Opositor ativo ao regime militar instalado no Bangladesh no início dos anos 1980, Rana Taslim Uddin tinha pouco mais de 20 anos quando viu a morte rondar. Fugiu. Hong Kong, Macau, Tailândia, Lisboa. Chegou à capital portuguesa em 1991, ouviu fado no Bairro Alto e sentiu-se em casa. Então, eram seis ou sete os compatriotas que cá viviam. Hoje são milhares. Muitos no Martim Moniz.

E Rana, líder da Comunidade do Bangladesh em Lisboa, não compreende que, quase vinte anos depois da última grande manifestação de ódio aos imigrantes – promovida pela Frente Nacional, grupo neonazi, em 2005, e apoiada pelo então PNR, atual Ergue-te -, entre o Martim Moniz e o Rossio, volte a ameaçar a paz que garante reinar entre as 89 nacionalidades que vivem e trabalham naquela zona de Lisboa.

“São 89 nacionalidades juntas que vivem ali e nunca houve conflitos umas com as outras nem com o povo português, que é um povo solidário e que acolhe bem quem vem de fora. Portugal é um país de paz e é muita vergonha que algumas pessoas queiram estragar a paz, a democracia e a liberdade”, diz Rana.

Ele que nas últimas semanas não tem tido mãos a medir no diálogo com a comunidade que representa e as autoridades, depois do anúncio de uma manifestação contra os imigrantes, marcada para dia 3 de fevereiro no Martim Moniz pelo grupo nacionalista e neonazi 1143.

O facto de esta não ter sido autorizada, dada a sua ilegalidade (as leis portuguesas proíbem manifestações racistas e xenófobas), não descansa o líder da comunidade do Bangladesh de Lisboa.

“Já conversei com as nossas pessoas e também da Mesquita [Baitul Mukarram, na Rua do Benformoso] no sentido de não responderem a provocações. Se for preciso fechar as lojas durante algumas horas, fechamos. Estamos no nosso lugar, como deve ser. Não vamos entrar em confrontos”, diz Rana Taslim Uddin, 56 anos, óculos redondos, boina preta.

“Afinal, Portugal era na Europa, valia a pena ir para Portugal

Não deve ter mudado muito desde os tempos em que se formou em Ciências Políticas, na Universidade de Daca, no fim dos anos 1980. Dessa época trouxe a militância política. Em Lisboa tornou-se o líder da comunidade do Bangladesh, uma das primeiras a instalar-se no Martim Moniz e Intendente e a mudar aquela zona da cidade – agora no centro de tanta polémica.

Um dos impulsionadores da Mesquita da Mouraria, protocolada em 2013 com o então presidente da Câmara de Lisboa, António Costa e que até hoje não passou do papel, Rana tem sido uma figura chave da integração dos imigrantes do Bangladesh na capital portuguesa, e por isso fomos conhecer a sua história, a história de alguém que chegou a Portugal praticamente por acaso, e aqui ficou, amando a terra.

Numa esplanada do Largo do Intendente, Rana conta-a cronologicamente, impávido, a emoção a denunciar-se apenas quando lembra o pai, que recorda pacato e trabalhador, “um sofista”, e, sobretudo, a mãe.

Quando se viu obrigado a fugir do Bangladesh, o destino escolhido foi Hong Kong, “porque não era preciso visto para entrar”. Partiu sozinho, diz, “com 500 dólares no bolso” e nenhum plano, ninguém à espera dele. “Ninguém soube, só a minha mãe. Nem o meu pai soube. Disse à minha mãe que voltava daí a uma semana, mas sabia que não ia voltar. A minha mãe estava a chorar e eu também já estou. Desculpa emocionar-me, mas esta é uma parte da minha vida que nunca conto a ninguém”.

Rana Taslim Uddin, presidente do Centro Islâmico do Bangladesh
Rana Taslim Uddin, presidente da Centro Islamico Do Bangladesh e da Mesquita Baitul Mukarram, chegou a Lisboa em 1991 e tornou-se o mais destacado representante da comunidade daquele país em Lisboa. Foto: Rita Ansone

Transposta a fronteira do território então ainda sob administração britânica, apanhou um táxi. Para o Hotel Hilton. Foi o que lhe ocorreu. Chegado lá percebeu que o dinheiro que trazia no bolso dava para três noites. O gerente do hotel, conta, encaminhou-o para a YMCA (organização internacional da juventude cristã que tem pousadas um pouco por todo mundo).

