Marta Silva é professora de dança e diretora artística e gestora cultural na cooperativa de intervenção territorial Largo Residências. Conhece o Intendente, em Arroios, há muito, desde que era vista como uma não-zona, um lugar por onde grande parte dos lisboetas evitava passar.

Mas era por ali, pelo largo e pelas ruas em volta, que escolhia passar nos seus percursos.

Também fundadora da associação cultural SOU, Marta é do Porto, mas há 20 anos que tem os pés em Lisboa. Acompanhou o processo de regeneração cultural e comunitária do Intendente e testemunhou, de perto, anos de um dinamismo que surpreendeu ao resistir, enquanto pôde, à ferocidade dos mercados imobiliários – mas que hoje cede, por fim, a mais um processo de gentrificação.

Largo do Intendente. Ao fundo, o edifício que durante dez anos a Largo Residências desenvolveu a sua atividade. No piso térreo, funcionava um café, com uma esplanada aberta a toda a comunidade e não apenas a quem consumia. Nos pisos de cima, funcionavam ateliês, escritórios e residências. Foto: Rita Ansone

Viu o largo ganhar vida e foi uma das caras dessa reconquista, para, depois, ser vítima, à semelhança de muitos moradores, comércios e novas e velhas coletividades da zona, da especulação imobiliária que hoje está a esvaziar o largo da sua recém conquistada vida.

Ainda antes da mudança para o Quartel de Santa Bárbara, no Largo do Cabeço de Bola, Marta Silva era clara em relação àquilo que queria que fosse a permanência temporária da cooperativa e de mais de 150 pessoas de mais de uma dezena de coletivos e entidades naquele espaço: “que ele seja um portão aberto, seja um bairro, não é não seja um condomínio de artistas que isso não tem piada nenhuma”.

E foi exatamente isso que foi.

A entrevista que se segue aconteceu em maio de 2022, antes ainda da instalação plena da cooperativa no Largo do Cabeço de Bola (de onde agora sai, tal como previsto) e relata a última década de transformação do Intendente.
Quando esta entrevista se fez, ainda não se sabia quando ia encerrar o café O das Joanas e também não se sabia que a Casa Independente ia ter de fechar portas.


Antes ainda de a Largo Residências se instalar no Intendente, era por estas ruas que passavas. Como era a zona do Intendente antes da instalação, ali, do gabinete do então presidente da Câmara, António Costa, em 2011, e antes da requalificação do espaço público?

Tínhamos plena noção de que estávamos numa freguesia que tinha ali um zipper, um fecho, que dividia a freguesia em dois mundos – a Rua Maria Andrade, por onde passava elétrico, de onde grande parte dos nossos alunos era, do Bairro das Colónias, Bairro Inglês e, depois, o Intendente, [que] era uma espécie de zona-não zona, um não lugar, por causa das questões todas do símbolo da simbologia negativa que tinha.

Havia muito esta divisão num bairro que já começava a ser habitado por muita malta jovem, que não era o tal bairro envelhecido que se descrevia antes da reforma administrativa, como bairro envelhecido, já não. E eu via, pelas fichas de inscrição dos alunos, as profissões, as origens, as idades – era mesmo já um bairro muito central e barato, extraordinariamente barato, com casas muito porreiras em termos de arquitetura.

Estava mesmo muita gente a mudar-se e até a nível de famílias e de pessoas a estudar e a trabalhar, juntando e adicionando a um bairro que tinha uma população idosa e tinha uma população migrante já muito grande desde há 60 anos.

Sentias já uma dinâmica demográfica.

Havia uma dinâmica bastante grande. Só que, da rua do elétrico para aqui, havia um bocadinho este fosso – este não-lugar que era o Intendente, com esta conotação tão negativa da zona.

Eu ainda nem era de Lisboa – sou do Porto e estou cá há quase 20 anos – e lembro-me de ser miúda e de quando era bailarina e começara a fazer uns workshops de dança em Lisboa.

