigos, onde por vezes “a agressividade e os roubos são maiores do que se estivessem na rua”.

“Mas por esta pessoa dizer que não quer partilhar um centro, não quer dizer que ela não quer sair da rua para uma casa – onde possa fechar a sua porta, fazer as suas próprias regras, deitando-se à hora que quer, ligando a televisão quando quer.” Fomentar a cultura do “pobre e mal-agradecido”, como designa, é estreitar o caminho para uma recuperação mais difícil. A sua experiência diz-lhe que está mais perto de recuperar “uma pessoa que é crítica às respostas” sociais. 

Era dia de visitas no Casal Vistoso. No final da reunião, duas voluntárias da Associação CRESCER pediram a palavra e ajuda para um questionário. “Sabemos que é a última das vossas preocupações.” Mas insistem, contra alguns olhares confusos, outros esperançosos, muitos encolher de ombros. Um dos utentes deste centro levanta-se da cadeira, a cambalear. O burburinho na sala dita-lhe a sentença: “está bêbado”. Ele grita perante as duas voluntárias: “respostas: zero”. E os colegas abanam a cabeça em jeito de negação, para mostrar que estão em desacordo com a atitude.

Tiago, um voluntário do centro que é cara conhecida já entre todos, por há poucos meses também ele ter sido um sem-abrigo neste local, não hesita nem mais segundo para se levantar. Rebaixa-se perante o utente já sentado, retira algo do bolso, um porta-chaves, levanta-o entre a pontas do polegar e do indicador da mão direita e dá uma lição. “A resposta está aqui.” Quer com isto mostrar que há programas municipais disponíveis para dar uma casa a todos eles. “Temos é de lutar”, ir a umas entrevistas, explica. Foi assim que ele mesmo conseguiu ganhar um teto.

Inverno de rua cheia

São já diversos os programas do Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem-abrigo, mas as estatísticas alarmam. Foto: Orlando Almeida

Vamos a números. São já diversos os programas incluídos no Plano Municipal para a Pessoa em Situação de Sem-abrigo, mas as estatísticas alarmam a cidade. Não é difícil fazer o exercício de encontrar um sem-abrigo nas ruas. De acordo com os dados da autarquia, há atualmente 356 pessoas a viver nas ruas de Lisboa e, só no último ano, chegaram mais 140. Há pelo menos 21 deste total a viver há mais de 10 anos em situação de sem-abrigo.

Em dois anos, o país mudou e a pandemia, como a crise de desemprego que gerou faz prever, pode ter escalado as estatísticas. Números atualizados ainda não os há, para além daqueles que mostram uma taxa de desemprego a subir em flecha (fixando-se nos 7,8% no terceiro trimestre do ano passado). Mas, nas ruas, os voluntários já preveem o pior. Soraia tem visto “mais gente”, “rostos novos” aqui e acolá.

É março, estávamos a um dia de contar um ano de pandemia no país, e na sede da associação CASA voluntários e colaboradores preparavam-se para mais uma noite de entrega de comida pelas ruas, onde já aguardavam longas filas. Na cozinha, já se lavam tachos e o chão. Por aqui, o dia de trabalho findou. São 20:00 e as refeições quentes estão acondicionadas em embalagens, as frias (pão, iogurtes, leite) distribuídas por sacos de plástico.

Numa sala, Soraia Tender junta-se a Patrícia Querido, coordenadora das equipas de entrega de comida do CASA, e a outros voluntários, em frente a caixotes de roupa, calçado, e cabides com casacos pendurados. “É preciso um casaco M para a dona Judite.” Patrícia agarra um, aprecia e garante: “ela vai adorar”.

Aqui, jaz todo o vestuário doado para a associação e que as pessoas que estes voluntários encontram nas ruas pedem. Calçado de homem, mais uma vez, está em falta. Levam as mãos à cabeça. Mais uma semana sem conseguirem fazer chegar um resguardo para os pés de quem mais precisa.

Patrícia Querido, coordenadora das equipas do CASA Foto: Orlando Almeida

Saem três carrinhas. A equipa da Mensagem acompanhou uma das rotas. A primeira paragem é nos Anjos, onde nos perdemos na contagem da fila: são dezenas, chegam como formigas e, “se aqui ficássemos, entregávamos comida toda a noite”, diz a coordenadora Patrícia Querido. Tem 40 anos e há 20 que faz voluntariado. Não só em Portugal: cada verão dedica ao voluntariado com refugiados na Grécia, no ano passado esteve na Guatemala, na fronteira com o México, e vai recorrentemente a Luanda, onde criou uma associação de apoio às mães. É fisioterapeuta e até esta valência profissional ligada à saúde lhe vale na rua, onde ajuda a curar feridas.

Coloque os auscultadores e ouça aqui uma noite com a equipa da associação CASA, da sede às ruas

Na fila, encontramos pessoas de idade, mulheres que são mães, crianças com menos de 10 anos, jovens adolescentes e vários estrangeiros. Uns de sorriso no rosto e uma palavra amiga para os voluntários, outros mais tímidos e com pressa. Para quem a fome é muita, vale a espera pelo fim da fila, para saber se sobrou alimento que possam levar a mais. Pedem mais um prato, perguntam pela sopa, se o que está lá dentro é frango ou vegetariano, fazem nova fila para o chá (apenas distribuído no Inverno), para máscaras e para pedirem à Patrícia que anote que roupa lhes faz falta. “Digo-lhe já, Paulo: sapatos não consigo arranjar, não há sapatos de homem. Mas vou pedir com urgência, à equipa de terça-feira [dia seguinte], que traga um saco de cama para si.”

Os voluntários reconhecem a maioria dos rostos, mas há muitos mais e novos, que chegaram nos últimos meses. Não têm dúvidas: fruto da crise trazida pela pandemia.

Ciente de que as ruas podem encher de pessoas que ficaram sem casa nos próximos meses que a autarquia está a preparar alternativas. Estava previsto o Casal Vistoso ser devolvido no final do ano passado, o que ainda não aconteceu, mas o vereador responsável pelo pelouro dos Direitos Sociais, Manuel Grilo, anunciou no início de outubro que estava a ser preparado um novo centro de emergência na cidade, para o substituir.

Também no final de outubro, a Câmara Municipal de Lisboa aprovou o financiamento para mais duas respostas de acolhimento para 35 pessoas em situação de sem-abrigo. Uma delas é Residência Solidária de Lisboa, com 25 vagas e que inclui quer quartos individuais, quer duplos, quer de casal. A segunda proposta passa pela disponibilização de quatro apartamentos de transição em habitação pública de tipologias T1 e T3.

A associação CASA está a precisar de doações de alimentos e peças de vestuário – sobretudo de calçado para homem (a partir do número 40). Se quer ajudar ou conhece histórias de sem-abrigo nas ruas de Lisboa que valham a pena receberem a nossa atenção, escreva aqui:


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt

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6 Comentários

  1. eu fui voluntario durante 5 anos no CASA e coordenei com uma equipa que vimos coisa que não devíamos ver a saímos todos, porque cml e o estado da dinheiros para alguns aproveitar “Os grandes” é pena !!

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