A estátua de São Vicente em Alfama. Foto: Rita Ansome

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Os sinos da igreja de São Nicolau anunciam o meio-dia, as batidas da picareta de um funcionário da câmara martelam a calçada portuguesa, há o entra e sai apressado de clientes na agência de Santa Justa dos CTT. Ao fundo, um casal observa a miríade colorida da montra da Pollux. Tudo compõe a aguarela de uma típica manhã lisboeta.

Ninguém suspeita, nem o funcionário com a sua picareta nem os clientes do CTT e muito menos o casal diante da montra, que, há nove séculos, aquele pacato trecho da Baixa testemunhou o braço-de-ferro entre as forças religiosas da época, numa disputa pelas relíquias de São Vicente, então o santo mais venerado da Europa ocidental, extraviadas do Algarve para Lisboa por um grupo de lisboetas.

A figura de São Vicente numa .

São Vicente seria padroeiro de Lisboa e do Reino de Portugal e, e até hoje empresta as suas armas – o barco ladeado por dois corvos – à bandeira da cidade e aos demais símbolos da Câmara Municipal, do papel timbrado às tampas dos bueiros. Mas, ao longo dos tempos, viu a sua relevância em queda vertiginosa, paulatinamente substituído no coração e na devoção dos lisboetas pelo simpático Santo António – que muitos tomam por padroeiro da cidade.

Tanto que é bem provável que mais um aniversário de morte do santo – o 1719º – passe novamente despercebido para a maioria dos lisboetas neste dia 22 de janeiro. Ao contrário do lembradíssimo 13 de junho de Santo António, sempre celebrado efusivamente até à pandemia, e lamentado com a mesma intensidade durante a mesma, que forçou a interrupção dos festejos nos últimos dois anos.

No ano passado, para levantar um pouco o moral do santo que já teve dias – e séculos – melhores, o Museu de Lisboa organizou um tour na data de aniversário de morte do santo, na companhia da mediadora cultural do museu, Joana Olivença.

Um passeio por alguns pontos da cidade bastantes conhecidos pelos lisboetas, mas que raramente são associados a São Vicente. Mais do que um passeio, uma viagem no tempo e na história deste santo esquecido.

Do Algarve a Lisboa, escoltado por corvos

Um destes pontos – que não chega a ser turístico – é justamente o pequeno largo em frente a Pollux, na Rua dos Fanqueiros. Em 1173, quando as relíquias de São Vicente chegaram a Lisboa, foi aqui, onde hoje é a tradicional loja de artigos para decoração, restauração e afins que elas foram depositadas.

Pode parecer estranho pensar nos restos mortais de um santo entre liquidificadoras, formas para bolo, louças e varinhas mágicas, mas à época havia aqui a igreja de Santa Justa, desaparecida durante o terramoto de 1755. Um sítio importante a comunidade moçárabe lisboeta, os cristãos visigóticos que mesmo não convertidos ao islão adotaram ritos da cultura árabe, inclusive religiosos.

Os moçárabes têm papel de destaque na chegada de São Vicente a Lisboa. Reza a lenda que o paradeiro das relíquias do santo era conhecido apenas por dois velhos monges moçárabes. Ambos ainda jovens faziam parte de um grupo de cristãos capturados pelas tropas de Dom Afonso Henriques na Batalha de Ourique, no Alentejo, em 1139.

Reza a lenda que o paradeiro das relíquias do santo era conhecido apenas dois velhos monges moçárabes.

“Depois de passarem um período em Coimbra, estabeleceram-se em Lisboa, após a reconquista”, conta Joana. Os dois monges juravam que as relíquias estavam na Igreja dos Corvos, na região do promunturium sacrum, hoje Sagres. “A questão é que só os dois velhos moçárabes pareciam conhecer a localização exata”, explica a guia.

