Rui Alexandre, arquiteto do Porto de Lisboa, desenrola um canudo de papel sobre a secretária do seu escritório no Edifício Infante D. Henrique, que pertence à Administração do Porto de Lisboa.

De repente, uma planta ocupa toda a superfície.

Aquele é o desenho da realidade que se vê da sua janela, o espaço adjacente à doca de Alcântara, com o Tejo a iluminar a paisagem, seguindo por aí em diante até ao LACS, um espaço colaborativo na Rocha do Conde de Óbidos.

Mas este não é um desenho do presente. É, sim, um desenho do futuro. Veem-se arbustos, relvados, um skatepark, pavilhões e mercados em zonas onde já se pedala, mas onde ainda dominam os carros.

“Isto é uma zona que não faz sentido com tantas automóveis”, explica Rui. “É uma zona tão interessante com a proximidade ao rio e ao Porto…”.

Mais arbustos, mais zonas de lazer e descanso surgem na proposta de intervenção na doca de Alcântara. Foto: Inês Leote

É a partir desta premissa que a Administração do Porto de Lisboa, com a equipa de arquitetos extrastudio e o atelier de arquitetura paisagista Oficina dos Jardins, está a desenvolver uma proposta para a requalificação da doca de Alcântara.

A ideia é redesenhar o espaço, reduzindo os lugares de estacionamento, passando de 760 para 360 (muito embora o Plano Diretor Municipal estipule um máximo de 247), vendo ali nascer um lugar “mais friendly” para as pessoas, com mais arvoredo e zonas de lazer.

No fundo, abrir o Porto de Lisboa à cidade, devolvendo mais esta parte do Tejo aos lisboetas.

O Porto que fez Lisboa

Do escritório de Rui, contempla-se o rio Tejo, guardião de histórias que ao longo dos anos viu as suas águas serem disputadas por romanos, suevos, visigodos e mouros.

O Tejo, a chave-secreta de Olisipo, Ash-Bonnah e finalmente dessa Lisboa reconquistada em 1147 pelas forças de D. Afonso Henriques, que se tornou rota marítima internacional e até mesmo detentora do monopólio do comércio das especiarias, do algodão, dos chás.

O Tejo que os jograis dos tempos dos reis exaltavam, como o fazia João Zorro no século XIII, citado no livro 100 anos do Porto de Lisboa:

“(…) Em Lixboa, sobre lo mar,

Barcas novas mandei lavrar,

ai mia senhor velida!

Em Lixboa, sobre lo lés,

Barcas novas mandei fazer,

Ai mia senhor velida!”

Mas hoje o Tejo já não é palco de frotas destemidas e de conquistas gloriosas como foi em tempos, nem o era quando Rui Alexandre aqui chegou.

O ano era de 1991 e, nessa altura, a vista da janela do seu escritório também não seria a dos dias que correm: por ali, erguiam-se armazéns.

“Eram armazéns onde se guardava café, bananas, produtos das ex-colónias”, recorda. Mas que se tornavam obsoletos com o fenómeno dos contentores: é que a carga, dantes armazenada, passara a ser transportada em contentores.

A mudança chegara para se repensar o Porto de Lisboa. “Era preciso reorganizar o espaço”, diz Rui Alexandre.

Rui Alexandre ainda recorda os armazéns que existiam no Porto de Lisboa quando aqui chegou. Foto: Inês Leote

Foi no século XVIII que se começaram a imaginar projetos grandiosos que permitissem a expansão do Porto. No livro Description de la Ville de Lisbonne, de 1730, publicado em Paris e Amesterdão, pode ler-se:

“Há quem afirme que o Rei tem o propósito de alargar a cidade construindo de um ao outro extremo de Lisboa um cais com cerca de quarenta toesas conquistadas ao Tejo (…)”

Com o terramoto de 1755, a cidade é reconstruída para o desenvolvimento do comércio, mas é só no século seguinte, com o fervilhar da Revolução Industrial, que se dão aquelas que foram as grandes obras do Porto de Lisboa, pelo empreiteiro francês Pierre H. Hersent.

O jornal O Occidente escrevia sobre esse grande dia 31 de outubro de 1887, também de celebração dos 49 anos do rei D. Luís:

“(…) e alli El-Rei punchou um cordão que comunicava com a barcassa d’onde se lançaram ao rio as pedras. Subiram então ao ar as grandes girandolas de foguetes, e as musicas regimentaes, que se achavam formadas na margem do rio, tocaram o hymno que se misturava com os vivas enthusiasticos da multidão e com os silvos agudos da empreza constructora, formando um côro extranho e desusado, que bem poderia dizer-se que a industria e o progresso também entoavam o seu hymno glorioso, n’aquelles silvos desprendidos do grande motor que tem sido a sua mais poderosa alavanca – o vapor”.

Ilustração da inauguração das obras do Porto de Lisboa no jornal O Occidente, 1887. Fonte: Os 100 anos do Porto de Lisboa

Lançava-se a pedra da mudança: com estas obras, muniu-se o Porto com as docas que hoje conhecemos, com cais, rampas, equipamentos, armazéns.

