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A processar…
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No átrio da Gare Marítima de Alcântara, durante o mês de março, tem estado uma exposição sobre o desporto no Barreiro. Do assunto fez-se, sábado passado, um debate em que os protagonistas foram glórias desportivas antigas do Barreiro, recordando-se deles próprios. Sabendo eles que os simples ouvintes, sentados, tomavam os acontecimentos como seus, vividos como a emoção de um golo.

A exposição encerra no fim do mês. Depois, é ir de cacilheiro até ao Barreiro, onde mora a Ephemera, o arquivo de José Pacheco Pereira que guarda a memorabilia  agora exposta.

A conversa foi no anfiteatro da Gare Marítima de Alcântara, ao lado das paredes iluminadas pelo Almada Negreiros. Aparentemente, o assunto, a bola, e o assunto dos frescos do artista, sobre uma canção terrível e de ninar crianças, a Nau Catrineta, não tinham a ver um com o outro. Mas não foi bem assim.

O desporto do Barreiro parece coisa localizada, mas é universal. Tal como a Nau Catrineta andou pelos mares e, naquelas paredes voltava com os dramas do seu convés, do Barreiro partiram naus com tigelas de olaria, chamados “pães de açúcar”, porque iam recolher o mosto nas plantações de cana. Que desse instrumento tenha surgido o nome daquela colina com a mesma forma, o Pão de Açúcar, ex-libris do Rio de Janeiro, não é coincidência, é só uma das consequências quando o homem se põe a trabalhar.

Daí que os dois amigos, assinantes deste texto, ambos atlanticenses do sul, um do Recife e outro de Luanda, antes da palestra, tenham descoberto uma emoção comum olhando os frescos. Que, aliás, são de um santomense, um impropriamente dito conterrâneo, mas co-oceânicos os três são com certeza. Enfim, entraram os dois para assistir à palestra (Almada continuou lá fora zelando pela obra, fascinado por si próprio e com razão, como sempre).

Quanto aos jornalistas, na palestra logo se descobriram dois ex-miúdos. Fascinados pelas obras e pontapés dos outros, passaram a abençoada conversa cutucando-se mensagens de telemóvel sobre o que ouviam vindo do Barreiro. Tão longe e afinal tão perto das suas infâncias. O que só prova que o Tejo ajudou o planeta a arredondar-se como uma bola de futebol.

Houve dezenas de pormenores naquele encontro num cais de Lisboa sobre os tesouros desportivos do Barreiro. Do Barreiro barreirense, que deu o clube Barreirense, do Barreiro da extraordinária Companhia União Fabril, que deu o clube CUF e tanto mais, do Barreiro dos operários pobres e lutadores, do industrial Alfredo da Silva, visionário e fazedor, das oficinas da CP, locomotivas da economia de um Portugal atrasado, Barreiro, cinza como o fumo das chaminés que faziam superfosfatos, isto é, adubo, criador de alimento. Parábola de um Portugal silenciado, que tantas vezes só teve cor e alegria com os gritos de golo e os abraços de vitória nos campos de jogo. Graças aos craques também ali, no Barreiro, fabricados.

Filhos do Barreiro como Vasques, um dos Cinco Violinos, como as luvas do João Azevedo, o guarda-redes atrás dos Cinco Violinos. Como o sucessor deste, Carlos Gomes, que um dia mergulhou e desaguou em Marrocos, dizendo-se exilado político. E o benfiquista Bento, ainda hoje pronunciado com todas as letras pelos devotos: Manuel Galrinho Bento. E o ilustre lustre fugidio da Luz, o Chalana. E Futre, que foi dos três grandes e de nós todos, já para não dizer que foi e é de metade de Madrid, a atlética e proletária, que o aplaude de pé quando lá vai. E os futebolistas presentes no debate, Carlos Manuel, Diamantino e o já citado José Augusto.

Representantes de dezenas e dezenas, muito ou pouco famosos, de sucessos diversos mas todos, cada um, guardando sempre que foram, inequivocamente, do Barreiro. Que fascinante destino a de uma terra que, olhada do Terreiro do Paço, mal se vê. Ganha o Barreiro, que tem a melhor vista para o Terreiro do Paço. Ganhamos nós, que usufruímos dos melhores que o Barreiro criou.

Na palestra também esteve um não futebolista, um velho de 80 anos, alto e direito, um Carlos Almeida Oliveira que ninguém conhece, talvez nem os parceiros de debate. Ninguém conhece, pois não. Famoso, lenda, é outro: ele próprio, o Carlos Bóia, por todos à volta admirado. E esse equívoco explica o mistério do Barreiro de que estamos falando: no Barreiro é-se pelo que se faz, não pela herança da pia batismal. Carlos (Almeida Oliveira) Bóia trouxe para o seu nome real, pelo qual todos o saúdam, aquilo que a sua glória evoca: no remo foi campeão e medalhado em tudo, a nível distrital, nacional, europeu e mundial. Vê-lo evoca o rio, que ali é um mar. Se ele tivesse sentido publicitário, teria chegado ao debate remando, coisa que, sempre sortudos, os barreirenses ainda o veem fazer, amiúde, nas margens do Tejo barreirense.

São esses os pormenores que cabe ao jornalismo narrar. O Porto de Lisboa, histórico e sempre útil, de guindastes e obras-primas, acolheu no seu salão mais nobre as pequenas memórias do trabalho. A Ephemera, a empresa cultural que cuida, guarda, veio a Lisboa mostrar um bem precioso, mas perigosamente volátil: a memória. E a Câmara do Barreiro percebeu que os filhos da terra são a maior das suas bandeiras.

E mais um pormenor. Quando, em 1959, José Augusto se deitou ao rio para na outra margem se tornar bicampeão europeu e semifinalista num Mundial, o clube Barreirense ganhou 380 contos com o negócio da venda. Disse ele, agora: “Com aquele dinheiro todo, o meu clube fez um pavilhão polidesportivo”. José Augusto quis confundir-se com uma obra de engenharia, mas era mais do que isso. Ele estava a carimbar-se com o selo made in Barreiro, uma marca em expansão global.

É, o Barreiro é um exemplo que se expande. Já não só se exporta, inspira. Num município vizinho, Moita, mais de seis décadas depois da venda de José Augusto, em 2021, um rapaz do Vale da Amoreira também partiu além Tejo. Neemias Queta estava na América à espera do anúncio que o tornaria o primeiro basquetebolista português a jogar no topo dos topos, na NBA. O anúncio chegou, o rapaz levantou-se para o mundo o ver, beijou a mãe e leu-se no peito, na camisola: “V.A. 2835”. O código postal do Vale da Amoreira.

Como tem ensinado o Barreiro, ter os pés bem assentes na terra, na nossa terra, leva longe. 


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

Ferreira Fernandes

Nasceu em 1948 em Luanda. Jornalista – um ponto é tudo.


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1 Comentário

  1. Foi com um grande orgulho que li esta peça sobre o meu Barreiro e os seus desportistas. Fui das que remei neste lado do Tejo com o Sr. Carlos “Bóia”. Só hoje li porque nem sempre tenho tempo para ler as peças da Mensagem de Lisboa, mas nunca as descarto sem as ler, nem que seja uns meses depois, porque as vossas peças são intemporais e trazem sempre otimismo dentro delas. Obrigada.

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