Segundo ele, o domínio do inglês e a desenvoltura natural contribuíram para singrar naquela metrópole, que era tão diferente de Daca. Encontrou um bairro onde viviam muitos compatriotas e arranjou trabalho no setor de exportação de uma fábrica. De três em três meses tinha de sair do território. Para a China, para Macau, para a Tailândia, até que o tempo máximo de permanência em Hong Kong se esgotou: ano e meio. Havia que escolher outro destino.

África é terra de oportunidades, disse-lhe o patrão. Não quis.

“Ele disse que mandava mercadoria para mim e eu vendia lá, mas eu disse que não, que tinha medo, que África era uma terra onde as árvores também comiam pessoas. Ele ria, ria mesmo, e então disse: vai para Portugal, que nós dizemos que é Norte de África. Eu não conhecia Portugal, não sabia nada sobre o país. Era 1990 e não havia internet, como é que eu ia saber mais sobre Portugal? Mas aquilo ficou a andar sempre na minha cabeça”.

E tanto andou que Rana foi ao consulado de Portugal em Hong Kong, pediu revistas e jornais e informações e descobriu que Portugal pertencia à CEE (Comunidade Económica Europeia, atual União Europeia). “Afinal, Portugal era na Europa e o meu patrão estava a brincar comigo. Então, pensei eu, valia a pena ir para Portugal. Daí podia ir para qualquer outro país da Europa ou para o Canadá”.

Não foi.

De Hong Kong ao Martim Moniz

Quando aterrou em Lisboa e saiu do avião, vindo de Hong Kong, o aeroporto Humberto Delgado pareceu-lhe uma estação de comboio. Perguntaram-lhe para onde ia. Disse que para o Marquês de Pombal, conta. Foi o que lhe ocorreu.

Hospedado num hotel da zona, recorda que andou uma semana a calcorrear a cidade. Av. da Liberdade, Bairro Alto, Praça da Figueira, Martim Moniz, e descobriu a Mesquita Central de Lisboa, na Praça de Espanha. O dinheiro que trazia dava para aguentar-se uns meses. Meses que aproveitou para descobrir Lisboa, a comida portuguesa, sobretudo o bacalhau, que diz adorar, e o fado.

Foi no Bairro Alto que Rana, recém-chegado a Lisboa, ouviu fado pela priemira vez. Lembrou-lhe as canções do seu país e sentiu-se em casa.

“Passava muito tempo no Bairro Alto, a ouvir o fado. Impressionou-me muito aquela música melancólica, não percebia o que diziam, mas pensava que era uma coisa mesmo profunda, do coração. Lembrou-me as canções do Rabindranath Tagore [escritor e compositor bengali, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1913], canções que nós chamamos de Rabindra Sangeet. Ficava muito sossegado a ouvir”.

Havia que encontrar trabalho e uma casa para viver. A barreira linguística foi a primeira que se ergueu. Falava inglês, hindi e bengali. Naquela altura de pouco servia se não falasse também português. Em seis meses, esgotou-se o dinheiro e foi na mesquita, conta, que o ajudaram a encontrar trabalho. Foi trabalhar com um paquistanês, a pintar casas.

Lisboa acolheu-o bem, diz. A calma, o calor, o fado e a simpatia fê-lo esquecer os planos de partir para o Canadá ou qualquer outro país da Europa.

“Gostei muito da tranquilidade de Lisboa e fiquei. Passado algum tempo criei uma empresa de pinturas e remodelações, mas aquilo não era trabalho para mim e três anos depois fechei. Em 1995 aluguei uma loja na Costa da Caparica, que era zona de turismo, e estava a correr muito bem, mas no ano seguinte a minha mãe adoeceu e eu larguei tudo e fui para Bangladesh”, conta Rana.

Quando voltou do Bangladesh, vinha casado. A mãe entendeu que era altura de o filho assentar. Idas e voltas e Rana regressou definitivamente, já com a mulher, grávida do primeiro filho. A loja da Costa da Caparica perdeu-se. “Tudo perdido. A vida começou nova.”

No território da junta de freguesia de Santa Maria Maior, em que se inclui a Baixa de Lisboa e o Martim Moniz, convivem 89 nacionalidades diferentes. Para Rana, isso é uma riqueza e não um problema. Foto: Inês Leote

Com casa na Calçada de Santana, onde vive até hoje, dedicou-se ao comércio. Primeiro na Feira Popular, onde ele e a mulher vendiam brindes das três da tarde à meia-noite, sempre com o filho bebé debaixo de olho. Depois no Centro Comercial Babilónia, na Amadora, e também em Almada. Aí esteve pouco tempo: a loja vendia bebidas alcoólicas e, sendo Rana muçulmano, isso não se coadunava com a sua religião.

