Os pombos levantam voo e pousam no lago em forma de estrela, onde as cores se cruzam e as línguas se dissolvem no cheiro a especiarias. Há skates e correrias de miúdos, conversas, passeios solitários e poiso para quem não tem onde dormir. Este é o Martim Moniz, ponto de encontro entre histórias e culturas, lugar de passagem para uns, de permanência para outros.
Diz-se que por aqui as forças portuguesas entraram, rompendo com a cerca mourisca, feito que não seria possível sem o herói que deu nome à praça. Em tempos foi morada das hortas medievais e mais tarde seria ressuscitada pelo nacionalismo do Estado Novo. É hoje lugar de apropriação e pulsa com vivências de todo o mundo, do tai chi ao críquete.
Mas há algum tempo que os lisboetas exigem mudanças: mais espaços verdes, mais limpeza, menos ruído, mais segurança… menos abandono e esquecimento.

Com a polémica de uma adjudicação e um processo revertido, as vozes foram ouvidas e deu-se o arranque de um processo participativo promovido pela Câmara Municipal de Lisboa em finais de 2020, que abriu a discussão sobre a praça a todos os cidadãos.
Já faz mais de um ano. Para já, a CML prevê que a proposta do programa base feito de acordo com o processo que ouviu os cidadãos seja submetida a reunião de Câmara durante o primeiro trimestre de 2022 e que o concurso seja lançado até ao final do ano.

Um ano passado sobre o início deste longo processo, o que vai realmente acontecer ao Martim Moniz é ainda uma incógnita para todos os que entraram na discussão. E para quem já há muito luta pela praça esta espera não tem sido fácil.
É o caso de Susana Simplício, do movimento Um Jardim para o Martim Moniz, e da associação Renovar a Mouraria. Foi esta associação que em 2019 conseguiu formar um cordão humano para contestar o projeto privado que ali propunha a instalação de contentores com comércio, que, diziam, agudizaria o problema de ruído e de poluição que já se sentia na praça.
O que queriam ver os fregueses no Martim Moniz? Muitos responderam: um jardim. Graças à formação do grupo Jardim Martim Moniz e ao lançamento da petição Por um Jardim no Martim Moniz, que recolheu 1600 assinaturas, a Câmara acabaria por recuar. Abriam-se assim as portas para a inclusão dos cidadãos nas decisões sobre o futuro da cidade.

Agora, a demora levanta algumas dúvidas. “Compreendemos que com o novo executivo tenha havido atrasos, mas esperamos que nos mantenham envolvidos no processo”, diz Susana Simplício, também representante do Jardim Martim Moniz.
Para já, não há novidades quanto à continuação da participação dos cidadãos, movimentos e associações.
À Mensagem, a CML diz que “pretende dar resposta às manifestações dos cidadãos que se uniram, organizaram e contribuíram para uma nova solução de requalificação” e garante que “manterá informados os cidadãos e associações quer do programa base para concurso público internacional quer das fases consequentes”.
Roberto Falanga, investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS) e consultor externo do processo participativo do Martim Moniz, não tem informação do processo, nem sabe se continuará envolvido. A CML esclarece que “no que diz respeito ao investigador Roberto Falanga, este participou no desenvolvimento e implementação da metodologia do processo participativo, aprovado em reunião de câmara por unanimidade, cujas fases já foram implementadas”.

Envolvido ou não oficialmente, o investigador explica que “este é um processo que demora imenso e em que a questão da confiança é fundamental”. A demora nas respostas e no avanço da obra deve-se, na sua perspetiva, à mudança do executivo, mas também à discussão que foi lançada em relação à implementação da ZER (Zona de Emissões Reduzidas) no Martim Moniz.
Os relatórios de participação permitem adivinhar alguma coisa. “Existe uma evidência: a praça precisa de ser um espaço mais verde, mais acolhedor, mais agregador, que tenha algum equipamento”, diz Falanga.
Espaço verde no Martim Moniz: consenso ou falta de discussão?
“Jardim”, “verde”, “cultura”, “espaço” e “segurança” são as palavras que mais surgem associadas às propostas de requalificação dos 1009 participantes de um primeiro inquérito que decorreu entre 18 de dezembro de 2020 e 15 de janeiro de 2021. O mesmo para os onze focus groups (74 cidadãos no total) promovidos pela autarquia, de forma a incluir aqueles que normalmente não participam tanto em votações online, como a comunidade internacional, os mais novos e os mais velhos.
Mais verde – é o desejo transversal. Até para as 73 crianças do jardim de infância e da escola primária da freguesia de Santa Maria Maior que foram convidadas a desenhar soluções para a praça, e aos oito participantes de uma segunda fase do processo que aceitaram o desafio de ilustrar propostas.