Nos anos seguintes, abriram-se arruamentos, assentaram-se linhas ferroviárias, criaram-se os entrepostos de Santa Apolónia, Santos e dos produtos coloniais.

Entretanto, na década de 1940, inauguravam-se as míticas Gares de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos – construídas numa perspetiva de renovação das estruturas portuárias – projetadas pelo arquiteto Pardal Monteiro e onde se podem encontrar os polémicos painéis de Almada Negreiros.

A passagem dos anos trouxe, claro, modernizações.

Em 1970, o Porto de Lisboa aderia à tal contentorização, assumindo-se como o primeiro porto na Península Ibérica com um terminal com grua própria para o transporte de mercadorias em Santa Apolónia.

Com esse fenómeno, o Porto mudava. Os armazéns tornavam-se desnecessários – era preciso transformar o espaço. “Nos anos 1990, o que se fez nesse altura foi ‘limpar’ esta zona, porque era uma zona expectante”, conta o arquiteto Rui Alexandre.

Limpar, mas não só. Aquilo que aqui começou a fazer-se foi isso mesmo: abrir espaços dantes vedados à população.

Uma das primeiras transformações deu-se precisamente na doca de Santo Amaro, hoje bem conhecida pelos seus espaços de restauração.

Neste espaço junto à doca de Alcântara, colocou-se pavimento para se criar uma “alameda” pensada para as pessoas andarem de bicicleta, de skate… Uma alameda que foi mais reforçada ainda quando, anos mais tarde, ali se criou uma ciclovia.

Hoje, já há espaço na doca para caminhar, andar de bicicleta, de skate… mas a presença do automóvel é também notória. Foto: Inês Leote

Mais árvores, mais skates, mais espaço…

No entanto, os anos foram passando, e o arquiteto apercebia-se que a intervenção da década de 1990 não era suficiente. “Queríamos potenciar as atividades no exterior”, diz ele.

Surge, assim, esta proposta, que está ainda sujeita a alterações (entretanto, será iniciado o projeto de execução), com a redução do estacionamento e a ampliação do pavimento amarelo que hoje se vê em frente ao edifício Infante D. Henrique.

Surge também mais arvoredo nessa zona, e em frente ao edifício Gonçalves Zarco, logo a seguir a este anterior, nasce mesmo um relvado, onde as pessoas poderão descansar, num espaço associado a esplanadas.

Prevê-se ainda a construção de um edifício de apoio à doca de Alcântara (o atual está degradado), a criação de um percurso que acompanha a ciclovia com bancos de jardim e a substituição da vedação que hoje existe entre a alameda e o rio.

Mas há mais propostas, como a criação de um parque de estacionamento que aos fins de semana poderá virar mercado, a construção de um pavilhão para concertos, a instalação de uma grua que produz harmonias a partir do barulho do meio envolvente e ainda a construção de um skatepark.

É que, na altura em que esta intervenção começou a ser pensada, a revista Surge Skateboard contactou o Porto de Lisboa a propor uma colaboração com a atleta olímpica e arquiteta Alexis Sablone, que desenhara uma peça escultórica, que funciona também como equipamento para skate, e que agora será incorporada neste espaço.

Ainda são só ideias no papel, mas Rui acredita que no próximo ano esta zona estará transformada. “Estamos a ver qual a melhor forma de implementar esta solução”, diz.

Os planos vão sendo feitos enquanto a cidade caminha em direção à mudança, neste lugar onde a história se escreve sempre sobre uma constante: o Porto de Lisboa, do rio Tejo ao Oceano Atlântico.

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Ana da Cunha

Nasceu no Porto, há 27 anos, mas desde 2019 que faz do Alfa Pendular a sua casa. Em Lisboa, descobriu o amor às histórias, ouvindo-as e contando-as na Avenida de Berna, na Universidade Nova de Lisboa.

ana.cunha@amensagem.pt

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3 Comentários

  1. Aquilo que se passou e está a passar com a doca do Hespanhol (ou do Espanhol, para quem preferir) é um crime contra a cidade de Lisboa. O aumento da capacidade dos pórticos faz-me lembrar uma téctica da minha adolescência que infelizmente não posso relembrar aqui. Em vez de reproduzir o discurso da APL a Mensagem devia informar-se. Infelizmente, isso é pedir demasiado ao jornalismo de hoje. Movimentar contentores naquela doca é uma aberração que não tem pés nem cabeça. A APL – que, relembro, até já teve planos para a aterrar completamente – está a fazer aquilo a que em francês se chama «dourar a pílula». Fico inteiramente à disposição d’A Mensagem caso vejam utilidade num pouco de informação complementar.

  2. Será que é desta vez que se vai concretizar a ligação de todas as linhas ferroviarias, de Sul ao Norte, ou teremos decesperar mais 50 anos como no caso do aeroporto de Lisboa e da barragem de Alqueva, etc, ?

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