Há uns dias, um amigo disse-me que para se sentir de férias tinha de estar a mais de duas horas de casa. Caso contrário, partiria sempre com a possibilidade de regressar para ir buscar alguma coisa importante de que se esquecesse ou de interromper o lazer com uma reunião urgente “já ali”.
Ontem, à sombra de uma árvore em Belém, na “Cidade da Alegria” da JMJ, conversei com uma peregrina lisboeta que me contou como vários peregrinos locais, com experiência em edições anteriores da Jornada Mundial da Juventude, lhe contaram não estar a sentir o verdadeiro espírito da jornada. Concluímos o paradoxo: “peregrinos locais”. São locais. Não são peregrinos.
Talvez fosse por falta desta conjugação do verbo “ir” que eu me sentia alheado desta JMJ. Faltava-me o sentimento de partida e a vivência de uma peregrinação em grupo, experiência que tive nas edições de Madrid (2011) e Cracóvia (2016). Sentia falta de fazer uma mochila para levar às costas, levando tudo mas sem me preocupar com nada.

Por isso, hoje dei corda aos sapatos e peregrinei para tentar sentir-me peregrino. Nem vou tentar ir à procura das palavras para descrever a sensação de me juntar a esta multidão. As imagens são impressionantes – ao vivo ainda mais. Só não se impressiona quem não vê. Mas também só vê quem quer ver, só está quem quer estar.
Essa é uma das riquezas deste acontecimento: que bom que é vivermos num tempo e num espaço em que podemos sair à rua com as bandeiras que queremos; e onde ninguém é forçado a ser porta-estandarte de nada.
Sábado, 5 de Agosto de 2023, caminhei dois ou três quilómetros entre bandeiras. Os termómetros marcavam 36ºC. Havia calor humano e atmosférico. Cheguei à beira do Tejo e do Trancão. Cheguei ao Campo da Graça da Jornada Mundial da Juventude.

No caminho, vinha a pensar como a JMJ é daquelas coisas em que só se acredita vendo; em que só se compreende estando. O silêncio de milhares de pessoas em redor do Marquês de Pombal só se ouve estando lá. Só se perde de vista o mar de gente em peregrinação navegando pelo meio. Talvez por tudo isto e por não sabermos bem do que se tratava é que foi tão difícil encararmos a dimensão deste evento e a proporcionalidade de todo o tipo de meios necessários e afectos a esta organização.
Já sabemos que Portugal tem tradição de acolher grandes eventos mas, verdade seja dita, nunca se viu Lisboa assim. Bem, o Marquês de Pombal atolado de pessoas já todos vimos. Aqui nota-se é a ausência da polícia de intervenção. Não há gás lacrimogéneo. Não há garrafas pelo ar. Reúne-se muita gente mas, no final, a coisa não dá para o torto. De resto, um dos objectivos de tanta oração é pôr a juventude em diálogo para encontrar caminhos para que isto (vulgo planeta Terra) não dê mesmo para o torto.

Para muitos, a JMJ continua a ser uma mera ocasião de esbanjamento em ajustes directos para que uma multidão de fanáticos (que acorrem para ver de perto o Papa) possam com ele rezar um Pai Nosso e uma Avé Maria. Esta peregrinação é mais do que isso. Mas eu próprio não sei o que é.
Se, por um lado, o silêncio une esta gente toda na mesma oração, a diversidade da imensidão faz com que ninguém consiga relatar o que é que se passa aqui. Mas que Lisboa está diferente, está. Acordou esta semana vestida com as cores do mundo inteiro. Os peregrinos levantam com ânimo as bandeiras dos países de onde vêm, mas sem se fecharem nas suas fronteiras. Abrem-nas ao mundo, para que estejamos todos.
O próprio Papa Francisco convocou o mundo inteiro. Na cerimónia de acolhimento (“Colina do Encontro”, Parque Eduardo VII, 03/08/2023), deixou claro: “Na Igreja há espaço para todos e, quando não houver, por favor façamos com que haja. Todos, todos.”. Foi isto que fez Lisboa, que fizeram os Lisboetas. Arranjaram espaço para todos. E, sejamos francos, pelo menos na óptica do espectador, está tudo impecável.
Nunca se viu Lisboa assim – e há mesmo quem diga que nunca se verá outra vez. É preciso olhar de fora, olhar para o todo e para todas as variáveis. As contas serão feitas no final, mas já me intriga saber quantos postos de trabalho foram criados para tantos trabalhadores independentes, sobretudo do sector audiovisual.
Quantas salas de espectáculo estariam encerradas por estes dias e abriram para a vasta programação cultural do Festival da Juventude. Intriga-me saber quantos gelados a mais vendeu o senhor da roulote. E quantos a menos vendeu o outro senhor, o da loja que viu a sua rua cortada. Quantos barris de cerveja esgotou o vendedor do quiosque. Quantos “menus peregrino” serviu aquele restaurante da esquina. Quantas moedas foram gastas à custa desta jornada. Quantos eventos receberá o novo parque junto ao Tejo. Quantos metros quadrados de relva foram desgastados na Colina do Encontro. Quantos espaços foram renovados e terão novas vidas. Quantas garrafas de plástico ficaram nas ruas e que quantidade de lixo extraordinário se produziu à custa de milhares de menus peregrinos recheados de embalagens descartáveis.

Intriga-me saber quanto é que interessa aos lisboetas que Lisboa continue no “centro do mundo”. Se há mesmo espaço para todos aqui. Se há mesmo espaço para a liberdade de todas as expressões. Intriga-me saber o que será das periferias que apareceram esta semana nas televisões. O que será dessa “juventude do Papa”.
Tudo isto me intriga, hoje, em Lisboa 2023. Intriga-me saber quanto disto é fogo de vista, quanto disto é fogo-fátuo e quanto disto é fogo que vai continuar a arder sem se ver.
Tenho partilhado as minhas intrigas com algumas pessoas. Uma delas foi uma peregrina que teve um contacto muito próximo com o Papa e que me escreveu assim: «Louvado seja Deus por tanto bem que está a trazer ao nosso país e à nossa cidade! Temos de rezar muito pelos frutos destas Jornadas e testemunhar com a mesma alegria o espírito de paz e bem que temos andado a viver aos conterrâneos que fugiram da “confusão”!».
Depois de terminado este tão bendito quanto maldito evento, que tanto nos uniu quanto nos separou. Depois de amanhã, façamos então as contas aos frutos. Mas sejamos objetivos e rigorosos na análise. A Ciência dá-se bem com a Fé, mas importa distinguir. E em ambos os lados há “fezadas”. Com essas, para as quais não há métodos nem orações, é que é preciso ter cautela.
*Nasceu em 1994, é contador de histórias reais e produtor. Estudou Engenharia e Gestão Industrial no Instituto Superior Técnico e teve formação em várias vertentes da Comunicação, incluindo Comunicação de Ciência. Está nas JMJ e enviou este texto para a Mensagem que foi editado por Catarina Carvalho.
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