Lembra-se do Grémio Lisbonense? Em 2008, quando fechou, era a mais antiga coletividade do país. E o Sport Clube Intendente, que em breve se poderá tornar um clube privado de luxo da rede Soho House? Não muito longe, o Clube Recreativo dos Anjos, mas também Seara, Okupa de São Lázaro, Amigos do Minho e Banco. Todas estas associações têm em comum terem nascido com a missão de dar uma outra vida a Lisboa, mas acabaram eles próprios por a perder e fechar portas.

Nesta quarta-feira, 20 de dezembro, percorrem-se as ruas de Lisboa numa visita guiada que vai passar por estas e outras antigas coletividades, associações ou clubes recreativos que, nos últimos anos, se viram obrigados a deixar os seus espaços.

Muitos destes espaços ainda se encontram vazios. Por isso, o lema desta tour é mesmo “Despejados para Nada”.

A iniciativa — que arranca pelas 19 horas, na Sé de Lisboa — foi organizada pelo projeto cultural e político Sirigaita, com sede na Rua dos Anjos, no Intendente. Um espaço que acolhe diversos coletivos e que também ele enfrenta um futuro incerto – em fevereiro, o contrato que mantêm com o senhorio termina.

Por agora, resistem. Por eles e por outros.

A Sirigaita existe desde 2018. Foto: Líbia Florentino

“Queremos dizer que aqui houve vida e isso foi possível, não é assim tão difícil nem absurdo”, diz ainda Catarina Carvalho, do coletivo. “Estas pessoas, estas forças, este imaginário, estão aqui. Não desapareceu, não pode ter desaparecido, porque foi mesmo ontem. Há uma energia latente e essa cidade pode voltar a existir.”

O percurso desta quarta-feira vai incidir na cidade que gostariam de ter, com todos estes “espaços vivos”. E convém relembrar que não se trata de nenhuma utopia, pois era a realidade de há poucos anos.

Na visita guiada, que terá um interveniente de cada um dos espaços a contar a respetiva história, a Sirigaita vai afixar os cartazes da exposição que promoveu, para a qual desafiou vários artistas a ilustrar o fim das diversas coletividades. Os posters vão ficar instalados junto do respetivo local.

Os espaços de resistência estão vivos, mas sem teto

“Se hoje em dia perdes um contrato de arrendamento, é para sempre, aquilo nunca mais volta a ser um espaço coletivo ou sem fins comerciais. Perde-se para sempre. Vai, forçosamente, ser um hotel ou um Airbnb”, diz Catarina Carvalho, da Sirigaita.

A sensação de angústia e injustiça social é reforçada quando percebem que, anos depois dos despejos e dos encerramentos de várias coletividades e associações, os espaços permanecem vazios.

“Este mote do ‘despejados para nada’ vem daí”, acrescenta Catarina. “Esta urgência de sairmos, esta violência, esta transformação gigante forçada, para quê? É isto que queremos? E, se não queremos, então ainda estamos a tempo de fazer alguma coisa sobre isso.”

Antonio Gori, também do coletivo, defende que tem de se apontar o dedo ao “sistema”, que se diz “muito racional”, mas que depois “despeja para nada”. “Têm muita pressa que saias, mas depois o prédio fica vazio durante oito anos. Porquê? Não sabemos de todos, mas em muitos casos são vendidos sucessivamente para aumentar os lucros. Com isto, tiram-nos o património.”

E Catarina Carvalho fala numa “demissão” das responsabilidades políticas. “Parece que as cidades não estão a ser planeadas pelas câmaras municipais, que dizem que não podem fazer nada… Então as cidades estão a ser governadas por quem?”

Catarina Carvalho e Antonio Gori, da Sirigaita. Foto: Líbia Florentino

A ação da Sirigaita é também ela um exercício de retribuição. “É reivindicar este património que ainda existe. E quem nos inspirou e motivou a realizar a Sirigaita”, explica António. “Isto é importante também para o futuro. Não somos só militantes da Sirigaita em si, somos militantes destas formas de vida que se opõem ao contexto desta total irracionalidade necrófila ligada à especulação.”