O meu pai dizia: ‘Não saias no metro do Intendente, ouvi dizer que aquilo é muito perigoso’. Esta fama de um nome e de uma zona, isto era um não-lugar, era um lugar psicologicamente maior do que um lugar físico.

Mas o Intendente é um largo.

Intendente é o nome de um largo, que por acaso tem uma  paragem de metro. Então, isto ganhou o nome de zona, mas não é muito diferente de um Jardim Constantino ou de um Campo Mártires da Pátria em termos de grandeza.

A sua conotação inicialmente negativa tornou isto quase como uma metade de uma freguesia numa zona maior do que aquela que propriamente era, por causa das todas as questões sociais que estavam relacionadas.

Este território atraiu-te.

Desde muito jovem, desde os 16 ou 17 anos, que trabalhei no Porto na relação com as artes e a inclusão social. Primeiro em contextos educativos, de bairros sociais do Porto. É um território em relação ao qual tenho muita afinidade. É como costumo dizer: Eu gosto é do Bronx.

E, portanto, sempre tive este hábito, ao contrário da grande maioria das pessoas que não nasceram cá, que vão pela avenida para não passar por aqui, eu sempre gostei muito mais de andar pelas artérias e pelas zonas que supostamente parecem perigosas. Eu passava por aqui e passava por estas ruelas.

Banco na estreita Rua do Benformoso, que se inicia na praça do Martim Moniz e desemboca no Largo do Intendente. Foto: Rita Ansone

Passava pela Rua Maria, que liga ao Intendente aqui abaixo. É uma rua bastante grande e insegurança nunca senti, propriamente. Era só um lugar que não era aos olhos externos tão bonito no sentido clean. Porque havia consumidores na rua, porque havia trabalhadoras do sexo a gritarem umas com as outras porque as suas famílias estavam a ser ameaçadas – a prostituição ligada ao tráfico de mulheres.

Havia aqui uma dinâmica pesada, mas nunca senti propriamente perigo, que é aquela imagem mental que às vezes tens, [a ideia de] que vais para essa zona e acontece tudo. Não é bem assim.

E eu tenho este gosto pessoal e sempre sempre passei nestes lugares. Desde os 16 anos que faço isso e também como tenho esta área da dança e do corpo, faz parte da minha forma de viver, tentar comunicar com as pessoas sem falar e tentar dizer bom dia e mostrar que também sou daqui – só para dizer bom dia e começar a estabelecer estas relações de confiança.

Este lugar é extraordinário e qualquer outra zona de outra qualquer capital… Quer dizer, um largo no centro da cidade que é uma espécie de sala de estar, porque está protegido do trânsito da Avenida. É brilhante em termos de possibilidades urbanas, de encontro.

Dava para perceber o quanto era pena que isto não tivesse realmente outra dinâmica.

Como se dá o nascimento da Largo Residências e como se instala aqui?

O Largo é uma cooperativa que foi fundada por uma associação à qual eu e outras pessoas que estão na fundação do largo já estávamos ligados [e] que na realidade já tem uma história aqui no bairro desde 2004. Já quase há 20 anos. Só que era um movimento, era um grupo de pessoas que no fundo teve a sua sede que está mais está mais na memória das pessoas onde é agora o BUS [associação cultural] – um espaço ali na Rua Maria com a Rua do Forno do Tijolo.

Foi aí que tudo nasceu e quando tudo nasceu. Várias pessoas começam a juntar-se com o interesse comum do desenvolvimento do território que era o seu bairro. Quer porque o viviam, quer porque trabalhavam nele.

Eu própria era professora de dança criativa e dança contemporânea e costumo sempre dizer que a minha primeira forma excelente de conhecer todo este território foi ser professora de grande parte dos adolescentes que eram crianças.

