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Fazel usa as salas do Largo Residências, no Quartel de Santa Bárbara, para ensaiar. Foto: Inês Leote

À medida que os dedos de Fazel Sapand dedilham as teclas de um harmónio indiano (semelhante em forma a um pequeno teclado, mas com o som de um acordeão), os olhos brilham e mostram que ainda há felicidade para comemorar, uma réstia de sonho, mesmo depois de já ter visto o pior.

Viveu 30 dos seus 32 anos em Herat, considerada uma das cidades mais populosas do Afeganistão. Seria conta para prolongar, mas em agosto de 2021, com a chegada dos Taliban ao poder, o jovem começou a receber ameaças de morte caso não fechasse a academia de música na qual ensinava. “Os Taliban não gostam de músicos nem de nada que tenha que ver com a educação.” Então, abandonou a pátria dele.

Hoje, às notas afegãs deste instrumento indiano junta um cantar em Darí (a língua persa do Afeganistão), que ecoam numa sala lisboeta, no Quartel de Santa Bárbara, para onde se mudou o Largo Residências. É nesta mistura de sonoridades e linguagens do Médio Oriente que Fazel vive o dia a dia na cidade.

Ouça o harmónio indiano tocado por Fazel 🎧
Fazel toca um instrumento chamado “harmónio indiano”. Foto: Inês Leote

“Eu não escolhi Lisboa”, confidencia o músico afegão. Mas a vida encaminhou-o para cá. A ele e a outros, como Ebrahim Mohammadi, de 25 anos, emigrado pelo mesmo medo e pela mesma paixão.

A música que deixou de tocar no Afeganistão

Estudou música até ao 12º ano e depois licenciou-se em literatura persa na Universidade de Herat. Juntando estas duas paixões, Fazel fundou a Honarestan Tarana Music Academy – uma escola de música para que todos os jovens pudessem ter acesso ao ensino teórico e prático de música, já que no Afeganistão havia “falta de um ensino teórico consistente de música”, explica.

Vivia rodeado de crianças e jovens e passava o dia embalado entre harmonias, notas e cultura afegã. Ensinava-lhes flauta, harmónio, tabla e sitar. A par disso, dava aulas de língua persa no Instituto Nacional de Música do Afeganistão.

Fazel recorda os seus alunos no Afeganistão. Foto: Inês Leote

Era assim, até à chegada daquele verão de 2021, em que a vida dele deu uma reviravolta.

No cenário de terror em que o país mergulhou, sem lugar a direitos humanos, com punições e execuções coletivas e a proibição às mulheres do acesso à educação, emprego e liberdade, as minorias étnicas e religiosas bem como jornalistas e ativistas dos direitos humanos foram ameaçados e condenados à morte. Fazel não viu outra hipótese senão deixar quase tudo para trás.

Quando as ameaças de morte se tornaram insuportáveis, o músico pediu ajuda a toda a gente que conhecia. Deixou a cidade natal e rumou ao aeroporto de Cabul. Lá, deparou-se com milhares e milhares de pessoas que também queriam fugir do Afeganistão. Muitos compatriotas agarraram-se às rodas dos aviões enquanto estes descolavam, outros morreram nos tumultos que resultaram da tensão do desespero de querer fugir aos Taliban. E outros ficaram em terra.

No meio da confusão, os Taliban bombardearam o aeroporto, fecharam-no e a multidão teve de dispersar. Fazel ficou sozinho e sem saber o que fazer. Ficou em Cabul durante um mês até que o presidente do Instituto Nacional de Música do Afeganistão o convidou a juntar-se ao grupo de músicos que viriam a ser acolhidos em Portugal.

Os músicos chegaram a Lisboa em dezembro de 2021 e, desses tempos, Fazel só recorda que ter sido um período de grande “confusão”. “Já tinha lido sobre a Europa e sabia que tinha países bonitos, mas só queria ficar no meu país.”

Refugiado uma segunda vez

No mesmo voo, estava ‪Ebrahim Mohammadi‬. O jovem de 25 anos que se viu obrigado a deixar o Afeganistão pela mesma razão, mas que se via na pele de refugiado pela segunda vez. Ele que já tinha fugido com os pais para o Irão, quando a Rússia invadiu o país no século passado.

