
1. O homem que planta flores
Passava pouco do meio dia quando Mocan Grigori chegou ao Pavilhão do Casal Vistoso, onde dormia há vários meses. Surgiu de olhos descaídos, pálpebras quase cerradas e com os extremos dos lábios vertidos para o queixo. O andar, coxo, pesado, lento. Tem só 36 anos, mas parece ter 100. As solas dos sapatos que calça fazem-se ouvir alto no pavimento, como que botas de aço a pisar chão de vidro. Percebe-se que estuda constantemente a força dos passos, para decidir que intensidade não provocará tanta dor ao caminhar para a frente.
Era aqui que dormitava, num pavilhão desportivo transformado num dos centros de emergência da cidade de Lisboa para os sem-abrigo. Não fala português, por isso a conversa faz-se através da ajuda de um tradutor da organização Médicos do Mundo que o acompanha regularmente em consultas. Estava em recuperação por uma costela partida de uma queda que deu e a fazer medicação para o problema de alcoolismo.
Mykola Chaban, o tradutor, lembra-se bem do dia em que viu Mocan chegar ao pavilhão. Vinha nervoso e alheio a tudo. Estava há uns dias em Lisboa, onde chegara, vindo do Alentejo. Tinha ficado sem emprego na apanha da azeitona e, com ele, foi-se a casa, a comida, todo o apoio em Portugal. Como outros que chegaram na mesma altura, um grupo de “cinco a seis pessoas”, da Moldávia. Um casal, depois uma irmã e um irmão, por aí fora. Alguns já tinham regressado ao país de origem. Foram com a ajuda da administração dos Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA) e da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Mocan ainda era uma exceção entre todos: “não tem para onde ir, não tem casa, não tem lugar”, contava-nos Mykola. Ou seja, não foi hoje que a covid afetou os imigrantes que trabalham no Alentejo: o problema vem de longe.
Enquanto aguardava, Mocan dedicou-se a uma paixão que não sendo antiga era a única alegria de um rosto quebrado: as suas flores. No pavilhão, ficou conhecido como o homem que planta flores e quando falava delas a sua expressão iluminava-se imediatamente. Pela primeira vez desde que a conversa arrancou, há sorriso à vista.
Nunca falha à tarefa de as cuidar, estacionadas num pequeno terraço escondido dentro do pavilhão. “Metade já morreu”, diz, pela falta de prática. Outra metade ainda sobrevive e, por isso, Mocan prontifica-se logo a mostrar caminho até elas. Têm a raiz presa à terra que se esconde dentro de vasos a sério ou improvisados – latas velhas decorativas de arroz ou massa que perderam o seu uso. Chegaram ali através de um lisboeta que Mocan conheceu e que lhe propôs ficar com alguma quinquilharia da qual se ia desfazer com uma mudança de casa. Ficou com tudo: vasos e sementes para cultivo.
Quando era mais novo, na Moldávia, nem ligava a plantas. Foi um amor de adolescente que despoletou este gosto. Apaixonou-se por uma rapariga que lhe pediu uma e daquela primeira paixão ficou a curiosidade e o amor por flores. “Romântico”, exclama o tradutor Mykola ao ouvir. E Mocan, o sisudo, repete: “romântico, romântico”. Quase cinematográfico, como a odisseia que conta sobre a sua chegada a Lisboa.

2. A corrida pelo mundo, até ao Alentejo
Tinha sido apenas há cerca de ano e meio que Mocan abandonara a Moldávia em busca de trabalho. Pouco o prendia no seu país: o pai não o conheceu até aos 18 anos; a mãe deixou-o quando ele tinha apenas dez, para ir viver com outro homem. Ficara à guarda da avó e, mais tarde, fora institucionalizado.