Foram várias centenas de miúdos a que dei aulas nos últimos anos. Só parei há 2 anos e, portanto, mais de 10 anos a dar aulas a crianças que iam crescendo e as crianças são sempre uma forma excelente de entrares em qualquer território, porque conheces os pais, conheces o avô, conheces a tia, o negócio, a loja.

É uma espécie de comunidade educativa em torno das crianças. Cria-se muito rapidamente uma dinâmica comunitária local potenciadora do rápido conhecimento do bairro e das relações humanas que existem entre eles.

Antes do Intendente e do Largo Residências, o conhecimento do tecido social da zona começou na associação cultural SOU.

A dinâmica que o SOU teve no Bairro das Colónias, onde antes da reforma administrativa era o fim da freguesia dos Anjos, foi estruturante para muito do trabalho que depois viemos a fazer, que foi basicamente conhecer as pessoas, o território, os recursos, os interesses comuns.

Fui identificando nos pais dos alunos uma coisa em comum que era um interesse pelo bem comum do território, e não a típica conversa que tu encontras quando às vezes nas pessoas interessadas numa zona – que é ‘Quero montar o meu negócio’, não é? Há duas formas de entrar no território, que é quereres tirar do teu território um benefício individual ou estares preocupado com o benefício coletivo.

Marta Silva. Atrás, o edifício que a cooperativa reabilitou e em que funcionou durante dez anos. Foto: Rita Ansone

É essa percepção de comunidade e de que havia aqui interesses comuns a vários níveis por causa destas várias profissões que começas a perceber uma massa crítica com uma questão cívica muito forte e com um interesse comum pelo desenvolvimento integrado do território.

E é muito simbólico que, anos mais tarde, fundo a cooperativa já com pais de alunos ou ex-alunos, porque é uma espécie de seleção natural de pessoas que se vão reconhecendo em causas, e não um outro processo mais imediato, sem aquele tempo de maturação.

Como nasce a Largo Residências e como é que chegas ao Intendente?

Instalámo-nos aqui em julho de 2011. O contrato foi feito em 2012, portanto foi até 2022. Fizemos o contrato de arrendamento e reabilitámos nós o primeiro piso e o rés do chão. Só tivemos todas as portas abertas, com o café, que foi a última, no final de 2013.

Deste lado não existia rigorosamente nada, a não ser a loja da Viúva Lamego. Tinha acabado de fechar a coletividade que ali estava, de Figueiró dos Vinhos. [Do outro], estava em funcionamento o Sport Clube Intendente, [um edifício] da Segurança Social, um sindicato em funcionamento. Estava mesmo a ser encerrado o centro de saúde, em cima.

Estávamos a desenhar o projeto para desenvolver aqui e candidatar ao [programa] BIP/ZIP e faço conversa com um empreiteiro que estava ali a fazer as obras de recuperação para o gabinete do António Costa. E aí pergunto-lhe, nem nós sabíamos ainda, ainda não tinha vindo a público a notícia de que o António Costa ia mudar para cá o gabinete. Diz-me que não, que aqui já está ocupado. ‘Acho que o Presidente da Câmara vem para cá’.

Foi assim que ficaste a saber que o gabinete do presidente da câmara vinha para aqui?

Foi. Foi quando estávamos à procura do nosso espaço.

Como se viveu no largo a passagem para ali do gabinete do presidente da Câmara?

Há um dia que o António Costa passa aqui. Teve uma atitude bastante natural. Não entrou aqui com polícia, à força, não entrou aqui com grandes aparatos. A sardinhada de inauguração [do seu gabinete] foi entre vizinhos, sem comunicação social.

Ele próprio vinha de metro, às vezes, passava ali na rua e falava com a malta de uma forma muito natural e criou logo uma muito boa relação com isto e também acho que ele gosta desta zona e de vez em quando lá vem aqui. Não é só ele, é malta do gabinete dele que trabalhou toda cá. Quando eu me cruzo, às vezes, por algum motivo nos Paços do Concelho, [dizem-me que têm] saudades daquilo aqui.