Mas se a solução de um jardim soa bem a Tiago Mota Saraiva, já a forma como este processo foi conduzido merece críticas do arquiteto e ativista pelo direito à cidade. “Os relatórios são ingénuos. Toda a gente parece achar espetacular a ideia do jardim, mas se queremos discutir, temos de refletir”, diz.
Para o arquiteto, não houve discussão pública e a sua perceção é a de que a CML construiu o processo para validar a ideia pré-existente da construção do jardim, que implicaria o debate sobre a impermeabilização, o potencial de uma bacia de retenção no Martim Moniz e a questão do estacionamento subterrâneo ali existente. Temas que não foram discutidos pela população.
Existiu alguma discussão entre as pessoas e os focus groups, contrapõe Roberto Falanga, se bem que essa sensação de “ausência de diálogo” pode ser explicada pelo facto de o processo participativo ter migrado do presencial para o virtual.
“Com a pandemia, passámos meses a fazer e a desfazer planos”, argumenta o investigador. O primeiro passo do processo participativo passou pela recolha de informações sobre a praça. “Parece óbvio mas foi fundamental para se conseguir uma participação informada que nem sempre é acautelada”, diz Falanga. O resultado foi uma exposição sobre o Martim Moniz, que ainda hoje se encontra disponível online.
Mota Saraiva contrapõe que esta “participação informada” não aconteceu. E dá o exemplo das crianças. “Quem trabalha com elas, sabe que se alguém lhes diz para desenhar uma praça, vão desenhar jardins e baloiços. O que seria interessante era pô-las em confronto, tornando-as parte da discussão e de uma tomada de consciência política”.
“O desafio da diversidade no Martim Moniz”
Esta não é a única crítica que o arquiteto tem a fazer ao processo. A questão da representatividade também não lhe parece ter sido bem resolvida. O Martim Moniz é, afinal, de diversas culturas. “Tudo ali é impressionante: a questão multicultural, os jogadores de críquete, a dança das mulheres chinesas”, diz Mota Saraiva.
A comunidade estrangeira não teve grande peso no processo – a população portuguesa representa 80% dos inquiridos online e 71% dos participantes nos focus groups (percentagem tirada de uma amostra de 17 participantes). Apenas uma pessoa do Nepal, uma do Paquistão e uma do Bangladesh participaram nos inquéritos.

Roberto Falanga considera que “é difícil comparar a taxa de participação desses grupos com outros processos participativos”. E defende que se prestou atenção àqueles que geralmente não participam traçando o perfil dos participantes e percebendo quem geralmente fica excluído.
O site lisboaparticipa disponibilizou informações e o inquérito em várias línguas e a equipa da autarquia bateu às portas de todas as lojas, de todos os hotéis e supermercados das imediações para convidar a população a participar.
O investigador sabe que não basta convidar. “Há que encontrar a linguagem certa para abordar determinadas comunidades”, especifica. E por isso é também fundamental ter um olhar atento e falar de uma “inclusão social” que diferencia as pessoas e que promove a integração das suas culturas. “Não podemos romantizar uma questão social, isto precisa de ser pensado e refletido sinceramente”, defende.

Para Tiago Mota Saraiva, a inclusão de alguns grupos passa mesmo por “partir pedra com as associações” e coletividades já existentes. Neste processo houve envolvimento de associações internacionais, do Centro Islâmico do Bangladesh e de um representante de uma empresa de investimento da comunidade chinesa.
Mas o que mais preocupa Roberto Falanga são os jovens. “Os jovens estão mais afastados destes projetos que são mais institucionais”, aponta. E nota-se: os inquiridos menores de 18 anos representam apenas 0,4% e nos focus groups são 6% (da mesma amostra de 17 participantes).


Essa é a maior problemática, diz o investigador, e mais uma questão a resolver. “O futuro dos processos participativos passa por esse desafio: o desafio da diversidade”.
Para o arquiteto, o “desafio da diversidade” passa por estabelecer pontes entre associações e pessoas, contrariando o “modelo neoliberal, de individualização de opinião” que seguiu este processo participativo, e acusa ainda a Câmara de não ter recorrido ao trabalho que já fora desenvolvido por algumas iniciativas e associações criadas no Martim Moniz.
“Um processo sem raízes”
O próprio movimento Um Jardim para o Martim Moniz não foi imediatamente contactado pela CML para se envolver. “Chamámos a atenção para o facto de não nos terem envolvido logo, houve uma grande demora”, diz Susana. Mas a representante acredita que o resultado será satisfatório, se se salvaguardarem as principais questões apresentadas pelo movimento, como a inclusão de árvores no espaço.
Agora que é tempo de aguardar atualizações, as expectativas são diferentes para todos. Susana Simplício e Roberto Falanga mantêm a esperança de poderem continuar a contribuir para o processo. Tiago Mota Saraiva, enquanto participante, descarta essa possibilidade. “Apresentadas as propostas, o poder de decisão recai automaticamente nas mãos dos autarcas e esquece-se aquele que foi o trabalho coletivo. É um processo sem raízes”, diz o arquiteto.

Mas Roberto Falanga tem confiança no futuro, e defende que o acesso aberto aos dados recolhidos constitui “uma garantia credível de transparência do processo e de abertura de um canal entre munícipes e a Câmara”. Também Susana Simplício acredita que, mesmo com as suas fragilidades, este foi um bom começo. “Houve um processo, demonstrou-se disponibilidade. É preciso começar por algum lado para depois se melhorar”.
“Os processos burocráticos são tão pesados, que às vezes as pessoas acabam por perder o interesse”, afirma Susana Simplício. E é por isso que discutir o Martim Moniz continua a ser fundamental. Tiago Mota Saraiva gosta de imaginar a praça transformada “num espaço de uma grande assembleia, onde toda a gente se cruza”. A grande Ágora.
Um ano depois, qual será o seu futuro? Será que veremos finalmente o jardim pelo qual muitos já lutaram?

Ana da Cunha
Nasceu no Porto, há 26 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.
✉ ana.cunha@amensagem.pt
Bom artigo, mas convém fazer uma correcção: o mítico Martim Moniz terá rompido a cerca mourisca. A muralha fernandina só foi construída mais de 200 anos mais tarde, por ordem do rei D. Fernando.
Tem toda a razão! Está corrigido, muito obrigada!