As duas Fátimas, a Sílvia, a Guida, a Dina. Vão chegando as clientes diárias, veteranas transeuntes do Intendente, que têm no café O das Joanas o ponto de encontro. Cá dentro, cumprimentam, riem, falam alto. Estão em casa neste lugar da Avenida Almirante Reis, num largo que já conheceu várias vidas. O café por vezes é normal, outras vezes com cheirinho, dependendo da hora e do humor do dia. Uma das Fátimas pede uma imperial, a outra já deixou de beber cerveja há muitos anos. A Guida às vezes traz legumes e outras coisas para oferecer aos meninos que trabalham no café. “Gosto de todos os empregados daqui, são meus amigos. Vou sentir muito a falta deles”, anuncia a despedida.

Lá dentro, deixaremos de ouvir tocar Sérgio Godinho, George Brassens ou Maria Bethânia com Zeca Pagodinho. E o sol que cai sobre Lisboa já não vai iluminar as cores das capulanas que aqui servem de toalhas de mesa.

O contrato de arrendamento d’O das Joanas chega ao fim a 31 de maio e sem perspetiva de renovação por parte dos senhorios. Depois do café vizinho, o do Largo Residências, ter sofrido o mesmo em abril de 2022, é agora a vez de outro dos pontos de encontro mais vivos deste bairro ver a história de uma década chegar ao fim.

O café O das Joanas prepara-se para fechar dentro de dias. Foto: Carlos Menezes

Um café de vizinhos

O das Joanas, fundado por duas amigas homónimas (Joana Synek e a Joana Vaz da Silva), foi o primeiro café a abrir no dito “novo” largo do Intendente, em 2012, já depois de uma operação levada a cabo por António Costa, que, então presidente da CML, tinha o gabinete de campanha no largo, mesmo por cima do café, e o transformou por isso.

O que antes era um lugar sobretudo associado ao trabalho sexual e ao tráfico e consumo de substâncias passou a ser também uma morada colorida na cidade.

Apesar desta operação ter fortemente contribuído para o processo de gentrificação do bairro, não será menos verdade que acabou por se criar neste espaço uma dinâmica social que antes andava desaparecida por estas bandas. E da qual o café das Joanas e o do Largo Residências foram os exemplos mais ricos.

Obras no largo do Intendente em 2012 e o largo atualmente. Fotos: Arquivo Municipal de Lisboa/Carlos Menezes

Hoje, é Pedro Ramos quem assume o comando do café, como proprietário. Decidiu lançar-se na aventura de comprar o café em 2015, depois de vários anos a viver em Espanha e em Itália. Jornalista de formação, e apesar de nunca ter trabalhado na área da restauração, queria regressar a Lisboa e o café marcou o este recomeço.

“Por um lado, foi a necessidade, por outro foi a curiosidade, mas também foi por perceber que isto era uma zona diferente da cidade, que isto não era só um café, que havia aqui uma renovação da cidade e do bairro. Eu costumo dizer que as Joanas é que foram audazes, nós só viemos continuar o caminho que elas abriram.”

Pedro Ramos, atual proprietário do café O das Joanas

Na mesa ao lado das veteranas do bairro, que se sentam no café tal e qual como se estivessem na sua sala de estar, poderá sentar-se o hipster mais hipster a trabalhar no seu mac. Com o cair da tarde, os vizinhos são outros: chegam os pais quarentões dos Anjos que trazem os filhos para brincar no largo, os que pedem um euro para tomar um café, os turistas perdidos, os imigrantes da Rua Benformoso que sobem a rua para mudar de ares.

Este café parece cumprir várias funções que eram tradicionalmente as dos cafés, e que nas grandes metrópoles, e nos conceitos como Starbucks, Padaria Portuguesa e derivados, já há muito se perderam: ser o local de encontro da comunidade ali residente. O café como entreposto de recados para a vizinha, o café como bengaleiro onde se deixa algo para vir buscar mais tarde, o café como local onde se vem conversar com quem está atrás do balcão, o café onde se vai quando nos sentimos sós e sabemos que vamos encontrar alguém que vai dar outro rumo ao nosso fim de dia.

Tiago Almeida, frequentador desde o começo, considera que o ambiente que se gerou aqui “foi um acontecimento com origem na população civil, e isso é que é interessante porque mostrou que pode haver transformações sociais através das atividades comerciais”.

“Depois de as Joanas fecharem vai desaparecer uma rotina de que gostava muito. Este era aquele sítio onde se vai e até se pode nem combinar nada com ninguém que se encontra sempre alguém conhecido”, Cátia Fernandes, uma cliente, acrescenta o lamento. 

É como se o café fosse deixar muita gente “órfã”, diz Pedro Ramos.

Promotor da inclusão

Como explica Dino Greco, um italiano a trabalhar no café há cinco anos, “é justamente este tipo de locais que favorece uma real interação entre portugueses e estrangeiros e que dá origem a uma riqueza cultural e humana para ambos os lados”.