Foi uma experiência de escala de um exercício de Câmara. Parecia a Câmara de uma aldeia, de repente parecia o gabinete do Presidente da Câmara de uma aldeia, era meia dúzia de trabalhadores. Tinha uma escala muito particular.

Do outro lado do largo, também estavam os Amigos do Minho, restaurante e coletividade que ali estava há mais de cinquenta anos e que se viu obrigada a fechar em 2017.

Já conhecia os Amigos do Minho. Frequentava, porque enquanto nortenha que sou, uma das minhas primeiras grandes frustrações quando vim para Lisboa era o almoço de domingo de família. Era ali que eu todos os domingos – ia almoçar com a minha família de cá.

Com a Largo Residências instalada no Intendente, deu-se início a um trabalho que reunia todos os atores locais e que resultou na revitalização do território e na dinâmica que se viveu nos anos que se seguiram.

Houve aqui um trabalho de rede bastante forte com as organizações daqui do eixo Mouraria-Intendente.

Havia uma aceitação e uma comunhão muito grandes. Várias das pessoas que integraram a equipa eram daqui do oldschool do Intendente e os nossos parceiros eram os antigos bairros, eram as coletividades, era um trabalho bem interessante.

Aos poucos, começaram a surgir novos projetos. Veio a Vida Portuguesa, veio a Bike POP, veio a Casa Independente, veio o Mob.

Até 2014 foram anos – que eu costumo dizer – anos áureos. Foram chegando novos projetos, mas havia uma compatibilidade e um diálogo e uma relação bastante grande com o old school do Intendente – os 12 ou 13 comerciantes aqui dos antigos bairros.

Fizemos muita programação conjunta, muitas reuniões sobre isto e sobre aquilo.

E ainda assim, ainda havia um estigma de que isto não era uma zona ainda para se investir muito. Era um paraíso. Basicamente estávamos a fazer aqui quase que uma trip coletiva. Era um ambiente de um extremo bairrismo.

Café O das Joanas, para Marta Silva um dos lugares de encontro mais bairristas do largo. No final de maio, foi obrigado a encerrar, com o mesmo destino de várias outras coletividades e lojas do Intendente – um contrato de arrendamento que não foi renovado. Foto: Rita Ansone

Mas já começava a ser um ponto de encontro para as pessoas, a tal “sala de estar”.

Sim. Começou a ficar um bocadinho mais na moda. De 2014 a 2016, vejo aqui outro ciclo temporal.

Isto cresce, começa já a ser muito falado – ‘Zona fantástica, mais hipster’, mas onde ainda não estava a loucura da crise imobiliária e onde havia um equilíbrio grande entre os novos negócios e os antigos. E, portanto, ainda não havia este crash, esta antítese, este aniquilar para sobrepor.

Nem a malta que consumia aqui pedia sequer aqui – porque não havia negócio para isso. Logo imediatamente a seguir a abrirem as esplanadas, começou a vir mais o turismo puro e duro e imediatamente isto começa a ganhar outra dinâmica. Os preços começam a subir e os vizinhos a ter que sair.

Portanto, 2017 é para mim o ano da transição.

É quando nos começamos a juntar com os parceiros do bairro e a tentar perceber que direito à cidade é que temos – a crise de habitação, a crise do espaço público. Lembro-me de estar a fazer um debate em 2017, no Festival [Todos] que era sobre ocupar, o direito à praça, e o meu filho que cresceu aqui desde os 4 anos – agora tem 15 – foi aqui que aprendeu a chutar a bola, foi aqui que aprendeu a andar de bicicleta e eram os vizinhos que tomavam conta dele quando eu andava ali.

Estávamos a falar sobre o direito ao espaço público e ele vem ao meu ouvido e diz-me assim: ‘Olha, isto é tudo muito bonito, mas hoje em dia, com estas atividades todas, a polícia não me deixa jogar à bola, diz que chateio as esplanadas. São comentários e momentos simbólicos.