Finalmente, chegou ao Martim Moniz, onde conta que teve seis lojas. Até que a crise de 2010-2013 o fez fechar tudo e dedicar-se apenas ao trabalho que já ia acumulando nas horas vagas: tradutor de bengali no Ministério da Justiça, nas forças policiais, PSP, GNR e PJ, e no DIAP. É a isso que hoje se dedica em exclusivo. A par da atividade associativa e política.

“Os meus filhos são lisboetas, Lisboa é a terra deles”: como o Martim Moniz o cruzou com o resto do mundo

Um ano depois de chegar a Lisboa, Rana Taslim Uddin já estava a mobilizar os poucos – na altura – compatriotas que viviam então na capital portuguesa e fundou a Comunidade do Bangladesh de Lisboa, em 1992. Hoje é o líder assumido de uma comunidade que ascende a milhares, 9 mil pessoas legalizadas, segundo o INE. E é também presidente do Centro Islâmico do Bangladesh (que fundou no virar do século), da Mesquita Baitul Mukarram (a funcionar desde 2006), da Associação de Amizade Portugal-Bangladesh e ainda vice-presidente da All European Bangladesh Association.

No Martim Moniz e a Rua do Benformoso vivem e trabalham muitos imigrantes do Bangladesh e de outros países da Ásia Meridional. Rana diz que estão integrados, vivem e paz e contribuem para a economia portuguesa e por isso não percebe a animosidade contra a comunidade. Foto: Inês Leote.

A Praça do Martim Moniz, lugar de todas as culturas e onde Lisboa se encontra e encontrou com o resto do mundo, tem sido o centro do crescimento da comunidade do Bangladesh em Lisboa, que dali sobe ao Intendente, com núcleo forte na Rua do Benformoso – uma espécie de Little Bangladesh lisboeta.

A rua onde será a mesquita por fazer.

“Fizemos um protocolo há 11 anos e ainda não está avançado o trabalho. Isto eu posso dizer que é burocracia, que é falta de interesse nas pessoas, nos imigrantes, na liberdade religiosa, que não basta estar escrita, tem de ser praticada”, diz Rana, que faz questão de destacar o diálogo e o bom convívio com todas as religiões. “Quando o Papa Francisco veio cá, na Jornada Mundial da Juventude, fiz questão de estar na primeira fila a cumprimentar. Partilhamos a mensagem dele de paz e harmonia entre todos.”

Voltando às recentes polémicas, lembra que os milhares de muçulmanos que vivem e trabalham nesta zona pagam água, eletricidade, rendas, impostos, taxas municipais, e contribuem para a economia portuguesa.

Para Rana, que, em trinta anos, viu crescer a comunidade de meia dúzia de pessoas para dezenas de milhares, na Grande Lisboa, isso é bom.

“A comunidade do Bangladesh veio trazer luz a esta zona, à Rua do Benformoso, à Mouraria, ao Martim Moniz. As pessoas tinham medo de vir aqui, havia droga, violência, prostituição. Nós abrimos caminho para ser uma zona de comércio, com restaurantes e gastronomia de outros países. Aqui é zona multicultural agora e atrai turistas e lisboetas”, diz Rana, que não compreende vozes que o mandem para a terra dele.

A terra dele agora é aqui.

“Tenho dois amores: Lisboa e Daca, mas é aqui que quero ser enterrado. O meu filho e a minha filha são lisboetas. Nasceram aqui e não imaginam viver noutro lugar. Esta é a terra deles. Uma vez, numa reunião, disse: quando em 1498, o Vasco da Gama foi a Bangla, minha terra, eu disse ‘senhor Vasco da Gama, bem-vindo’, não disse ‘olha, porta fechada, você pode ir embora’. Portugal tem tido a porta aberta, não manda embora ninguém. 500 anos depois vai fechar a porta?”.


Catarina Pires

É jornalista e mãe do João e da Rita. Nasceu há 49 anos, no Chiado, no Hospital Ordem Terceira, e considera uma injustiça que os pais a tenham arrancado daquele que, tem a certeza, é o seu território, para a criarem em Paço de Arcos, terra que, a bem da verdade, adora, sobretudo por causa do rio a chegar ao mar mesmo à porta de casa. Aos 30, a injustiça foi temporariamente corrigida – viveu no Bairro Alto –, mas a vida – e os preços das casas – levaram-na de novo, desta vez para a outra margem. De Almada, sempre uma nesga de Lisboa, o vértice central (se é que tal coisa existe) do seu triângulo afetivo-geográfico.


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