Eu, português. E agora, o que será de mim? Será que deixarei de torcer pelo glorioso Clube Náutico Capibaribe, que ostenta no nome um dos dois rios de Pernambuco – o outro é o Beberibe – que briosamente se unem para formar o Atlântico?

Será que me esquecerei como dançar o frevo, dos estandartes de Elefante e Pitombeira a descerem os Quatro Cantos em Olinda, das canções Lado B dos discos do Chico Buarque ou dos sambas do Zeca Pagodinho?

E da farofa – meu Deus, a santa farofa diária, de ovo ou de jerimum -, será? Será?

Após sete anos em Lisboa, virei português.

Apesar do lusitano Antonio Maia Moreira entre o Álvaro e o Filho, não encontrei nos ramos da minha genealogia um português que pudesse gentilmente transmitir-me a nacionalidade pelo sangue. Nem no lado do velho Gastão Moreira, nem no de dona Lurdes Maia, nem entre os Pintos, Massaneiros e Longobardes que não trago na certidão, mas carrego com igual orgulho na alma.

E, assim, caros novos e antigos compatriotas, nasci português a 2 de dezembro do ano da graça de 2022, um mês antes do meu cinquentenário como brasileiro. Algo como reformar-me de ser brasileiro.

Como no filme “2001: Odisseia no Espaço, de Kubrick, também eu vivo uma odisseia em 2023. Foto: Imagem de apresentação do filme “2001: Odisseia no Espaço

Por uma dessas questões burocráticas, ao nascer português a idade começa a contar do zero e, sendo assim, contabilizo apenas pouco menos de dois meses de vida. Portanto: um recém-nascido na lusitanidade.

Um justo galardão pelo bom comportamento em território estrangeiro, por manter a autorização de residência em dia e o Navegante sempre carregado, por ajudar a segurança social a bater recordes na arrecadação de impostos com imigrantes, por aplaudir o Fernando Santos quando ele mereceu e assobiá-lo nas outras 90% das vezes, por atravessar na passadeira e por sempre sorrir, cordial, quando me dizem não perceber o meu “brasileiro”. 

Em troca, agora posso gozar a boa vida de reformado brasileiro e de novo português.

Serei um português tranquilo como o americano de Graham Greene, a furar a fila da imigração na Portela quando for visitar o Brasil, a votar no sucessor do Marcelo – não ter tido o direito de votar no Marcelo, confesso, é algo de que me ressinto – e ainda, quem sabe, a aspirar a uma hipoteca mais justa graças ao meu pedigree português, assim que a inflação e a Euribor derem uma trégua.

A tenríssima idade lusa me confere algumas justificações para eventuais falhanços na minha nova nacionalidade, como o facto de ainda não saber falar o português europeu – conforme acho que se pode atestar nessas “mal tecladas” linhas. Ora, é esperado que um recém-nascido com menos de dois meses não fale português e, diante do exposto, convenhamos, não estou assim tão mal.

Ser um português acabado de parir também justifica só saber o primeiro e o último refrão do hino, o que me fez cantar durante o Mundial apenas o “Heróis do mar, nobre povo” e “Contra os canhões, marchar, marchar!”. Embora não veja muito sentido em marchar contra nem a favor de canhões, como também não via sentido no agora meu até agora único hino em se vangloriar de ser um país “deitado eternamente em berço esplêndido”.

Os meus parcos dois meses de vida como português também me eximem do escrutínio enviado por Whatsapp a propósito do meu novo estatuto: não pelo SEF, mas pelo caríssimo colega de redação e tutor de portugalidade, o muy irónico Ferreira Fernandes, a questionar onde estava quando Infante D. Henrique tornou Portugal independente…

A verdade, Ferreira Fernandes, é que com apenas dois meses de vida infelizmente também não posso responder sobre o número de comissões que fiz na Guiné durante a Guerra Colonial.

Ou ainda quantas vezes comi sarrabulho, batizei meus filhos de Manuel ou cuspi no chão durante uma atuação do meu rancho folclórico – embora essa última ache passível de ser feita por um bebé e fá-la-ei com fidalguia, assim que tiver um rancho folclórico atribuído pelo governo.

Mesmo assim, concordo, caríssimo, que estás certo e ainda há muito por aprender.

Mas, por essas imponderáveis questões de conservatórias, os papéis da nacionalização foram parar em Vila do Conde e calhou de ter nascido português no Norte. Portanto, mais portuense do que lisboeta de nascença. O que é uma contradição natalícia visto que considero Lisboa, onde aportei e sempre vivi, a minha terra

Nada contra o Porto, onde toda vez que peço “uma média” em vez de “uma pequena cerveja em garrafa” fingem não perceber o meu sotaque vilacondense do Recife e servem-me uma generosa caneca, esses meus novos conterrâneos sempre tão queridos.

Mas o que me intrigava mesmo em ter nascido em Vila do Conde era nunca lá ter estado. Até perceber ser o que acontece com todos nós: nascemos sempre onde nunca estivemos.

Estou mais tranquilo, então.

O lado bom é que agora, nos fins de semana, nos feriados, nas quadras de Páscoa e Natal, posso fazer como todo português e pegar o comboio e rumar à terra, onde não haverá ninguém com os braços abertos para me receber. 

Não se pode ter tudo.

Como brasileiro reformado, sou obrigado a informar aos meus novos patrícios que pouco ou quase nada da minha experiência prévia deve trazer algo de enriquecedor a Portugal. 

Sempre fui um brasileiro mais ou menos: não jogo futebol, não sei sambar com os indicadores para cima, não sei dançar forró ou lambada, não sou do Rio nem tenho aquele sotaque que todos nós portugueses sabemos imitar – o carioca e que pensamos representar o Brasil inteiro -, não sei também cozinhar feijoada, brigadeiro ou fazer depilação. 

Já no Tinder – desde sempre uma experiência interativa e sociológica superior a qualquer ChatGPT – “as matches” portuguesas já haviam percebido a minha pouca brasilidade e lá na terceira ou quarta linha de conversa constatavam em minutos o que o Governo português levou sete anos a perceber, ao dizerem: “Eh, pá, nem pareces brasileiro”.

O facto é que as perspicazes “matches” do Tinder estão cobertas de razão e não pareço mesmo brasileiro.

Como não pareço portuense, vilacondense, lisboeta, português e outras indicações impressas num papel timbrado, numa certidão ou passaporte, tudo georreferências que atrapalham mais do que ajudam, que nos afastam mais do que nos unem.

Do Recife ou de Vila do Conde, do Brasil ou de Portugal, a minha verdadeira nacionalidade é ser como os outros bilhões de ‘conterráqueos’: independente do que dizem os papéis timbrados, somos todos meros humanos, limitados, de carne e osso, quase sempre o grandessíssimo idiota da canção do Raul Seixas, a nos acharmos isso ou aquilo, apesar de usarmos apenas dez por cento de nossa cabeça animal.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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