Isto tornou-se, porque não foi durante muitos anos, um lugar de encontro. Tinha sido há muito tempo um lugar de encontro, onde todos os vizinhos mais velhos – o senhor Júlio da Barbearia, a dona Lídia, a dona Lourdes, as pessoas mais velhas – têm memória de um Intendente comercial. Vinham, passavam, estavam.

Largo do Intendente em maio de 2022, com a esplanada do café O das Joanas ao fundo. Foto: Rita Ansone

O que fez com que deixasse de ser um lugar de encontro naquela altura?

Foi durante os anos do pós fecho do Casal Ventoso, com muita concentração aqui das problemáticas. Deixou de ser um lugar de estar para ser um lugar de passar e naqueles primeiros anos isto voltou a ser outra vez um lugar de estar.

Não era só de passar, era de estar, mas esse estar começou a evoluir para um estar não muito compatível em termos dos interesses que se têm da ocupação do espaço – a esplanada que agora não quer ser chateada com os que pedem, com os consomem. E começa a sentir-se aqui uma tensão.

Foi a chegada da gentrificação ao Intendente?

São gaps mentais que eu descrevo em termos de sensação. Foi em 2017 ou 2016 que o Sport Clube começa [a lidar] com o aumento das rendas e começamos a tentar ajudá-los a reorganizarem-se associativamente.

Com os Amigos do Minho foi a mesma coisa. Eles tinham arrendado o primeiro andar e segundo, o resto nunca foi arrendado. Mas nem sequer conheciam o senhorio. Arrendaram aquilo à Associação Lisbonense de Proprietários, portanto eles nunca tinham visto na vida o senhorio. Todos os meses pagavam àquela associação. E durante muito tempo até tentaram entrar em diálogo [com o senhorio], porque eram eles que iam dando alguma segurança ao rés do chão, que era muitas vezes invadido. 

E uma vez, disseram-me ‘havia de se fazer aqui qualquer coisa em baixo, porque isto está devoluto’. E eu disse ‘Fazemos o seguinte: eu tenho sempre malta à procura de ateliês e até conheci dois ou três ceramistas que andam à procura de ateliês. E que tal fazermos um projeto?’

[A ideia] Era criar ateliês de cerâmica e fazer um processo comunitário de reabilitação da fachada e, portanto, dar uma ocupação aqui ao espaço do rés do chão. A fachada estava a cair, em situação de perigo já.

Conseguimos esse apoio. Foi ainda o cabo dos trabalhos para tentar começar a fazer a reabilitação, porque eles não eram o dono da obra, ou seja, o proprietário tem que autorizar. Ficamos meses a tentar chegar ao proprietário. Não conseguimos.

Nem tínhamos contactos oficiais. Foi então conseguimos, com uma avaliação do SOS Azulejo, provar que aquilo estava em perigo público e fizemos uma obra sem necessidade de permissão dos senhorios. Mas, como é óbvio, falou-se daquilo, do prédio bonitinho e, nem um ano depois, os senhorios apareceram.

A obra ficou pronta em 2016 ou 2015. Bate certo com esta transição de 2016, 2017, quando começaram a vender-se aqui as coisas já mais caras. E finalmente estes proprietários [apareciam]. Viram que [o edifício] estava renovado e chegou a má notícia de que queriam vender.

À esquerda, o edifício da Casa Independente, que em 2025 vê o seu contrato de arrendamento chegar ao fim e terá de abandonar o Intendente. À direita, o edifício que foi ocupado pelo Sport Clube Intendente e entretanto foi vendido. Foto: Rita Ansone

É aqui que o largo começa a esvaziar-se e a perder a recém conquistada vida?

Quando o bairro começa a ganhar vida, estas associações também começam a rejuvenescer. Agora aquele tempo que tu precisas de maturação para que esta malta que começa a frequentar se torne associada da sociedade e integre os órgãos sociais, não houve esse tempo.

