O ruidoso grupo de turistas espanhóis aperta-se para caber na selfie, emoldurada pelo teto de chapéus de chuva coloridos, sublinhada pelo chão rosa choque da rua. Passagem obrigatória dos visitantes em Lisboa, a instagramável rua no Cais do Sodré ostenta também o estatuto de must go da noite lisboeta aos que buscam afastar a solidão na companhia de copos e de música, até ao raiar do dia.

Uma vocação que não é de hoje.

A porta de entrada da Pensão Amor na Pink Street agora também leva aos quartos da Madam’s Lodge. Foto : Carlos Menezes.

Em fins do século XIX, a área atraía outros tipos de viajantes por Lisboa: marinheiros, marujos e comerciantes que, ao contrário dos alegres turistas de hoje, não arrastavam malas com rodinhas, mas os seus corpos pesados e fatigados, de alma mareada e perdida, rumo às luzes das lanternas penduradas nas janelas, faróis a indicar o porto seguro do corpo de uma mulher. 

Algumas dessas lanternas pendiam das janelas do número 38 da Rua Nova de Carvalho, a tal que hoje está pintada de rosa. O endereço que nos últimos anos ganhou fama graças à Pensão Amor, o bar de decoração extravagante e atraente, famoso também por recuperar o espírito que emula os idos tempos da promessa de um amor comprado a 200 réis por hora.

Desde maio, o bar fez jus ao nome. E Pensão Amor passou a ter também hotel, o Madam’s Lodge, como o nome sugere, inspirado na experiência dos tempos dos marujos e das damas da noite. São cinco andares onde 22 quartos de decoração sui generis transportam os hóspedes às noites de boemia e perdição.

A viagem é guiada pelo traço desavergonhado do ilustrador Nuno Saraiva (residente na Mensagem), que pintou as paredes e tetos das escadarias dos sete andares do prédio – dois da Pensão Amor e cinco do novo hotel – com os arquétipos deste universo: mulheres insaciáveis e fortes, homens objetos e “abjetos”.

Um trabalho que, com o perdão da heresia, remonta aos frescos da Capela Sistina.

O ilustrador Nuno Saraiva em frente a uma das paredes pintadas por ele no hotel lisboeta dedicado erotismo. Foto: Carlos Menezes.

Grande parte do charme dessa nova opção de alojamento em Lisboa vale-se do storytelling, a cargo do jornalista e criativo Roger Mor, responsável por criar uma lenda para cada um dos quartos do hotel, apresentados como antigos cómodos de prostitutas, mobiliados ao estilo das inquilinas anteriores, mantendo alguns dos seus singelos pertences e brinquedinhos de prazer.

Uma experiência que amplia a oferta turística da cidade, já preparada para receber os turistas interessados em história, na gastronomia, no sol e na luz de Lisboa, e agora ganha uma categoria a mais: as dos alojamentos pensados para hospedar também o amor e a fantasia.

Roger Mor: storytelling para dar vida aos quartos das meninas da Madam. Foto: Maria Manuel Andrade/Divulgação.

Durma no quarto da Madam, que volta já…

Na receção decorada como a antessala de um luxuoso bordel, um cartaz com ares de ementa apresenta os quartos do Madam’s Lodge, indicados não apenas por um número, mas pelo pequeno histórico de uma de suas supostas antigas inquilinas, meretrizes designadas pelos seus nomes-de-guerra, como Conceição Mestra do Tesão, Rita Engatadeira, Rosa Bandida de Raquel Gulosa.

Roger Morgado, ou Roger Mor como prefere, usou a pesquisa para a peça Alice no País dos Bordéis, uma fábula sobre os anos áureos da boemia lisboeta, encenada na Pensão do Amor em 2017, para dar vida às antigas funcionárias da Madame.

“A sedução aqui é também o hóspede tentar descobrir onde acaba a história e começa a ficção sobre o passado do prédio do hotel, ao mesmo tempo em que se faz uma homenagem a essas mulheres rejeitadas e perseguidas pela sociedade”, conta Roger.

A inauguração do hotel coincidentemente também celebra uma efeméride. Em 1963, em nome da moral e dos bons costumes, o regime de Salazar proibia a prostituição em Portugal, rastreando prostitutas pelas ruas de Lisboa, encerrando bordéis e pensões como as que operavam nos quartos do número 38 da Rua Nova de Carvalho. “A experiência de se hospedar no hotel é como uma viagem a esse tempo, sessenta anos atrás”, diz Roger.

Uma viagem reconstituída ao pormenor nos detalhes da decoração dos quartos:

Em cada um deles, um pouco da vida fictícia – ou não, insistem os funcionários do hotel – de cada prostituta, representado numa memorabilia, uma escova, uma carta ou um porta-retrato escondido numa gaveta no luxuoso toucador que mobilia o quarto, para além de mesas, camas, espelhos e lustres em estilo vintage, que dividem a ambientação com alguns acessórios.

Manual de instrução para o uso de uns dos brinquedos eróticos disponíveis nos quartos do hotel. Foto : Carlos Menezes.