Têm estabelecido o diálogo com outras associações e coletividades que têm sofrido a mesma pressão — como o caso do Arroz Estúdios e a Sociedade Musical Ordem e Progresso (SMOP), que também terão de cessar a sua atividade; bem como a Zona Franca, que recebeu recentemente uma carta de não renovação do contrato.

Em abril, formaram mesmo o bloco Coletividades em Luta, que tem estado presente em diversas manifestações. A Sirigaita planeia continuar a exercer pressão política junto dos responsáveis locais, mesmo que não acreditem que a solução venha daí, e irão fazer outras ações de rua nos próximos tempos, que só se deverão intensificar até fevereiro, como um dia específico em que planeiam fazer uma “ocupação de rua e do espaço público”, para “simbolizar a mudança no bairro”.

“Como é que se pode fazer guerra a estes espaços, quando depois há tantas preocupações de que os jovens não querem saber de política nem se querem ativar nem fazer nada? Há todos estes preconceitos, mas não é verdade. Nós temos um grupo enorme de pessoas que quer, a troco de nada, fazer isto acontecer. Querem experimentar artisticamente ou politicamente, ler em conjunto, ativarem-se em coletivo, fazer um espaço funcionar… Temos aqui uma demonstração viva de que as pessoas se interessam e querem fazer alguma coisa”, remata Catarina Carvalho.

Catarina acredita que a solução está muito dependente das políticas públicas e questiona: “quem governa a cidade?”. Foto: Líbia Florentino

A Caixa de Resistência

A porta de entrada para o espaço do Sirigaita mais parece um arquivo de resistência, com cartazes de manifestações e mensagens de protesto pelo direito à cidade. “Não se despeja um desejo“, lê-se. Aqui, tem-se promovido uma campanha anti-despejo na qual a ação desta quarta-feira também se insere.

E a mensagem é geral, mesmo que também se reveja neste espaço que em breve poderá deixar de o ser. “Nós não queremos ser os próximos, não queremos estar nesta parede de lugares que já não existem”, explica Catarina Carvalho, da Sirigaita.

A Sirigaita existe desde 2018, ocupando o espaço que antes era conhecido como Mob e que já agrupava uma série de coletivos políticos e artísticos. Os associados não sabem o que é que o proprietário do edifício deseja fazer com o espaço, embora afirmem que se tratará de alguém que detém uma empresa para gerir o seu património imobiliário e que terá mais de 150 propriedades na cidade.

Temem ainda que a “pressão” também se possa abater sobre os que residem no prédio.

“A certa altura, fomos bater às portas das pessoas e, pelo que percebemos, os contratos têm estado a mudar para serem de cada vez de menor duração. E até há outras empresas que alugam quartos, e têm contratos certamente fictícios de um mês, com uma população sobretudo migrante, muitos dos quais nem falam português – portanto, é uma população muito fácil de despejar”, acredita Catarina Carvalho.

O espaço da Sirigaita, na Rua dos Anjos. Foto: Líbia Florentino

Antonio Gori aponta que não tem sido fácil dialogar com o senhorio. “Procurámos várias vezes uma negociação, em momentos de conflitualidade devido à pandemia [quando tinham de ter o espaço fechado e não conseguiam ter receitas para pagar a renda], e ele enviou-nos a carta de não renovação, não queria saber nem falar connosco. Agora, talvez se abra uma nova negociação, já não temos a dívida gerada durante a pandemia, pagámos tudo. Ainda vamos tentar, uma última vez, falar com ele. Mas não há nada de concreto.”

Afirmam que vão resistir até ao “limite”. “O que decidimos fazer é ficar aqui até ao máximo”, explica Catarina Carvalho. “Uma não renovação de contrato não é uma ação de despejo. Então, vamos ficar aqui até ao limite desse processo. Prevemos que o senhorio eventualmente nos ponha em tribunal, e para isso estamos a construir uma caixa de resistência que começámos em outubro.”

A “caixa de resistência” acaba por ser uma angariação de fundos que contribui para as soluções que forem definidas pelos associados da Sirigaita ao longo do processo. O projeto não tem uma liderança, a sua estrutura é horizontal e funciona numa lógica de auto-gestão, sem qualquer financiamento externo.