Ebrahim toca santur, um instrumento com 72 cordas. Foto Inês Leote.

“Comecei a receber ameaças dos Taliban. Com todo o poder que têm, eles controlam tudo no país e não queriam que a música afegã continuasse”. Sobretudo no feminino, diz Ebrahim, que dava também aulas a raparigas.

Estava no Afeganistão há três anos e dava aulas no Instituto Nacional de Música do Afeganistão, quando os Taliban retomaram o poder. Sobre este período conturbado, já restam poucas palavras a Ebrahim.

“Foi terrível! De repente, já não podia fazer nada pelo meu país. O que aconteceu ao meu país é a parte mais triste da minha vida. Eu estava em casa quando ouvi os talibans chegarem… não consigo explicar e não quero relembrar isso.”

Tudo o que aconteceu a seguir é uma névoa mental na cabeça dele, até à chegada a Lisboa. Seguiu no mesmo voo que Fazel, eles velhos conhecidos.

A felicidade de Ebrahim é bem visível quando chega de braços abertos a um ensaio no Selina, um restaurante no Cais do Sodré. Com uma gargalhada fácil, o jovem vem com garra para o sound check. Depois de um dia de trabalho e várias horas nos transportes públicos, vê na música “uma forma de expressar todos os sentimentos que não consegue dizer”.

Ebrahim toca santur, um instrumento com 72 cordas, “com um som maravilhoso” e que acredita permitir-lhe navegar por todas as emoções.

A paixão pela música e a vontade de dar continuidade à tradição afegã levaram-no a escrever um livro sobre o santur e as especificidades das sonoridades afegãs, já que não havia qualquer manual que explicasse toda a cultura de que fala. O livro Roshank – a small light in the darkness (Uma pequena luz na escuridão) foi traduzido para inglês e o músico procura agora alguém que possa traduzi-lo para português – para que, também aqui, a música afegã continue a ecoar e possa perpetuar-se.

O livro de Ebrahim fala sobre o santur e as especificidades das sonoridades afegãs.

Os caminhos dos dois afegãos continuam cruzados e levam a música afegã mais longe. Em Lisboa, Fazel e Ebrahim têm dado concertos em que mostram a riqueza de sonoridades do país deles.

E para isto não há manual: diz Ebrahim o que torna a música afegã especial são os seus ritmos desiguais que são um espelho da própria pátria.

“A dor e tristeza da música afegã podem ser claramente sentidas depois de a ouvir, assim como a sua expressão diferente, com ritmos desiguais – o que demonstra o desequilíbrio das condições do meu país. E isso torna-a especial.”

Entre as salas vazias de um velho quartel e o “bom amigo português”

Lisboa é agora o porto de abrigo para esta cultura que lhes corre nos dedos. Mas embora Fazel se sinta seguro, está longe de ser feliz.

“A academia de música era a minha vida. Eu passava lá todos os dias, todo o meu tempo.” Aqui, é difícil voltar a essa vida. Especialista em música afegã e do Médio Oriente, Fazel explica o desafio que é dar aulas deste ramo musical em Portugal. “Aqui, as pessoas não conhecem a música do Afeganistão, há poucos refugiados do meu país”.

Talvez, se fosse para a Alemanha, onde vivem mais afegãos, tivesse mais sorte, pensa. “Mas não quero começar do zero, a vida é curta.” Fazel carrega um peso em cada palavra que articula, dizendo-as quase num sussurro. É raro vê-lo sorrir.

O jovem divide os dias entre as aulas de português e inglês, a procura de um trabalho e alguns concertos esporádicos. A viver num hostel no Marquês de Pombal e com o apoio do Estado que terminará em junho, o músico faz do quartel onde está o Largo Residências um local onde evoca a memória do país dele. Aproveita as salas livres para dar asas à imaginação, escrevendo poemas e tocando os instrumentos tradicionais.