A história chegou aos ouvidos de Dom Afonso Henriques, devoto de São Vicente, padroeiro das batalhas e das vitórias. O primeiro rei de Portugal já havia consagrado ao santo a igreja de São Vicente, uma construção situada do lado de fora da muralha defendida pelos mouros, misto de acampamento, hospital e território sacro para sepultar os seus homens.

Isto cinco séculos antes de ser erguida a atual Igreja de São Vicente de Fora.

“Apesar da devoção, Dom Afonso Henriques falhou em encontrar as relíquias de São Vicente”, lembra Joana. “Acredita-se que São Vicente não queria ir para Braga ou Coimbra, para onde o rei iria levá-lo. Ou seja, não foi Lisboa que teria elegido o seu santo padroeiro, mas o contrário.”

Ainda hoje, a inconografia do santo – o barco ladeado pelos corvos – ilustram as marcas oficiais de Lisboa. Foto: Rita Ansone.

O certo é que os lisboetas moçárabes tiveram êxito onde o rei fracassara. E na calada da noite de 15 de setembro do ano da graça de 1173, navegaram silenciosamente por um braço do Tejo que seguia por onde hoje é a Rua do Ouro, na Baixa. Naquela madrugada, a embarcação escoltada pelos corvos aportou no cais que havia na atual Praça da Figueira e as relíquias do santo foram depositadas na Igreja de Santa Justa. E vem daí o símbolo que resta até hoje.

Uma mão lava a outra e as relíquias vão para a Sé

“Naquela época, possuir as relíquias de um santo era sinal de poder e de dinheiro”, reforça Joana Olivença. “Os fiéis acreditavam que tocar na relíquia de um mártir era como estabelecer um canal direto com Deus, o que era a garantia de prestígio, de doações e de riqueza para a igreja”, explica.

Sendo assim, naturalmente a notícia de que os moçárabes de Santa Justa estavam de posse das relíquias de São Vicente provocou um alvoroço entre as forças religiosas de Lisboa. Os monges da Igreja de São Vicente de Fora achavam-se herdeiros naturais da mesma, assim como o deão da Sé de Lisboa, Roberto. Além é claro, da comunidade moçárabe responsável pela descoberta.

Após uma disputa política e uma troca de favores entres os chefes religiosos, as relíquias do santo ficaram na Sé. Foto: Rita Ansone.

A contenda por pouco não acabou em revolta popular. Foi preciso a intervenção do fronteiro de estremadura, Gonçalo Viegas, o responsável pela segurança da região, que abandonou o seu posto de observação no Castelo de São Jorge para colocar ordem na Baixa, no mesmo largo da Pollux.

A decisão sobre o destino das relíquias de São Vicente, contudo, acabou por se dar pelas vias diplomáticas, com a oferta do deão Roberto ao reitor de Santa Justa, Munio, de uma posição proeminente na Sé de Lisboa. Uma mão lavada pela outra, o futuro padroeiro do reino e de Lisboa descansaria na monumental catedral ainda em construção.

O impressionante martírio do santo e os corvos

É ao pé da Sé de Lisboa, nas ruínas do Teatro Romano, que começa o passeio promovido pelo Museu de Lisboa. O local marca simbolicamente o martírio sofrido por São Vicente nas mãos dos romanos, em 22 de janeiro de 304, vítima da implacável perseguição imposta pelo imperador Diocleciano aos cristãos que se recusavam a negar sua fé em nome das práticas religiosas tradicionais no império.

Joana Olivença diante das colunas do Teatro Romano de Lisboa: ponto de partida para um passeio pela cidade de São Vicente. Foto: Rita Ansone.

Nascido provavelmente em Saragoça, em Espanha, Vicente foi capturado pelos romanos e levado a Valência. E o martírio do futuro santo diz muito sobre sua devoção pelos resistentes às provações da vida. São Vicente teria sofrido da tortura de sono ao desconjuntamento dos membros, bem como teve o corpo arranhado por luvas com garras de ferro e posteriormente colocado sobre brasas.

