Na Praça de Espanha, as árvores já lá estavam, mas “nunca ninguém esteve à [sua] sombra”. O Arco de São Bento será, talvez, o estranho ícone de uma praça que não era praça. Rodeada de carros e largas estradas, era ilha. Inacessível aos lisboetas, que não a podiam atravessar. Tudo muda neste 13 de junho, um estranho dia de Santo António em Lisboa.

A praça tornou-se jardim – num daqueles passes de urbanismo que mudam tudo. Passa volta a ser possível atravessar o Arco de São Bento, por baixo. Ou apanhar sol na relva que o rodeia. Esta obra do século XVIII foi erigida junto ao Palácio de São Bento e desmontada em 1938. As peças que a compunham ficaram pelo chão da Praça de Espanha até 1998, altura em que foi reconstruído. Hoje, volta a ser acessível. Um dos percursos pedonais da nova Praça de Espanha passa exatamente por baixo do arco.

O parque estende-se à Rua Eduardo Malta, onde antes estacionavam automóveis. Aqui também há relvado e junto ao Hotel Açores está um dos novos parques infantis. E a nova Praça de Espanha ganhará o justo nome de Parque Gonçalo Ribeiro Telles – o arquiteto paisagista do verde de Lisboa, que morreu em 2020 e foi responsável pelo vizinho Jardim Gulbenkian e pelo Corredor Verde de Monsanto, que também passa por aqui.

“Esta é a peça que faltava do corredor verde de Monsanto, porque no fundo é o cruzamento da coisa, o cruzamento dos corredores verdes”, diz José Sá Fernandes, o vereador da autarquia lisboeta com a pasta da estrutura verde. Está orgulhoso porque, apesar de já ter anunciado sair, foi no decorrer dos 14 anos em que esteve na Câmara Municipal de Lisboa que foi inaugurado o corredor verde que liga Monsanto ao centro da cidade.

A Praça de Espanha em 2018. Fonte: Google Earth

“Uma praça onde não se conseguia chegar”

Enquanto se caminhava pelo interior deste novo jardim da cidade, uns dias antes da inauguração oficial, as máquinas ainda mexiam. Retroescavadoras movimentavam terras e ainda se viam os recortes dos pequenos tapetes verdes que formariam o amplo relvado junto ao Arco de São Bento. As flores ainda estavam em centenas de vasos, organizadas e prontas a serem criteriosamente dispostas pelo espaço verde. Montes de terra por remover antes da abertura ao público. Assim tem sido ao longo dos últimos meses, entre as sete da manhã e as dez da noite.

Neste domingo, o parque está aberto e os montes terão já desaparecido.

“Isto era uma praça onde não se conseguia chegar. Isso é uma coisa mágica. Uma coisa que existia [e] onde ninguém ia”

José Sá Fernandes, vereador da Câmara Municipal de Lisboa
Apesar de aberto aos lisboetas, as obras no parque prosseguem ao longo dos próximos meses. Foto: Rita Ansone

Os arranjos viários foram concluídos em 2020, mas as obras no jardim sofreram vários atrasos, depois de a inauguração ter estado prevista para o ano passado, altura em que Lisboa era Capital Verde Europeia. A pandemia, as condições atmosféricas e o abatimento no teto do túnel do metro contribuíram para os atrasos e a inauguração deste domingo não significa ainda o fim dos trabalhos. Significa que está aberto a passeios.

A instalação da ponte pedonal que fará a ligação entre o novo Parque Gonçalo Ribeiro Telles e a Fundação Calouste Gulbenkian, por exemplo, só terá início “em julho ou agosto” e deverá estender-se por 10 meses. Por terminar estão também as obras na pala que abriga a nova saída do metropolitano, em pleno jardim, e na estrutura que servirá de cafetaria.

Por agora, alguns dos trabalhos continuarão, cobertos por tapumes. No caso da obra da pala do metro, os obras prosseguem encapsuladas por painéis dedicados a Gonçalo Ribeiro Telles. À exceção da ponte, “fica tudo praticamente concluído” até outubro, no final do presente mandato, assegura José Sá Fernandes.

