
Lisboa já teve a sua história e a rotina das suas personagens registadas em pinturas, fotografias e filmes, cantados em fado e em outros tantos ritmos, narrados em prosa, recitados em versos e, a partir de agora, as crónicas da cidade também estarão eternizadas em BD, que é como quem diz, Banda Desenhada.
Fruto do trabalho a quatro mãos do ilustrador Nuno Saraiva e do jornalista Ferreira Fernandes, o livro Crónicas de Lisboa (ASA Edições) reúne as histórias de Banda Desenhada publicadas na Mensagem de Lisboa desde o lançamento do jornal, em 2021. E mais do que o registo de um tempo e da sua gente, é uma prova de amor dos autores à cidade onde vivem.
“Quando a Mensagem surgiu e dissemos que contaríamos as histórias de Lisboa, muitos perguntaram se não iria faltar assunto. Mas Lisboa comprovou a nossa suspeita, de ser dona de um infinito manancial de histórias e personagens, ao ponto de termos tratado apenas sobre o que aconteceu, não sobre o que tem acontecido”, conta Ferreira Fernandes.
Experiente no ofício da banda desenhada, Nuno Saraiva garante que a experiência em Crónicas de Lisboa foi diferente de outros projetos do género. “Tecnicamente, não é uma banda desenhada, pois dispensa os balões e o uso de discurso direto. É mais como se tivéssemos convidado olisipógrafos dos séculos 19, 20 e 21 para que desenhassem as histórias”, explica.
O resultado do talento e trabalho desse par de “olisipógrafos” da Mensagem será apresentado mais uma vez neste sábado, 10, às 19, na Feira do Livro, no Pavihão Leya.
Foi na Brasieira do Chiado que decorreu a primeira apresentação, por Manuel Serrão. Foi ali que a partir de uma conversa entre os dois nas suas mesas, surgiu a ideia de unir os textos e traços de Ferreira Fernandes e Nuno Saraiva para traduzir em arte a admiração por Lisboa.
A arte de eleger boas histórias
Leitor voraz de banda desenhada desde os 6 anos – quando ainda em Angola devorava as edições portuguesas de O Mundo das Aventuras, O Cavaleiro Andante e da Coleção Condor, e antigo leitor de Tarzan, Mandrake e, posteriormente, quando viveu em França, da satírica Hara-Kiri – o jornalista Ferreira Fernandes é o agent provocateur das Crónicas de Lisboa publicadas na Mensagem.

Geralmente, partem dele as sugestões de histórias e personagens que posteriormente ganham vida nos inconfundíveis contornos e cores de Nuno Saraiva. “Sou jornalista e, nas últimas décadas, o que tenho feito é justamente isso, eleger boas histórias”, diz.
A escolha das histórias que vão ser contadas segue o mesmo critério utilizado nos últimos anos por Ferreira Fernandes para eleger os seus textos no jornal: o pessoal.
“Sempre me regi pelo pensamento de que, se algo me seduz, também seduzirá os outros. E funciona há décadas.”
Algumas das crónicas contempladas são conhecidas, como a fundação do Benfica e a biografia de Peyroteo, um dos cinco violinos do Sporting, ou ainda Carlos do Carmo.
A diferença é o “filtro” aplicado pelo olhar do cronista Ferreira Fernandes, materializado no talento de Nuno Saraiva.
O livro também contempla o leitor com histórias pouco conhecidas – e muito fascinantes – como a de Luís Alves, o último carrasco de Lisboa, que começou e terminou a carreira sem uma única morte oficial no currículo ou ainda um passeio pelos quadros d’A Brasileira, que pode servir de guia a quem comparecer ao lançamento.
A diferença fundamental entre os textos para o jornal e a banda desenhada está no tamanho. “A experiência obriga-me à concisão e torna tudo um bocado enigmático. É ainda uma readaptação ao ofício de cronista, pois sou um precursor do Twitter e houve um tempo em que escrevia crónicas diárias no jornal condensadas em 700 caracteres”, ironiza Ferreira Fernandes.
O narrador como um dos protagonistas
A experiência que Ferreira Fernandes reuniu em todos esses anos como leitor de banda desenhada é proporcional à de Nuno Saraiva como ilustrador das mesmas – e, no caso da Brasileira, tendo desenhado a BD nas toalhas da esplanada.
Crónicas de Lisboa é a vigésima-quarta publicação com o traço dele impresso nas páginas e o nome na capa. O novo livro, porém, também exigiu de Nuno uma nova forma de pensar a ilustração.

“Tem sido enriquecedor e desafiante, pois eu e o Ferreira Fernandes temos fórmulas de trabalho distintas. A forma de publicação também é nova para mim, diferente de uma banda desenhada tradicional, que se baseia na imagem e sequência típica de um filme, por exemplo. Aqui, é como se ilustrasse o pensamento de um gajo”, diverte-se.
Se tecnicamente, as Crónicas de Lisboa podem ir além de uma banda desenhada tradicional, o seu conteúdo têm honrado o métier de um cronista, ao percorrer os acontecimentos à volta da sociedade, seus pormenores humanos e políticos.
“Que nem sempre são felizes e, na minha opinião, também calham de ser infelizes”, ressalta Nuno.
O ilustrador reforça que o grande trunfo desse trabalho na Mensagem tem sido que as personagens das histórias não são os únicos protagonistas.
“O texto do Ferreira Fernandes faz com que o narrador também seja protagonista da história”, completa.
Ferreira Fernandes minimiza os elogios do seu companheiro de trabalho e repete que a força das Crónicas de Lisboa está justamente na cidade, no manancial criativo de Lisboa. “No trabalho de reunir e eleger as crónicas, sou constantemente ajudado por ela. Se é uma coisa que não falta em Lisboa, é assunto.”

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
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