Um movimento comunitário em que isso pudesse acontecer não eram três anos, eram 10. Se houvesse uma forma de congelar a evolução dos preços e o interesse externo a tudo isto… Isto precisa de um outro tempo para que as coisas no fundo ganhem este este tal rejuvenescimento natural e não forçado.

O timing que estas coletividades tiveram para agarrar esta cambalhota não permitiu lidar com todos estes movimentos.

O processo de gentrificação estava instalado.

A gentrificação não enquanto o ato de ‘obrigo-te a sair’, mas de ‘convenço-te a sair’. Um local que nunca foi visto como um lugar de valor monetário, era um lugar de valor comunitário e, de repente, umas abordagens do proprietário diretamente a um presidente, a um vice-presidente, e vais convencendo as pessoas que se calhar a indemnização até é fixe.

No meio disto tudo, nem se fala na não renovação [dos contratos de arrendamento], só de que está tudo à venda. E, como é óbvio, se está tudo à venda, não vão renovar [o contrato].

Isto é tudo muito mais valioso conforme se vê agora: vazio. Ninguém consegue arrendar aqui porque [os proprietários] não querem. Vazio, vazio, vazio, vazio. Está a tornar-se vazio, porque o vazio é valioso. O cheio é um impedimento ao investimento imobiliário.

Foi o que aconteceu com o contrato de arrendamento de 10 anos que o Largo Residências tinha: não foi renovado.

Nós já sabíamos que não havia renovação [do contrato] porque vimos isto à venda nas altas redes de imobiliário e começámos a ser visitados por pessoas que passeiam no largo assim, a olhar para cima – são os investidores.

Andam a olhar assim, a fazer contas ao investimento, estávamos a ser visitados por engravatados. Disse: ‘pronto, já fomos’. Depois, confirmámos que estava à venda. 

Foto: Rita Ansone

Desde essa altura, começámos a criar uma espécie de bolsa de investimento e começámos a falar com o município. O município ainda era inquilino, também eles ainda estavam ali. Aliás, soubemos que os senhorios estavam a pôr à venda. Fomos logo contactar o município. Eles ainda não sabiam, nós é que os informámos.

Se isto é vendido, o que é que fica do processo comunitário? O que é que fica? Daquilo que foram os projetos que emergiram: nós, O das Joanas, A Vida Portuguesa, o que é que vai ficar se isto é tudo limpo?

E aí a Câmara, disse ‘Não pode ser. Vocês são estruturantes aí’.

Aquilo já não se conseguiu, já foi privatizado, entretanto. Ali também foi privatizado. Não havia mão no destino, que eram um hotéis de luxo. E o município disse que ia tentar exercer o direito de preferência. Coisa que nós não conseguíamos, porque isto é um lote. Isto não está sequer vendido ao prédio. Era comprar o quarteirão por 21 milhões ou 23 milhões.

O município aí sim, tem capacidade negocial e mais facilidade depois em dividir isto. E convencemos o município: se calhar, temos todo interesse em exercer direito de preferência e até podemos depois dividir e até vender para não entalar o município financeiramente, até podemos resolver a vender determinado edifício.

Então, o município começa a tentar negociar e manifesta o interesse em exercer o direito de preferência com eles e a sociedade imobiliária passa uma nova rasteira: não vende mais o património e passa anunciar a venda da sociedade imobiliária. Nessa altura, já não há como legalmente exercer o direito de preferência, a não ser que fosse o único património que eles tinham, mas não era.

Foi aqui que perceberam que iam ter de abandonar o Intendente?

É aqui que falamos com o município e dizemos que sentimos que a missão neste território não está terminada. Pelo contrário, é um projeto falhado – é a população vulnerável que continua cá toda, o investimento que foi feito neste largo que está todo a ficar para hotéis. Sentimos que ainda somos úteis cá e a cooperativa ou continua o trabalho aqui ou decide fechar, porque replicar isto noutro sítio não é possível.

Se deixamos aqui um milhão de euros em rendas e obra, tudo bem, foi uma loucura que nós decidimos cometer. Agora, o ativo que crias de trabalho com um território, as relações, as pessoas – é muito mais do que um milhão e, portanto, não é essa a nossa missão, não é replicar modelos não estruturados.

Mas queriam ficar no território.

Aqui é que temos que continuar, mas aqui não havia edifícios públicos, não havia nenhum.

Qual era o plano, então?

Desde 2013, fui participando nas reuniões de câmara descentralizadas. Tínhamos uma quantidade enorme de pedidos de apoio vindos do setor e de projetos que também nos vinham perguntar. ‘Conhecem algum sitio para arrendar barato?’ E éramos muito ativos na presença destas reuniões a pedir [à câmara que fosse] um interlocutor com o património que está em transição, seja ele privado ou público, do governo ou municipal. Quarteirões vazios [que podiam ser] ocupados, nem que seja com atividades temporárias.

Como é que perceberam que o futuro da Largo Residências e da vossa intervenção territorial poderia passar para o outro lado da Avenida Almirante Reis, mas permanecendo na freguesia de Arroios, no antigo quartel da GNR, no Largo do Cabeço de Bola?

Já tínhamos feito um espetáculo dentro do quartel. E em 2013 ou 2015 questionei [a Câmara] sobre o Quartel e isso ficou em banho-maria.

Percebemos que precisávamos de criar um projeto de transição para não desaparecer. E com a pandemia, o nosso festival anual, o Bairro em Festa deixou de ser possível fazer no meio da rua. E, portanto, lembrámo-nos do Quartel. Mais um motivo para falar com o município e perguntar em que situação está.

No passado dia 1 de outubro, o Quartel de Santa Bárbara, onde a Largo Residências se instalou temporariamente, debateu-se o futuro do Intendente, num debate moderado pela Mensagem e que contou com a presença de Marta Silva. Pode ouvir o debate aqui. Foto: Inês Leote

Já com António Costa no governo, há um decreto, aprovado em Assembleia da República, para parar o processo de privatização do quartel e do Miguel Bombarda.

Já se estava a falar da crise da habitação e havia que aumentar o número de habitação pública do governo e, portanto, eles iriam fazer passar da Administração Interna e da Saúde e passar para o Ministério das Infraestruturas e da Habitação, para ser habitação acessível. Mas isto são tudo processos que demoram anos.

Sabíamos que aquilo ia estar vazio e como fazemos o festival em parceria com o município, sugerimos falar com a GNR para ver se nos conseguiam ceder aquilo temporariamente para o festival. E conseguimos. Entrámos lá e dissemos: ‘Isto vazio durante mais uns anos é um crime e há não sei quantas outras entidades a perder espaço, a perder espaço, a perder espaço.

Foi lá que fizemos o festival e começámos com o município, ainda no executivo anterior, a dizer que tínhamos que criar ali um pólo de transição, um pólo cultural e social de transição. Não só para o Largo, que é enorme, mas para também responder a outras organizações que possam estar com dificuldades de resistir ao [preço do] metro quadrado aqui à volta e que estão a ser espremidas e entaladas.

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A cooperativa Largo Residências anunciou em setembro que está em negociações para se mudar temporariamente para o antigo Miguel Bombarda, fechado desde 2011, e para onde também já se tem falado da possibilidade ver nascer um hotel. Que memórias ainda guardam a médica Margarida, o enfermeiro Gamito e a escritora Catarina do primeiro hospital psiquiátrico no país?

Como encaravam na cooperativa a mudança para um lugar temporário, que sabiam estar à espera de poder ser transformado em habitação pública?

O projeto de transição também pode ser uma espécie de statement de como ensaiar a cidade.

A ter espaço, que ele seja um portão aberto, seja um bairro, e não um condomínio de artistas que isso não tem piada nenhuma.