A viagem trouxe-o até Espanha, onde apanhava batata. Não se lembra em que zona, se no sul ou no norte deste país. A geografia não o preocupa. Sabe apenas que estava a um pequeno passo de rumar a Portugal, onde os amigos disseram que teria de ir à procura de trabalho. “Disseram que o trabalho era melhor, que havia mais oportunidades.”
Acabou por estacionar em Beja, para trabalhar na apanha da azeitona. Num dia normal, Mocan acordava às cinco horas da manhã, bebia chá e, às seis, uma hora depois, já aguardava o transporte para o terreno de trabalho. Todos eles trabalhavam de oito a 12 horas por dia. Eram homens e mulheres, moldavos, ucranianos, da Bielorrússia, entre outros. Mais de 70 pessoas. Cada um partilhava o quarto com mais cinco, embora as mulheres separadas dos homens.
No princípio, “estava tudo muito bem”. Tinha emprego, comida e teto. E poucas ou nenhumas saudades de casa. Entretanto, o Inverno aterrou, até em terra seca do Alentejo. Os trabalhadores foram obrigados a parar por causa da chuva e esperar que ela passasse, suspendendo os trabalhos. E, depois, veio a pandemia.
Foi aí, conta, que Mocan decidiu esconder a mágoa nas bebidas alcoólicas. E isso foi um pequeno gatilho para a explosão que estava prestes a seguir-se. Um dia, o patrão pediu-lhe que se fosse embora. Já não precisava dele para assegurar um trabalho que já era escasso e a escolha sobre quem ia ficar certamente não iria recair sobre quem acabava de iniciar um problema com o álcool.
Mais uma vez, fez-se à estrada. Mas, agora, caminho de Lisboa, onde lhe disseram que haveria trabalho e mais oportunidades. E, afinal, aquela era a única cidade cujo nome conhecia.
Foram mais de 160 quilómetros – todos feitos a pé, que numa pandemia onde os espaços fechados são o maior perigo e o desconhecido uma hipótese de contágio, poucos darão boleia a estranhos. A pé fez quase todo o caminho de Beja a Lisboa que serão mais de 60 horas de estrada – como nos indica uma estimativa do Google Maps.
A viagem durou quatro dias. Sozinho. Com uma mochila às costas, num março frio de um ano terrível. Apenas levava uma muda de roupa quente para proteger o corpo das noites mais gélidas. Se não encontrasse um abrigo onde dormir, teria de o fazer ao relento, onde calhasse.
Inicialmente, caminhou pela autoestrada, seguindo as placas em direção a Lisboa. Entretanto, a GNR advertiu-o sobre a proibição de andar ali, indicando caminhos secundários. Quando se perdia, voltava à autoestrada, o caminho mais evidente, e, novamente, era parado pelas autoridades, que lhe voltavam a indicar alternativas. Foi assim durante quatro dias. E durante quatro dias Mocan não comeu. “Também não pedia comida”, conta.
Quando a noite caía, abrigava-se debaixo de árvores e de pontes. Noite após noite, até chegar ao destino.

3. Lisboa, a porta para casa
Cansado e esfomeado, foi assim que pôs o pé em Lisboa. De pormenores pouco se lembra, na confusão mental em que se encontrava. Sabe apenas que entrou numa estação de metro onde encontrou uma mulher a falar a sua língua. E chorou.
Esta mulher não tinha nada consigo para lhe oferecer, mas trabalhava na casa de um padre e falou com ele para que ele pudesse conhecer Mocan e ajudá-lo. Assim foi. No final do encontro, o padre deu-lhe 70 euros, com os quais ele sobreviveu durante mais cinco dias. Ao relento, mas na cidade, onde queria recomeçar a vida.
Utilizou o dinheiro para, além de comprar comida, transportar-se pela cidade em busca de um abrigo. As vagas escasseavam. Como ele, havia muitos outros, por isso, foi continuando na rua. De dia para dia, o tempo exigia mais paciência e resiliência para os “não”. E Mocan estava decidido a procurar abrigo, mas a verba que tinha disponível já não cobria muitas mais tentativas. Já nervoso e preocupado de que esta condição se prolongasse infinitamente, resolveu ir a uma esquadra de polícia, onde lhe deram a morada do centro de abrigo no pavilhão do Casal Vistoso.