A maioria dos quartos tem um baloiço, para uso em modo solo ou em dupla, conforme a imaginação. Há ainda varões de pole dance, sauna a vapor, banho turco e um brinquedinho sadomasô, em forma de uma gaiola de ferro. Na cabeceira, um variado kit sexo garante o complemento à imaginação. Lingeries e fantasias podem ser solicitados na receção. 

A cereja no bolo é o quarto triplo composto de uma cama king size extra large, onde três travesseiros sobre o lençol sugerem que o trio de hóspedes divida o mesmo leito. “Acolhemos aqui as experiências poliamorosas”, resume Roger Mor.

Para resistir ao peso de uma noite em poliamor com segurança, as estruturas da cama foram devidamente reforçadas.

O bilhete para viajar a esse passado burlesco e erótico de Lisboa varia entre os 150 e 300 euros – para o quarto da própria Madam, tratada pelo staff como uma pessoa real. Basta perguntar a qualquer um deles onde está a madame, para ouvir como resposta: a Madame volta já

Enquanto a Madam não volta, o quarto está disponível. Reza a lenda que apenas dois homens se deitaram na cama com vista para o Tejo, um deles um grande amor da exigente proxeneta e o outro, um candidato a grande amor que não se comportou devidamente, conhecendo um destino ignorado, mas certamente trágico.

O bar Pensão Amor agora “ganhou” um hotel para aumentar a experiência de voltar ao tempo de uma Lisboa boémia. Foto : Carlos Menezes.

Capela Sistina com domninatrix e falos alados

A sinergia com o traço colorido e inconfundível de Nuno Saraivaque, literalmente salta aos olhos. Um trabalho de fôlego que revestiu as paredes e tetos dos corredores e da escadaria do prédio, ligando os sete andares, entre a Pensão Amor e o Madam’s Lodge. Um desafio que consumiu dois meses de trabalho do ilustrador e de seus seis assistentes. 

“Uma coisa que se tem de ressaltar aqui é a importância do trabalho de equipe. Foram dois meses, mas se tivesse de fazer isso tudo sozinho, levaria um ano”, ressalta Nuno, sobre o trabalho dos artistas João Carola, Rafael Rico, Inês Mendonça, Maria Galvão, Mariana Pinheiro e Ana Margarida Matos.

A dominatrix aponta o caminho a seguir: opção pelo protagonismo feminismo de mulheres fortes e Foto : Carlos Menezes.

Os 14 lances de escadas, dois por andar, agora estão ilustrados por cenas sensuais de insaciáveis divas, doidivanas, ninfomaníacas e dominatrix em pleno coito, mulheres ardentes, algumas com o ventre explicitamente em chamas, acompanhadas por arquétipos masculinos, entre eles, os clientes habitués das meninas da Madame, os marinheiros.

Nos corrimãos, enormes falos fazem as vezes de libertinas setas, orientando o caminho por onde o passante deve seguir.

Em lugares estratégicos da parede foram instalados espelhos, para que quem esteja a passar veja refletido na orgia de cores a sua própria imagem, points instagramáveis por excelência, entre pénis alados e casais em pleno fellatio e cunillingus.  

Nuno conta que os proprietários não impuseram limites à criação e, se houve alguma concessão, foi imposta pelo próprio artista. E não foi por pudor. 

 “Na cultura do cancelamento, todo o cuidado é pouco. Sabia do risco de ser acusado de objetificação do corpo feminino e, por isso, decidi retratar as mulheres num papel de protagonista, ao lado de homens-objeto e, às vezes, abjetos”, explica Nuno Saraiva.

Assim, na contabilidade do autor, foram retratadas cinquenta “mulheres belas e fortes” e “quatro ou cinco homens feios e submissos”, uma paisagem composta por 80 litros de tinta e 15 pincéis.

A divisão cromática marca um limite.

Enquanto as ilustrações nos dois primeiros andares em tons de vermelho podem ser admiradas pelo público que frequenta a Pensão Amor, os cinco níveis restantes em azul são um privilégio dos hóspedes da Madam’s Lodge. A dica é passar por lá até antes dos check in, às 17h, quando o acesso a toda a escadaria costuma ser permitido.

Nuno Saraiva assina o painel adesivado que orna as paredes do elevador em tons de verdes de uma floresta tropical com frutos de formatos bem sugestivos e os tradicionais avisos de do not disturb para serem pendurados à porta, igualmente influenciados pelo tema.

Nuno não disfarça o orgulho diante da imensa obra. A miríade de falos eretos, seios, nádegas e vulvas remontam às paredes do Lupanar das ruínas de Pompeia, onde Príapo e seu membro descomunal reinava entre os bacantes.

A disposição dos desenhos, porém, remete a outra conhecida pintura, longe de ser famosa pelo erotismo. Pelo contrário.

“Esta é até agora a minha Capela Sistina”, resume Nuno Saraiva, sem medo de ser fulminado por um raio pela dupla heresia.

Satisfeito com o trabalho, mantém a cabeça erguida, olhos ao alto, tentando abarcar a amplidão dos desenhos que sobem em espiral os sete andares de um caminho que apesar de não ser propriamente santo, não deixa de levar ao paraíso.

Um dos lances das escadas pornográficas de Nuno Saraiva. Foto: Carlos Menezes

Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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