A relação do novo parque com o Jardim Gulbenkian é indesmentível. Além da futura ponte, há quatro esculturas oferecidas pela Fundação Calouste Gulbenkian. Uma delas, destapada antes da abertura, terá jogos de água.

Do campo, às estradas, ao jardim

A Praça de Espanha já foi fronteira entre a cidade e o campo, em Lisboa. Ali, pastavam ovelhas. Recebeu um hipódromo e um velódromo no início do século XX – era ali que se batiam recordes de ciclismo na cidade.

Antes de ser a Praça de Espanha, a zona era conhecida como Palhavã. A estação de metro, inaugurada em 1959, tinha esse nome, às custas do Palácio de Palhavã, que hoje é a embaixada de Espanha e edifício referência da zona.

O Antes e o Depois (arrastar)
À esquerda, o Palácio Palhavã, em 1967 (Foto: Artur Inácio Bastos, Arquivo Municipal de Lisboa). À direita, o Palácio Palhavã em 2021 (Foto: Rita Ansone).

Antes da chegada do velódromo, por ali se alojou o Jardim Zoológico de Lisboa, em 1894 e durante nove anos apenas. Onde hoje está a Fundação Calouste Gulbenkian esteve também a Feira Popular de Lisboa, entre 1943 e 1957. Nos anos 60 do século passado, por ali passavam elétricos, em canal dedicado, rumo a Benfica.

A história mais recente conta ainda com o Mercado Azul, que, entre 1984 e 2015 acolheu vendedores ambulantes que tinham sido deslocados da praça do Martim Moniz, mas fala, sobretudo, de expansão urbana e de estradas.

Em 1973, um canal dedicado à circulação de elétricos, a passar junto ao Palácio Palhavã. Foto: Francisco Leite Pinto, Arquivo Municipal de Lisboa

O início do século XX fez da Praça de Espanha um cruzamento de algumas das principais artérias de chegada e saída da cidade. A construção recente deste lugar da cidade relegou-o ao domínio automóvel. Ali, cruzam-se largas vias: Avenida de Berna, a Avenida António Augusto Aguiar, a Avenida Columbano Bordalo Pinheiro e a Avenida dos Combatentes. Esta confluência de artérias rodoviárias fez da Praça de Espanha um lugar dominado pelos carros.

O vereador com os pelouros do ambiente, clima e energia, estrutura verde e serviços urbanos lembra que a criação do novo jardim não veio apagar o domínio automóvel na envolvente. O “trânsito extraordinário” que ali se verifica diariamente não desaparece. “Vai continuar a ser um cruzamento desse género, mas, de repente, vai ser um sítio para as pessoas”, diz.

É por isso que o jardim se eleva junto dos seus limites externos, com o objetivo de fazer erguer uma barreira acústica capaz de atenuar o impacto audível do ruído proveniente da circulação rodoviária em redor. “Já fizemos isto em vários sítios”, sublinha José Sá Fernandes, lembrando o exemplo dado pelas obras de requalificação do jardim do Campo Grande.

Ovelhas a pastar, junto à saída do metro, na Praça de Espanha. Foto: Artur João Goulart, 1963 – Arquivo Municipal de Lisboa

“Temos de começar a conquistar espaço ao alcatrão e as pessoas querem isso. Querem sombra, querem bancos para sentar, querem ver os miúdos a correr à vontade”

José Sá Fernandes, vereador da Câmara Municipal de Lisboa

“Conquistámos alcatrão”, diz o vereador. Antes da inauguração do jardim, a placa central da praça era cortada por 11 vias de circulação automóvel, um parque de estacionamento e um terminal rodoviário, hoje maioritariamente transferido para Sete Rios. A intervenção viária colocou um termo a isso. “Isto aqui era alcatrão. Onde está aquela estrutura toda, era a estrada. Era uma coisa medonha e deixou de ser”.