Leia também a reportagem: Os dias em que os sem-abrigo de Lisboa estiveram em risco de fome
Aqui chegou apenas para perceber que muitos outros, como ele, tinham feito o mesmo caminho, dos campos alentejanos para a capital portuguesa. Poucos dias depois de ter sido decretado o confinamento, as carrinhas de distribuição de comida nas ruas de Lisboa e os centros de emergência criados para alojar sem-abrigo testemunharam este fenómeno de vários grupos de estrangeiros vindos sobretudo do Alentejo, pelo próprio pé. Contavam a história e pediam comida e teto – que julgavam ser mais fácil de encontrar na grande cidade.
Mocan era, no final do ano passado, o que restava dos que foram identificados por responsáveis pelos centros de emergência. Sem família para o esperar, a casa dele era onde estivesse. Quase todos os outros estrangeiros conseguiram regressar às suas terras de origem com a ajuda de organizações, entre as quais a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).
“Não nos chegaram casos destes em número que nós pudéssemos considerar alarmante. Foram poucos, mas precisavam da nossa ajuda. São pessoas que até tinham planos em Portugal, mas que saíram falhados. Alguns deles quiseram regressar, vieram pedir-nos este apoio.” E a SCML fez acontecer, como lembra Marisa Melo, coordenadora do atendimento social da Unidade de Emergência desta instituição. Do outro lado, tentavam garantir que havia quem os esperasse, marcavam viagem, garantiam alojamento num hostel se este não estava assegurado até à data de partida e pagavam o regresso. “Tivemos de unir esforços. Quem mais poderia ajudar estas pessoas?”
Com um passado complexo tão perto do presente, falar de futuro ainda é conversa de amanhã para Mocan. Embora tivesse um plano. Em primeiro lugar, lutar por recuperar a sua saúde e deixar o álcool. Depois disso, o sonho seria possível: voltar à Moldávia. Lá, aguardava-o uma velha amiga, irmã de um homem tetraplégico de quem Mocan cuidou durante anos, que lhe garantia um quarto. “Mas não com esta condição da bebida.”, conta.
Mykola arrumava o pessimismo: “Ele ainda tem esperança de voltar e volta”. “Mas vamos mandar embora um sem-abrigo para continuar a ser sem-abrigo, mas num outro país?”, questiona o tradutor e cuidador. “O nosso objetivo é ajudar as pessoas a saírem da rua, a terem uma segunda chance na vida. Não é só dar a mão e puxar. Temos de segurar também, para que a pessoa possa levantar-se pelo seu próprio pé. Como uma criança, quando nasce, aprende a caminhar.”
No início deste ano, Mocan regressou ao ponto de partida, à Moldávia. Ficaremos sem saber se para o quarto que tanto lutou para ocupar e se ainda lá planta as suas flores.
*Ilustrações de Teresa Sacramento

Catarina Reis
Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.
✉ catarina.reis@amensagem.pt
Parabens pela excelente reportagem
Olá Catarina
Parabéns pela sua abordagem e história comovente.
Será qua não pode a Catarina ou um outro colega seu, fazer uma próxima destas, mas agora na origem do problema real, investigar e contar para fora o que afinal se passa nestes campos agrícolas que supostamente andam a “explorar” seres humanos e a dar condições medíocres de vida ??
Se é que andam??
Se andam onde anda a ASAE ??
Dar vóz a outros Mocan’s??
Que se passa ou não passa nas estufas nas redondezas de Odemira ?? Onde e como vivem os trabalhadores dessas explorações agrícolas.
Só uma sugestão, se calha bem mais abrangente.
Mais uma vez muito obrigado pela história e parabéns.