De vez em quando, é possível ouvir Fazel nas salas vazias do Quartel de Santa Bárbara, onde ensaia. Foto: Inês Leote

Apesar de carregar também este peso, Ebrahim “sente-se um sortudo”. Quando chegou a Lisboa passou pela Fundação O Século e pelo Centro de Acolhimento para Refugiados (CPR) na Bobadela até que “um bom amigo português” lhe arranjou casa em Carcavelos e um emprego numa tipografia em Sintra ao fim de quatro meses em Lisboa.

“Não podia estar mais agradecido”, diz com um largo sorriso. Em Lisboa, encontrou pessoas de várias nacionalidades que se tornaram bons amigos, o acolheram e, assim, o jovem vai construindo o que considera ser já uma vida estável.

Estável, mas incompleta. “Ainda hoje, no meu trabalho, na tipografia, cortei-me. Estou distraído a pensar na minha família que ficou lá.” Ebrahim tem agora como objetivo trazer a família para Portugal. “Tenho falado com o CPR, quero-os comigo. Tenho feito tudo bem. Tenho um emprego, dou concertos, pago os meus impostos. Só me faltam eles.”

Lisboa quer ser mais uma casa para a música afegã

Os concertos que os dois têm dado em Lisboa e arredores não seriam possíveis sem a ajuda da Inside Music Lisboa – um grupo de pessoas que trabalham em diversas áreas e com várias nacionalidades e que uniu esforços, com o objetivo comum de apoiar este grupo de músicos afegãos a viver em Lisboa.

“Com a guerra no Afeganistão e o acolhimento de vários músicos em Lisboa, sentimos que tínhamos de fazer alguma coisa.” Maria Kopke é música e um dos membros deste grupo, que logo reconheceu que a área em que os afegãos mais tinham dificuldades era “na continuidade da sua formação e exercício profissional”. Foi assim que a Inside Music decidiu juntar os músicos afegãos e dar-lhes palco para que possam continuar a fazer o que mais gostam, ao mesmo tempo que arrecadam algum retorno financeiro.

A Inside Music Lisboa tem ajudado estes jovens e não calar a sua música. Foto: Inês Leote

Para além disso, estão a organizar uma angariação de fundos para a compra de instrumentos, produção e gravação em estúdio, agendamento de concertos e financiamento de projetos organizados pelos próprios músicos.

Em alguns dos concertos destes dois afegãos, Francisco Cabral, um músico português e um dos poucos grandes conhecedores do instrumento tabla, também participa. “Para mim é um orgulho poder participar nestes eventos culturais”, desabafa. Com formação em cosmologia e apaixonado pela cultura do Médio Oriente, o músico reconhece que fazer parte da divulgação da cultura afegã é uma missão, uma vez que sempre quis utilizar a música como veículo da “valorização da multiculturalidade”.

“Quando toco com o Ebrahim e o Fazel, mergulhamos num universo de vibrações em que nos encontramos na sensibilidade que é o caldo multicultural das músicas que eles tocam”, conta.

Um dos concertos em que Francisco Cabral tocou com Ebrahim e Fazel.

É neste caldo de diversidade que Fazel e Ebrahim têm honrado o país deles. E embora o presente ainda não tenha sorrido a Fazel, o afegão refugia-se na música que vê como um lugar de igualdade para todos, sem que poder algum diferencie raça, cor, religião ou cultura. “A música tem apenas sete notas, toda a gente a entende, é uma linguagem universal”, diz.

Uma linguagem apaziguadora para o inquieto Fazel e que vai dando a Ebrahim e às suas 72 delicadas cordas de santur ainda mais motivos para resistir.


* Daniela Oliveira nasceu no Porto, há 22 anos, mas a vontade de viver em Lisboa falou mais alto e há um ano mudou-se para a capital. Descobrir Lisboa e contar as suas histórias sempre foi um sonho. Estuda Ciências da Comunicação na Católica e está a fazer um estágio na Mensagem de Lisboa. Este artigo foi editado por Catarina Reis.


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1 Comentário

  1. Olá,
    Artigo muito interessante. Apesar de perceber muito pouco de música, gosto muito de conhecer estilos diferentes, de outros continentes. No artigo, fiquei sem perceber onde posso manter-me a par de novos concertos que venham a acontecer.
    A página facebook do Inside Music Lisboa parece estar desactualizada.
    Obrigado

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