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Este mês a Câmara Municipal de Lisboa lançou-se na celebração dos 30 anos do Programa Especial de Realojamento (PER). Organizou um evento especial na Faculdade de Arquitetura de Lisboa que contou com três atores políticos que subsistem no espaço público e com responsabilidade na implementação do PER: Victor Reis, Isaltino Morais e Cavaco Silva; e outras intervenções públicas, nomeadamente dos Presidentes de Câmara de Lisboa, Loures, Cascais e Matosinhos.
Sabe-se que os políticos são muito ciosos da sua obra, em especial quando envolve betão. Ora, a primeira nota vai para a estranheza da escolha do local e das companhias: porque não escolher um desses bairros e o seu povo como palco para tamanha celebração?
Como não quero deixar de ser um narrador que propõe soluções, lembrei-me de uma série de locais alternativos para tamanha celebração. A saber:
Num dos pátios da Quinta do Lavrado na Penha, ali bem condicionado entre o muro do cemitério, uma ETAR ao ar livre e uma estação de média e alta tensão da REN; numa garagem do PER 7 na Alta de Lisboa, o único espaço colectivo que foi permitido aos moradores locais; num descampado de Santa Filomena onde na segunda década deste século foram despejados moradores sem alternativas; no Bairro dos Navegadores, de nome sugestivo decorado com graffiti do Infante Dom Henrique, mas de preferência com partida marcada a partir de Miraflores – onde estavam os antigos bairros – por certo a viagem de uma hora e cinquenta dará para boas conversas; ou na Quinta do Loureiro, em frente a seis faixas de rodagem à porta da Escola do Vale de Alcântara, que apesar de ter a idade do Bairro já está encerrada por falta de condições.
Só que não.
De facto, dá muito mais jeito reunir essa gente toda num espaço higienizado, sem contraditório – nem mesmo o do fruto da obra – e ficarem a vangloriar-se mutuamente, aproveitando até a soberba de tal ambiente para opinarem sobre o imediato e o futuro.
E aqui, do meu saber profissional digo: se o futuro – em especial o PRR da habitação – for contruído com as mesmas premissas do PER, garanto-vos, não será risonho.
Cantar os números do PER a partir de um auditório é de facto demolidor: 132 181 pessoas realojadas em 28 municípios das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. E não estou a vangloriar ou a romantizar a situação anterior em que milhares de famílias, a maior parte migrantes internos e externos, moravam em espaços insalubres.
O PER chegou tarde, num momento em que esse tipo de bairros e habitações já não existiam em grande parte da Europa, e a vantagem de aprender com outras experiências mais consolidadas – o que seria uma responsabilidade política – foi uma oportunidade que se perdeu.
Essencialmente construiu-se em altura, de forma densa e em lugares afastados de acessos a transportes, empregos e serviços. As populações não foram ouvidas (salvo exceções), não participaram e muito menos deliberaram.
Construíram-se casas, mas não bairros. Com a ironia que esta última classificação é a que prevalece na memória coletiva sobre esses lugares.
As habitações foram inauguradas já em sobrelotação pela distância ao seu recenseamento original (1993). O processo ainda perdura e há famílias excluídas de uma nova habitação por não estarem no processo original. E, convenhamos, já passaram 20, 30 anos, é normal que assim seja.
Alguns cafés foram realojados, mas as atividades económicas não transitaram para os novos bairros. Aceder a uma loja para dinamizar o comércio local é quase impossível, os alugueres são caros e os espaços estão em bruto; os custos agregados desses fatores impedem a rentabilidade de qualquer negócio.
A construção é de fraca qualidade, grassa a humidade. Escasseia a manutenção, os espaços públicos e equipamentos coletivos de qualidade. Os transportes são poucos e com pouca frequência horária. Há até lugares onde a recolha do lixo não chega diariamente. Os moradores estão habilmente sufragados por políticas sociais de prevalência moral.
Não se fez cidade no PER. E qualquer morador, trabalhador, ou quem tenha redes de relações nestes territórios, sabe-o.
Mas se está tudo feito porque é que isto tudo interessa?
Caros leitores, a política pública tem de ser avaliada com a frieza necessária para que se seja honesto. E é preciso fazê-lo no levantamento das intervenções necessárias nestes territórios. É que eles não estão nem sequer perto de um ponto de partida de igualdade com o seu entorno (muito menos de equidade). Até para garantir que não se repita o mesmo com as oportunidades vindouras.
*Assistente Social com pós-graduação em Estudos Urbanos e doutorando na mesma área temática. Investigador no Dinâmia-Cet ISCTE-IUL. Tem coordenado projectos de desenvolvimento comunitário em vários territórios da Área Metropolitana de Lisboa. Na área da cultura, foi um dos responsáveis das “Estratégias para a Cultura da Cidade Lisboa”, ainda em 2022 foi curador da exposição “Interferências” no MAAT e de “Também Estão no Mapa” no Museu de Lisboa.

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