Será que o nosso governo não é responsavel por permitir que humanos vivam nestas condições?
e não foi o único… alguns russos, outros moldavos…
Um grupo de russos veio também de Évora a pé no começo da Pandemia.
Penso que em Junho já tinham todos encontrado outras soluções
Parabéns. Muita força e sensibilidade na sua escrita. Coragem para falar da pobreza.
Lindo texto. Linda história. A dureza da vida! Os seres humanos nasceram para ajudar uns aos outros. É preciso resgatar nossa humanidade 🙏.
Uma reportagem sobre um assunto que não é normalmente abordado. Eu pelo menos desconhecia que estas pessoas tinham sido dispensadas e que tiveram de encontrar soluções sozinhas, quando a maioria não fala português, ou o que fala não é entendido o suficiente para pedir ajuda. Uma história de vida sobre a qual gostaria de saber mais, por isso espero que brevemente haja uma parte 2 com boas notícias.
Catarina,
Chorei com a sua história.
Tal como o Rui Cristóvão, eu já me tinha perguntado onde andaria a ASAE, quando começaram a surgir notícias sobre a pandemia nos campos de apanha de frutos de Odemira. E o governo acha que uma cerca sanitária resolve o problema. Isso é tapar o sol com uma peneira. A questão é muito mais funda e por isso fiquei tão emocionada pela forma brilhante como a Catarina a mostrou na sua reportagem. Parabéns Catarina pelo seu estofo. É de jornalistas da sua estirpe que precisamos. Mas precisamos alargar está mensagem a todos, especialmente aos que não lêem por preguiça mas vêem muitos filmes…precisamos que os nossos realizadores de cinema e televisão agarrem esta história que é uma poderosa mensagem para Portugal e para o mundo. Para se alertar para esta escravatura no trabalho. Já por si, a sua história é um perfeito argumento cinematográfico…conhece alguém no meio com coragem? Quem se chegará à
frente?
Isabel,
Muito obrigada pelas suas palavras. Ainda bem que nos lê!
Olá, Margarida
Infelizmente, já perdemos o rasto ao Mocan. Sabemos apenas que voltou para onde sonhava há muito tempo voltar. Esperemos que esteja bem.
Obrigada por nos ler!
Obrigada pelas palavras, Clara! E que bom que nos lê.
Olá, Rui
Obrigada por este comentário. De facto, o problema não é novo e há anos que jornalistas o têm relatado, entrando dentro das casas onde vivem estes estrangeiros vindos para Portugal, para expor as condições em que habitam. O importante é não deixar de o fazer. E dar sempre voz a pessoas como o Mocan.
Muito obrigada pelas palavras, Alexandre. Continue a acompanhar-nos por aqui 🙂
Boa tarde Catarina,
História como esta, há todos os anos. E repetem-se já desde 2011. E é por todo o Alentejo. Tudo o que seja exploração agrícola ” quer trabalhadores ” baratos, oriundos de países estrangeiros e que a troco de nada, tornam a exploração super- lucrativa.
A realidade que eu melhor conheço é a do Alentejo Litoral e asseguro-lhe que não há nenhum, mas mesmo nenhum Concelho, que não beneficie do trabalho escravo.
É só confirmar junto dos Centros de Emprego respetivos, que não são feitos pedidos de trabalhadores agrícolas para trabalharem em explorações agrícolas de arroz, tomate, morango, Mirtilo, azeitona, amora, etc.
Tudo o que vê nas grandes superfícies à venda, oriundo do alentejo, é feito à custa de escravatura, sim.
No tempo do fascismo, eram os homens e mulheres, essencialmente do Norte do país, que se deslocavam para o alentejo, nos ” mesmos ” moldes para fazer o mesmo trabalho escravo. Eram apelidados de ” ratinhos “. Agora, ” os ratinhos ” veem de mais longe, mas a escravatura e completa ausência de respeito pelos direitos humanos, mantem- se.