Fado e banda desenhada. A mistura da inconfundível melodia nostálgica com a alegria das cores e traços dos desenhos tem sido a paixão da tradutora polaca Zuzanna Szpura, que há cinco anos trocou Varsóvia por Lisboa. O que a levou a traduzir para o idioma de origem BD’s portuguesas, como as Crónicas de Lisboa, publicadas na Mensagem e que deram um livro. Sempre histórias em que o mais famoso ritmo português é o personagem principal.

A capa de um dos fanzines traduzidos para o polaco com a histórias publicadas nas Crónicas de Lisboa.

Na companhia de outros dois polacos apaixonados pelo fado e pela BD, Zuzanna já levou ao público polaco as histórias de Tudo isso é fado (Sol/EGEAC), do ilustrador Nuno Saraiva, Fado – Estórias da Noite (Edições ASA), de Rui Pimentel, O Fado Ilustrado (A Seita Editora), de Jorge Miguel, e Ao Som do Fado (Levoir Editora), de Nicolas Barrial.

O próximo passo de Zuzanna e companhia é ampliar o tema do fado também para a cultura e a história de Portugal e traduzir para o polaco todo o livro com as Crónicas de Lisboa (LeYa), escritas pelo fundador da Mensagem de Lisboa, Ferreira Fernandes, e ilustradas por Nuno Saraiva.

Zuzanna e o fanzine que levou para o maior festival de BD’s da Polónia com duas histórias que traduziu da Mensagem de Lisboa. Foto: Líbia Florentino.

Um pequeno aperitivo desta ambição já ganhou vida em abril, na última edição do Comic Art Festival 2023, em Poznań, o mais prestigiado encontro do género da Polónia, onde as versões polacas das histórias As duas Júlias de Lisboa e Um ano já sem o Homem na Cidade, sobre os fadistas Amália Rodrigues e Carlos do Carmo, foram apresentadas em formato de fanzine.

“Como já tínhamos esgotado todas as BD’s sobre fado escritas em português, resolvemos partir para algo maior, como as Crónicas de Lisboa, com histórias curiosas, contadas de forma leve, sobre Lisboa e os seus personagens”, explica Zuzanna, num português irrepreensível, reforçando a sua paixão pela cultura portuguesa e, claro, pelo fado.

Uma paixão que levou a tradutora de 32 anos a arriscar num instrumento que é símbolo do fado, a guitarra portuguesa.

Uma história de amor pelo fado e por Lizbona

O primeiro contacto de Zuzanna com Portugal começou justamente pelo idioma, na licenciatura em Estudos Portugueses e Tradução em Filologia Ibérica, na Universidade de Varsóvia, onde aprendeu português e começou a mergulhar no universo da cultura portuguesa.

“Foi nesse período que vivi em Lisboa por um ano, durante o Erasmus”, lembra. E não apenas um Erasmus, mas dois, em 2013 e 2014, na Universidade Católica, e em 2015 e 2016, na Nova de Lisboa.

O fado já tinha sido apresentado a Zuzanna pelo professor e orientador em Varsóvia, Jakub Jankowski, hoje um dos três responsáveis pela tradução das BDs para o polaco, ao lado da também pesquisadora Grażyna Jadwiszczak, especialista em komiks da Universidade de Adam Mickiewicz, em Poznań.

Até agora, foram quatro livros traduzidos para o polaco e que têm o fado como um dos seus personagens principais. Foto: Líbia Florentino.

Entre tantas idas e vindas aos dois países, era natural que Zuzanna decidisse estabelecer-se em “Lizbona“, onde desde 2018 é freguesa da junta de Arroios, vivendo nos arredores do Jardim Constantino. E onde alterna entre o trabalho remoto para uma companhia polaca e as traduções do português para o polaco.

A distância dos amigos Jakub e Grażyna, porém, não foi um empecilho para o trio colocar em prática a ideia de levar para a Polónia um pedaço importante de Portugal. 

O pontapé inicial foi com “Tudo isso é fado“, uma coletânea das histórias desenhadas por Nuno Saraiva e publicadas no semanário SOL, premiada no festival AmadoraBD, em 2016. A chancela do prémio encorajou o trio polaco a arriscar apresentar aos leitores do leste o fado – que em polaco escreve-se literalmente assim, “fado”.