Regressando ao Intendente, como é que olhas para o seu presente e como imaginas que esteja aquele território daqui a 10 anos?

O Intendente não é fácil de prever, porque tem uma energia e uma vida muito próprias, que vai sendo influenciada por este processo de ‘enfidalgamento’, de gentrificação, mas não muda radicalmente. O meu luto de saída daqui foi há 4 anos, quando soube [da não renovação do contrato]. Não foi agora que eu fiquei triste. Isso foi na altura, quando percebi. Tudo o que investimos. Tudo o que se planeou.

Perdeu-se bastante o sentimento de bairro onde todos nos conhecíamos. Agora, não deixava a minha filha aqui andar sozinha, como deixei o meu filho andar sozinho aqui, quando toda a gente dizia que isto era perigoso. Nos últimos anos, deixou de ser um lugar seguro porque deixou de ser uma zona onde as pessoas mais ou menos se conheciam. Ao fim de semana vinha para aqui mais gente beber copos, mas, ainda assim, as referências, as caras, as famílias, as pessoas, os vizinhos antigos, havia aqui muita identidade e confiança.

Largo do Intendente, em maio de 2022. Foto: Rita Ansone

Nos últimos anos, descaracterizou-se muito rápido. A quantidade de caras que tu vias maioritariamente eram desconhecidas e, portanto, eu própria fui assaltada. Quer dizer aquilo que era o tal bairro inseguro que toda a gente achava antes, até foi mais nos últimos anos que se tornou mais impessoal, mais descaracterizado, mais inseguro, e eu própria já dizia que o Intendente já não vale a pena.

À pergunta de como é que como é que imagino isto a 10 anos: isto é um hotel de luxo e [ali] a Soho House, um clube de milionários. Ali, há de ser um hotel de luxo. Isto vai ser tudo vendido como um quarteirão.

Isto é um largo de hotéis e apartamentos de luxo. Não era o que se imaginou.

O Intendente que foi e persistiu durante tantas décadas deixou de ser?

Não sei, é um mistério, porque eu achava que já teria desaparecido, porque já vem acontecendo há uns anos e não desaparece. Nós éramos um pólo de vizinhança, mas [o café] as Joanas também é. Portanto, quando as Joanas fecharem que não sei se é no fim do ano ou no próximo, sem os cafés mais bairristas, vai ser outro vazio.

Acho que [o largo] vai passar agora por mais um ou dois anos de não-lugar – prédios vazios. Obras de dois, três, quatro anos.

Durante estes últimos três anos deixou de haver barulho de obras. O barulho das obras vai voltar. Portanto, a sonoplastia vai ser outra. Se calhar, vai durar mais cinco ou seis anos e depois, durante esse tempo das obras, se calhar ainda vais ver este fluxo aqui de pessoas improváveis e contrastantes.

Trazer os ricos, os hotéis e as esplanadas pode mudar muito, mas não deixa de ser um lugar de passagem e de estar da malta mais vulnerável.

Não se sabe bem o que é que chegou primeiro, se foram as respostas sociais que vieram porque havia pessoas vulneráveis ou se as pessoas vulneráveis vieram por causa das respostas sociais.

Há muitos anos, há muitas décadas, que [o Intendente] é um corredor humano em termos de energia. Toda a gente mais vulnerável passa por aqui.

Já me estava a autoconvencer de que isto já nem era interessante para fazer nem festival nem para organizar nada porque a dinâmica já não é a mesma, e foi uma estalada, porque fizemos uma semana aqui de eventos e voltei a sentir que paralelamente a esta coisa toda nova – a esta casca adicional que aqui está – ainda existe este magnetismo do Intendente, de malta mais vulnerável que continua a pairar por aqui e que passa sempre por aqui.

Marta Silva durante um encontro da comunidade no Quartel Cabeço da Bola. Foto: Líbia Florentino


Frederico Raposo

Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.

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