Este é “o futuro das cidades”, afirma. “Temos de começar a conquistar espaço ao alcatrão e as pessoas querem isso. Querem sombra, querem bancos para sentar, querem ver os miúdos a correr à vontade”.

Quando chover, é esperado o aparecimento de um curso de água natural, onde antes passava o Riacho do Rego. A proposta vencedora do concurso internacional para a Praça de Espanha, do atelier NPK, tem o nome “Os caminhos da água”. Foto: Rita Ansone

Um “cruzamento verde”, um curso de água e um novo pólo cultural

A Praça de Espanha deixa de ser apenas um nó rodoviário. Passa a ser, também, “um cruzamento verde”. Aqui confluem várias ciclovias da nova rede ciclável da cidade.

Sempre em ciclovia, é possível seguir para várias “centralidades”. Para a Avenida Duque de Ávila e, em breve, para o Saldanha e Campo Grande, através da ciclovia em construção na Avenida de Berna. Para a Avenida dos Combatentes e para a Avenida Lusíada, até ao Centro Comercial Colombo e, em breve, também para Sete Rios e Benfica, através da ciclovia em construção na Rua Professor Lima Basto, que passa em frente ao Instituto Português de Oncologia (IPO), que tem prevista a construção de uma nova unidade para os limites do jardim.

A nova Praça de Espanha. Foto: Rita Ansone

Para os terrenos em redor do novo parque, na Avenida dos Combatentes, está prevista a construção de dois edifícios com 280 apartamentos, a nova sede do grupo Jerónimo Martins, a construir nos terrenos anteriormente ocupados pelo Mercado Azul. Em baixo, junto à Av. de Berna haverá a construção da nova sede do Montepio Geral.

“Estando aqui posso ir sempre em verde para o Corredor Verde de Monsanto”, explica José Sá Fernandes, revelando que está para breve o arranque da empreitada de construção de mais uma ciclovia, entre a Avenida Calouste Gulbenkian e a estação de Campolide.

O Parque Gonçalo Ribeiro Telles abriu também espaço para um curso de água natural – que ali existia e estava debaixo da terra. Os relvados vão ser regados com água tratada não potável, proveniente da ETAR de Alcântara, mas a água que deverá correr pelo novo jardim provém de uma “linha natural de água”. A solução encontrada para o novo curso de água não recorre a uma artificialização do mesmo, pelo que a presença do elemento líquido não deverá ser uma constante. “Quando chove muito, vai ver aqui água”, explica Sá Fernandes.

A concretização do novo espaço verde vem unir três espaços culturais da cidade: “a Comuna, o Teatro Aberto e a Gulbenkian”

A expectativa é a de que a obra tenham impacto a vários níveis. “As pessoas ainda não perceberam isso”, conta o vereador, mas a nova Praça de Espanha “vai ser um novo pólo cultural”. A concretização do novo espaço verde vem unir três espaços culturais da cidade: “a Comuna, o Teatro Aberto e a Gulbenkian”.

O vereador da Câmara Municipal de Lisboa acredita que a abertura do parque confere uma nova centralidade a estes equipamentos culturais. “De repente, temos aqui uma nova coisa cultural [e] as pessoas ainda não perceberam a categoria que vai ser isto com o parque no meio”.

Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

frederico.raposo@amensagem.pt

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4 Comentários

  1. Hub?… Não há tradução para “hub”? E não é grafado em itálico nem aspas leva?… Já vale tudo?… Linguisticamente falando, vivemos numa verdadeira “República das Bananas” em que cada um diz o que quer e escreve como entender… Já não falta muito para termos de usar um dicionário de bolso de inglês para, que na nossa própria terra, melhor nos possamos entender…

  2. Gostei imenso de ler o seu texto. É um sítio a desfrutar. A Praça de Espanha ficou ou irá ficar um luxo. Agora a rua do Instituto de Oncologia onde tenho passado ultimamente algumas vezes está impossível de transitar e as entradas e saídas do Instituto é um horror.
    Já estive a consultar o Google para a tradução da palavra “hub” e não encontrei nada que se adeque. Talvez carregamento de vehículos eléctricos??😮

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