E, no caso da população com usos problemáticos de substâncias, ali à volta, nunca houve nestes cafés a política de maltratar ou escorraçar estas pessoas das esplanadas. Antes pelo contrário: houve sempre uma tentativa de adotar um certo papel cuidador, dispensando por vezes comida, acesso livre à casa de banho, dois dedos de conversa.

Na esplanada do café O das Joanas. Fotos: Raquel Pimentel

Nelson, consumidor e frequentador habitual, costuma vir ao café e pedir que lhe guardem os cinco euros – para que não os gaste. Mas esta dimensão de cuidado já está a desaparecer com o fecho dos cafés, deixando estas pessoas em situação de maior solidão e vulnerabilidade.

Marisa Silva, frequentadora assídua, partilha esta visão. “Em caso de emergência, alguém ajudava alguém, num tempo em que todas as caras eram conhecidas e as pessoas tinham nome. Agora, vai ficando tudo cada vez mais anónimo.”

Existe também uma marcada solidariedade social entre as mulheres que fizeram ou fazem nestas ruas a sua vida. As antigas são apelidadas de “tias”, no jargão da rua. Partilham o pouco que têm com as mais novas, as mais erráticas, as mais desamparadas: cedem metade de uma cerveja, um cigarro, pagam um bolo, compram alguma camisolinha que a outra esteja a vender para ganhar uns trocos. Como uma espécie de economia solidária.

Era aqui que Luísa retribuía os vizinhos, há dez anos, com uma feijoada no Natal, no Intendente que lhe estendeu as mãos, quando foi prostituta.

Um largo votado ao abandono… de novo

A forma como o café cresceu foi uma opção de negócio, que orgulha os que cá se sentam todos os dias, diz Pedro Ramos. “Há um carinho muito grande porque as pessoas reconhecem que nós podíamos ter ambicionado um lucro muito mais imediato.”

Recorde-se que O das as Joanas assistiu ao boom do turismo em 2017. “O que poderíamos ter feito e não fizemos foi disparar os preços, selecionar a clientela, ter menos dores de cabeça, menos gente e ganhar o dobro. Eu sempre fui avesso a isso acontecer porque identitariamente sempre me identifiquei com esta mistura”, conta do proprietário. E a pandemia veio dar-lhe razão: “se antes da pandemia tivéssemos disparado os preços, depois em 2020 e 2021 não teríamos tido clientes. Pela opção que tomámos, acabámos por fidelizar a clientela local.”

Na verdade, o resultado será, agora, o mesmo.

O prédio em cujo rés-do-chão se situa O das Joanas é propriedade da família que fundou a célebre fábrica de cerâmica Viúva Lamego. A família é proprietária de metade do edificado do largo do Intendente, do número 23 ao 27. Os estabelecimentos comerciais que tinham contratos de arrendamento com esta família eram, portanto, o Largo Residências, uma loja e oficina de bicicletas, a histórica loja de cerâmicas da Viúva Lamego, a loja Vida Portuguesa e o café O das Joanas. Quase todos estão fechados ou em vias de fechar.

Metade do Largo está votado ao abandono.

Vídeo: Carlos Menezes

Quando António Costa se mudou para o Intendente, o seu primeiro escritório foi instalado justamente num dos prédios da família. Num artigo do Diário de Notícias de 21 de abril de 2016, lê-se que o atual primeiro-ministro pagava uma renda de 5600 euros mensais, antecipadamente, por dez anos, e que isso “contemplara os gastos com as obras de recuperação do imóvel, que integrara a antiga Fábrica de Cerâmica da Viúva Lamego”. Assim, “feitas as contas, o proprietário do prédio recebeu um total de 672 mil euros e a CML conquistou o direito de ocupar o edifício até 2021”.

No entanto, sabe-se que o contrato de arrendamento que existia com a Câmara também não foi renovado.

Mandado construir entre 1849 e 1865 por António Costa Lamego, o edifício albergou então aquela que foi uma das primeiras fábricas de azulejos em Portugal. Os azulejos da fachada foram pintados por Luís António Ferreira, conhecido por Ferreira das Tabuletas, famoso pintor de azulejos do século XIX. É também autor de uma fachada no Largo Rafael Bordalo Pinheiro, que alberga atualmente o Chiado Terrasse, e de alguns painéis na Cervejaria Trindade. Podem encontrar-se algumas obras suas no Museu Nacional do Azulejo.

Viúva Lamego em 1949. Foto: Arquivo municipal de Lisboa

Mas, no seguimento da pandemia, a loja de cerâmicas – que estava aberta há 172 anos e cujo edifício está classificado como imóvel de interesse público – fechou em abril de 2021.

Na altura do encerramento, o CEO da fábrica Viúva Lamego – que já não é propriedade da família há vários anos – Gonçalo Conceição, da Aleluia Cerâmicas, disse que iria “investir no digital” e que seria a própria família a não facilitar. “Temos um senhorio que é particular, um privado. O apoio que poderia vir e teria que vir do senhorio não aconteceu”, conta.