A “caixa de resistência” é um fundo para as ações defendidas pela Sirigaita. Foto: Líbia Florentino

“Mas, realisticamente, também temos de procurar outros espaços”, admite Catarina Carvalho. “Só que não queremos mudar a nossa essência e a renda que pagas diz-te muito sobre o que podes ou não fazer. Como é que podes ter um espaço que despreza o lucro se tens de pagar dois mil euros de renda ou o que for, que é o que se pratica hoje em dia? Não queremos avançar para qualquer coisa, não podemos pôr em risco a génese do projeto.”

Direito ao centro?

Sabem que será muito difícil encontrar um local com uma renda acessível na freguesia de Arroios, mas não acreditam que faça sentido mudarem-se para uma zona mais afastada do centro. A rede de transportes é essencial num projeto que junta diversos coletivos com pessoas de toda a área metropolitana, e a Sirigaita mantém uma relação íntima com o bairro onde está, onde moram muitos dos seus membros.

“Há coisas que tomaram forma por estarmos aqui, como, por exemplo, as Manas. É um grupo de mulheres da zona do Intendente, precisavam de um espaço para reunir e a Sirigaita tornou-se o espaço óbvio. E cresceram imenso. Por estarem aqui e haver também aqui a Livraria das Insurgentes, desenvolveram um projeto com eles que ainda continua. Entretanto, estão a fazer uma peça de teatro. Enfim, são coisas que se proporcionam porque existe este ponto de encontro que trabalha com as pessoas daqui”, explica Catarina Carvalho.

Foto: Líbia Florentino

Contam que, nos contactos que tiveram com a junta de freguesia e a Câmara Municipal de Lisboa, não se depararam com quaisquer soluções. A junta assegura estar de “mãos e pés atados”, sem qualquer hipótese de prestar algum tipo de apoio.

“A Câmara Municipal aconselhou-nos a procurar espaços nas periferias, onde as pessoas moram. Sendo que estamos na freguesia com a maior densidade populacional… Não sei se aquela pessoa conhece muito bem a cidade onde trabalha. E também não havia nenhuma solução para nós. Era do género: safem-se.”

Num país com 700 mil devolutos (dados do INE) e numa Lisboa com 48 mil casas vazias (números dos últimos Censos), Antonio Gori defende que as políticas públicas estão a favor da “especulação imobiliária” que afasta os residentes e as associações do centro. “Manter os devolutos é uma maneira de aumentar o preço dos imóveis e é uma grande irresponsabilidade para a habitação e para as atividades das pessoas… Do meu ponto de vista, é quase criminal.”

Além disso, diz que é urgente mudar o discurso sobre o centro de Lisboa, que só tem contribuído para “facilitar e piorar a situação”, levando mesmo a uma desvalorização ou desumanização de quem lá mora. “Há 10 anos dizia-se que Alfama não tinha moradores — e houve de facto uma crise de moradores — mas continuavam a existir milhares de pessoas a viver lá, cujas vidas, para o pensamento comum… Já não mora lá ninguém. Agora, em Arroios são só migrantes, então já não mora ninguém. É um discurso que entrega tudo a uma lógica de mercado. E agora é o tempo desta zona, que está completamente diferente do que era há uns anos.”

Naquele troço da Rua dos Anjos, no lado este da Avenida Almirante Reis, a Sirigaita já é o espaço mais antigo — embora tenha apenas cinco anos. “Agora temos uma imobiliária de luxo aqui ao lado, o café que era do mesmo senhorio fechou porque a renda duplicou, os bares fecharam e começaram a abrir os hotéis.”

No emblemático Largo do Intendente, mesmo ali ao lado, as notícias seguem na mesma linha. A Casa Independente, espaço cultural e bar que muito contribuiu para dinamizar (e revitalizar) aquela zona da cidade, anunciou este ano que irá encerrar até ao final de 2025 ou início de 2026, uma vez que o contrato de arrendamento não foi renovado. O café O das Joanas fechou portas este ano e a cooperativa Largo Residências — café e estúdio com atividade artística e social — também já teve de abandonar o Largo do Intendente.


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Nasceu em Lisboa e sempre viveu nos arredores da capital, periferias que lhe interessam particularmente. Conta histórias em modo freelance, sobretudo ligadas à área da cultura.

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