Martírio de São Vicente, Museu de Arte Antiga de Lisboa

Não satisfeitos, os romanos atiraram o corpo do santo para ser devorado pelos animais, dentre eles os corvos. Estranhamente, os pássaros renunciaram à sua característica necrófoga e passaram a defender os restos mortais de São Vicente dos demais predadores, no que foi considerado o seu primeiro milagre.

O segundo viria logo a seguir, quando os incrédulos soldados romanos atenderam às ordens do governador de Valência para amarrar o corpo de São Vicente à uma pesada pedra-de-mó e atirá-lo ao mar. Mal acreditaram quando, dias depois, São Vicente retornava à praia, livres das amarras e do peso.

“O martírio do santo foi tamanho que em alguns países ele é representado pela palmatória e pela pedra-de-mó”, explica Joana, em frente das colunas romanas do teatro lisboeta. “Só em Portugal a iconografia de São Vicente envolve a barca e os corvos”, ressalta.

Joana explica ainda que as relíquias do santo, protegidas num dos cofres do Tesouro da Sé, se restringem à mão direita e parte de um dos braços. Isto explica outras cidades também contarem com relíquias, como Paris, em França, e Bari, na Itália. “Conta a história que um monge espanhol a caminho de Jerusalém morreu na cidade italiana, deixando um dos braços do santo que levava em Bari, sendo este posteriormente repatriado à catedral valenciana”, explica Joana.

Em Lisboa, as relíquias só saem do Tesouro da Sé durante a missa que se realiza na catedral no dia do aniversário de morte de São Vicente, 22 de janeiro.

Superado pela “concorrência” de Santo António

O tour pela Lisboa de São Vicente passa pelo largo de Santo António. Mas não é por provocação. “Aqui havia a Porta de Ferro, uma das entradas da muralha de Lisboa. É um sítio que marca o início da reconquista que alçou São Vicente a padroeiro da cidade e do reino”, explica.

Não deixa de ser curioso, afinal, o martírio de São Vicente como padroeiro de Lisboa passa pelo prestígio de Santo António, que desde 1981 ocupa oficialmente o posto que antes pertencia ao mártir. “Foi a partir do Concílio Vaticano II que foram definidas as regras sobre padroeiros e seu culto. Em Lisboa, a decisão determinou que Santo António seria o padroeiro da cidade e São Vicente, o da diocese”, conta Joana.

Santo António hoje é o padroeiro de Lisboa e da nação portuguesa, postos antes ocupado por São Vicente. Foto: Rita Ansone.

A decisão confirma a queda de prestígio do santo que, nos anos 1930, já havia visto os bispos portugueses pedirem ao papa para que o concorrente se tornasse o padroeiro da nação portuguesa. “São Vicente foi perdendo importância a partir do século XVII para Nossa Senhora e outros santos, como São Jorge e São Francisco. A faceta casamenteira de Santo António ajudou-o a ser ainda mais popular”, explica.

Esquecido, São Vicente contempla a cidade da qual já foi padroeiro a partir das Portas do Sol, tendo como pano de fundo a igreja que leva o seu nome. Esculpida pelo artista Raul Xavier, a obra de arte foi instalada no miradouro em 1973. Com cerca de três metros, foi o último dos cinco modelos enviados para aprovação e teve como modelo não algum possível rosto conhecido do santo, mas o do filho do próprio escultor.

A estátua esculpida por Raul Xavier teve como modelo o filho do escultor. Foto: Rita Ansone.

É, São Vicente, não está mesmo fácil para ninguém. Mas como o nome do santo bem lembra, não se pode desistir diante das diversas provações da vida. E apesar de tudo – ou justamente por tudo – parabéns pelo seu dia.

* Artigo publicado originalmente a 22 de janeiro de 2022.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt

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1 Comentário

  1. Faço o comentário com todo o gosto:
    Dou os parabéns a quem teve esta iniciativa, através da qual vim aprender tanto sobre os dois padroeiros: São Vicente e Santo António. Que eles abençoem Lisboa e os seus habitantes. – 28.01.2022. – João Caniço.

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