O edifício da loja está desde então abandonado, grafitado, com os vidros sujos – embora os azulejos da fachada estejam intactos. “Esta loja estar aqui como está, desta forma, é uma coisa que me corta o coração, é uma vergonha para a família em primeiro lugar, para a Câmara e para a cidade. Esta loja em qualquer outra cidade desenvolvida da Europa era muito protegida, punham segurança aqui quase”, lamenta Pedro Ramos.

Após meses e anos de falta de manutenção, curiosamente, no passado sábado dia 20 de maio, os vidros dos estabelecimentos agora encerrados foram tapados com papel craft pelo lado de dentro. Os grafitis foram limpos e os posters retirados da fachada da loja. Já não se consegue ver, mas até há bem pouco tempo líamos ainda o menu escrito na parede do antigo café do Largo.

O largo que parece novamente votado ao abandono, no Intendente. Fotos: Eunice Lemos Martins/Carlos Menezes

Do outro lado da praça, as janelas da Junta de Freguesia de Arroios dão todos os dias para esta triste paisagem.

A loja A Vida Portuguesa passará em breve a ser o único estabelecimento a permanecer aberto: o contrato de arrendamento negociado com os proprietários terá sido de duração superior aos outros.

No entanto, com o fecho de todos os vizinhos, o cenário desolador em que o largo aos poucos se vai tornando desmotiva quem ainda lá está. “O trabalho que fizemos durante dez anos está ser destruído. Todos viemos para aqui numa perspetiva de construir aqui uma coisa interessante. O que está a acontecer agora é o fim de todas as ilusões”, lamenta Catarina Portas, proprietária da loja.

Que futuro?

Segundo Mariana Vasconcelos, uma das herdeiras da família, os quatro prédios estão à venda apenas em bloco e não separadamente. Contactada para se pronunciar, adiantou que existe atualmente um comprador interessado que está a estudar o assunto. Afirmou também que tem “uma declaração assinada como prova de sigilo”, e que não poderá fornecer mais nenhuma informação sobre o processo de venda.

Porém, fontes anónimas adiantam que se tratará certamente de um fundo de investimento imobiliário internacional, e que, apesar de o quarteirão já estar à venda há mais de cinco anos, ainda não terá sido vendido por o valor ser muito elevado.

O largo do Intendente foi, ao longo dos últimos dez anos, um dos poucos oásis no centro de Lisboa onde a turistificação não se sentia com o peso esmagador com que se sente noutras áreas limítrofes. Era uma zona em que existia uma proporção mais ou menos saudável entre turistas e locais, onde os comércios não estavam todos forçosamente voltados para o turismo tanto em termos de estética como de preçário.

É um ciclo que está prestes a chegar ao fim.

Com a venda do quarteirão Lamego, fica-nos a pergunta que fez o coletivo Left hand rotation, em colaboração com a Habita! e a STOP Despejos, num documentário de 2019 – ainda atual – sobre a especulação imobiliária em Lisboa: “o que vai acontecer aqui?”.


*Eunice Lemos nasceu em Lisboa em 1993. Estudou filosofia durante 6 anos entre a FLUL e a Sorbonne. Entre 2014 e 2020 fez de Paris a sua casa, onde trabalhou 4 anos numa editora feminista histórica. Regressada, trabalha em Lisboa com palavras e livros, navegando entre revisora, livreira e tradutora.


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4 Comentários

  1. Os portugueses ricos, os que são de Lisboa, vivem de rendas e da venda de bens imobiliários aos FUNDOS estrangeiros, perdão, americanos … por puro patriotismo, perante a indiferença da Câmara, vão se os anéis e ficam os dedos … Lisboa passou a ser novamente a Baixa, Alfama e o Bairro Alto, o resto , turisticamente é paisagem. Eu gosto deste jornal ” Mensagem” , mas, e este mas não é um detalhe, a escrita pelo miserável acordo ortográfico, deixa-me mal disposto, fujo a ler essa escrita, embora goste deste jornalismo … mas é penoso …

  2. Pois é. A morte da cidade de Lisboa. A minha “aldeia” para onde não posso voltar no ocaso da vida. Ela já nem é portuguesa. O exemplo de cidades como Veneza ou Florença ou tantas outras não serve. Lisboa vai ter que morrer, para nós lisboetas, ao pêro da especulação e do lucro fácil. Qualquer dia nem as pedras da calçada são portuguesas. 😔

  3. Caberia às Câmaras implementar quotas e proteger algumas zonas da especulação imobiliária, de modo a poder preservar o encanto e a vida genuína das cidades – que será isso que os turistas procuram. Mas elas também enchem os bolsos e infelizmente, em Portugal, como noutros países, o dinheiro fala sempre mais alto.
    As cidades estão a ficar cada vez mais planas e uniformes, todas são iguais, com edifícios envidraçados e de placas modulares, as mesmas lojas de fast fashion, de cosmética ao quilo, as mesmas cadeias de cafés açucarados e sem alma. Aquilo que alimenta o turismo e que torna as cidades únicas está a ser destruído. São os grandes especuladores a envenenar a galinha dos ovos de ouro.

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