A boa receção dos leitores polacos serviu como incentivo para as três publicações seguintes. Até que já não havia mais BD’s portuguesas dedicadas ao fado ou com o ritmo funcionando como uma espécie de “banda sonora” da banda desenhada. Então, a alternativa para que essa história de amor não parasse foi para lá de ousada: incentivar a produção local de bandas desenhadas sobre o fado.

Produção local, atenção, não só em Portugal, mas também na Polónia.

A primeira edição do concurso de BD O Fado ecoa nas Bandas Desenhadas foi produzida pelo Leitorado de língua portuguesa na Universidade Leon Kozminski, em Varsóvia, e a Foundation Institute of Popular Culture de Poznań, e elegeu nove bandas desenhadas, curiosamente duas assinadas por ilustradores portugueses e sete (isso mesmo, por sete) artistas polacos! 

Os trabalhos foram editados igualmente num fanzine e apresentados no festival em conjunto com as duas bandas desenhadas traduzidas a partir das “Lizbońskie Przygod”, ou melhor, das “Crónicas de Lisboa” da Mensagem, na já citada edição do Comic Art Festival 2023.

Alguns exemplos, da autoria de Nuno Saraiva e Ferreira Fernandes:

  • Severa fado
  • BD Nuno Saraiva Brasil 200 anos

É mais fácil traduzir o fado do que tocar a gitara portugalska

A tradução do português para um idioma distante da raiz latina não deixa de ser uma arte. Uma tarefa que aumenta em dificuldade quando somadas às diferenças culturais entre os dois países. Como os desenhos na versão polaca são os originais, incluindo os balões onde os textos serão inseridos, às vezes é preciso recorrer a alguns artifícios para que tudo corra bem.

“É sempre melhor manter o contexto original, mas algumas vezes é impossível, pois o texto em polaco pode ficar maior do que em português”, conta Zuzanna. Neste caso, uma saída pode ser a mais fácil: reduzir a fonte do texto traduzido até que se encaixe no balão

A outra é adaptar alternativa é adaptar o contexto. “Isso também acontece quando há piadas e jogos de palavras que nem sempre terão o mesmo efeito em polaco. Nesses casos, temos que usar os mecanismos de tradução e encontrar uma situação ou estrutura sintática semelhante em polaco”, explica Zuzanna.

Parece difícil, mas a tradutora polaca garante que é mais fácil traduzir o fado do que cantá-lo e tocá-lo.

Foto: Líbia Florentino.

Zuzanna frequentou aulas de canto de fado no Grupo Desportivo da Mouraria e depois interessou-se pela guitarra portuguesa, tendo aulas particulares, e chegou inclusive a apresentar-se em público durante os eventos da coletividade.

A tradutora conta que o interesse nas aulas foi inicialmente tentar perceber como o fado se estruturava para poder traduzi-lo melhor para polaco. Só depois acabou seduzida para também cantá-lo e tocá-lo. 

“Ambas as coisas, traduzir o fado e cantar e tocar o fado, são difíceis, mas também são ambas bastante gratificantes. Porém, como domino menos a voz e a guitarra portuguesa, diria que cantar e tocar o fado é mais difícil do que o traduzir”, explica Zuzanna.

A rotina profissional, incluindo as traduções das BD’s, tem afastado a tradutora e candidata a fadistka do canto e da guitarra portuguesa. 

“Toco de vez em quando, tive alturas em que praticava quase todos os dias, mas por vários motivos, há mais ou menos um ano, não estudo com tanta regularidade”, lamenta, sem perder a esperança de um dia retomar com mais frequência a amizade com a sua gitara portugalska, ou guitarra portuguesa, duplamente em bom português.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


O jornalismo que a Mensagem de Lisboa faz une comunidades,
conta histórias que ninguém conta e muda vidas.
Dantes pagava-se com publicidade,
mas isso agora é terreno das grandes plataformas.
Se gosta do que fazemos e acha que é importante,
se quer fazer parte desta comunidade cada vez maior,
apoie-nos com a sua contribuição:

Entre na conversa

3 Comentários

  1. Sou Alfacinha de gema, amo a Minha Cidade, mas Vivo no estrangeiro . Bem ajam pelas vossas belas crónicas que me fazem sentir em casa.

  2. Obrigada pelas vossas publicações, ajudam a conhecer melhor a cidade, onde trabalhei 40 anos e pouco conhecer.

  3. Muito obrigada pelas palavras, Quirina!
    Fazemos alguns eventos presenciais e gostaríamos de a conhecer – fique atenta à nossa agenda.
    Boa semana!

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *