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“Quem herda aos seus, não degenera”, repetia o velho Gastão Moreira, meu avô, com sua voz grave e o indicador em riste, como quem recita um mandamento. Uma frase que me vem à memória sempre que passeio pelo tempo através das antigas fotos do álbum de família, o registo em sépia de onde vim, de onde viemos todos desse clã, ao reconhecer os olhos do meu filho nos olhos do meu pai ainda criança, vestido de marinheiro-de-gola, num carnaval em preto e branco.
Mas não só. Ouço a voz do velho Gastão também ao andar por Lisboa.
Para um brasileiro, migrar para Portugal é folhear um antigo álbum de família.
Cada rua, cada rosto, cada palavra, o ancestral registo das ruas, rostos e palavras de um Brasil independente no papel e talvez no desejo, mas ainda umbilicalmente atado a Portugal. Atado aos seus.
Portugal e Brasil são parentes distantes, com visões de mundo distintas, mas ainda assim parentes, unidos por um passado em comum. É pouco provável que o meu filho veja o mundo com os olhos do meu pai, mesmo que ambos tenham – e a foto em preto e branco com as bordas roídas insiste em lembrar – os mesmos olhos.
Divergências entre os dois parentes sempre existiram, desde que o mais novo decidiu tornar-se independente. Não concordam inclusive sobre o responsável por isso tudo, Dom Pedro, primeiro no Brasil, quarto em Portugal. O facto de brasileiros e portugueses não se acertarem numa conta aritmética banal já anunciava o que viria pela frente.
É por isso que as celebrações do bicentenário da independência do Brasil parecem as tradicionais festas em família, aqueles encontros imbuídos das melhores intenções, mas que lá pelas tantas, temperado pelo piripiri das divergências geracionais, ideológicas e culturais, acabam por servir um prato a saber a antigos ressentimentos.
“Ô zuca, passa o leitão assado”, pede o tio. “Só se devolveres o meu ouro, tuga!”, provoca o sobrinho. A saia-justa deriva para um bate-boca, um tal de “Foi descobrimento! Foi invasão!”, até a velha tia esquecida no canto da mesa a ruminar uma coxa de galinha, sabiamente observar que os exaltados tio e sobrinho divergem e discutem sobre tudo não por serem diferentes, mas justamente por serem farinha do mesmo saco.
Quem herda aos seus, não degenera, reforçaria o velho Gastão.
O velho Gastão que também já quis ser independente. Ainda menino, no interior onde vivia, defendia uns trocados numa banca do jogo do bicho, anotando as apostas de quem sonhava enriquecer.
Sonhou com um burro? Aposta no três. Um elefante? Vinte e dois na cabeça! Sonhou com a sogra? É cobra! Anota aí cinco réis no nove, seu menino!
Certo dia, o menino Gastão anotou as apostas e esqueceu de entregar o talão ao dono da banca do bicho. No meio do caminho, havia outros meninos e uma bola. Daí, já viu.
Mas a extração correu alheia à brincadeira das crianças, apontou o número oito e o homem que havia sonhado com um corcunda e apostado no camelo, queria o seu prémio.
Um perigoso homem, com sonhos frustrados no peito e uma faca afiada na cintura.
Calhou ao meu avô fugir para salvar a própria pele da lâmina afiada. Fugiu como fugiram os portugueses com Napoleão no seu encalço.
Fugiu como eu mesmo fugi, ao deixar um Brasil inseguro para os meus filhos, um país que começava a abraçar um futuro sombrio, de sonhos tão frustrados como o do homem com a faca na cintura.
O meu avô refugiou-se na casa do irmão mais velho, em Olinda. Chamava-se Álvaro, tio do meu pai, também Álvaro, tio-avô portanto desse Álvaro aqui. Os nomes também se herdam. O velho Gastão apontava para mim e lembrava que os primogénitos entre os Moreiras eram batizados de Álvaro. Segundo a tradição e as contas dele, seria o décimo na família.
Há quem diga que tudo não passe de uma invenção do velho Gastão, mas gosto de pensar em ser Álvaro, o Décimo.
O certo é que o velho Gastão fugiu para a casa do irmão mais velho, que não via há um tempo. Pois parente é assim mesmo, diverge, fala mal um do outro, briga, jura de morte, mas na hora do aperto, sabe que só se pode contar com a família.
Foi o que fizeram os portugueses ao buscarem abrigo no Rio de Janeiro e o que fiz, quando aportei em Lisboa.
Uma Lisboa que me ensinou e ainda me ensina muito sobre quem sou. Afinal, migrar é uma experiência intensa e reveladora, mas há migrações e migrações. Um brasileiro ser imigrante nos Estados Unidos ou na Suíça é distinto de sê-lo em Portugal. A mesma diferença entre viver na casa de um estranho ou de um parente.
Mesmo que de um parente distante.
Um dia, o velho Gastão já adolescente deixou a casa do parente e voltou ao interior onde nasceu. Havia trabalho num armazém em Olinda e precisava recuperar o batistério, que à época fazia as vezes de certidão de nascimento, para provar que tinha idade.
Deparou-se foi com um padre a perder a memória, a criar galinhas no quintal da igreja e usar as folhas do imenso livro de registo para embrulhar os ovos que vendia aos párocos.
Coube ao jovem e diletante sacristão providenciar um batistério novo ao velho Gastão, com uma data de nascimento falsa, pois nem o meu avô e muito menos o esquecido padre se lembravam do ano de nascimento dele.
Concordaram em mil e novecentos, um número austero e redondo, preciso na sua grafia, impreciso no cerne documental.
Uma data que garantiu ao velho Gastão a idade mínima para ser contratado por um armazém, a promessa de independência financeira e de outras independências que viriam a ser conquistadas.
Mas ainda assim, uma data arbitrária escrita num papel, como o 7 de Setembro de 1822, igualmente a promessa da independência para um país e os seus filhos.
Estes tempos em Lisboa, porém, têm me ensinado que a independência do Brasil se traduz menos numa relação de não-dependência com Portugal e mais de interdependência entre os países.
Não apenas na perspetiva dos brasileiros, mas nos dois sentidos, pois é improvável achar que os portugueses também não se reconheçam no parente à sua frente.
Uma interdependência histórica, cultural e económica que não é um demérito ou sequer um problema para nenhuma das partes, mas a construção constante de uma nova ligação, costurada a partir do cordão umbilical trinchado há dois séculos, e pelo qual quem está na duas extremidades reciprocamente alimenta e é alimentado.
A certeza de que brasileiros e portugueses, como numa família, podem contar uns com os outros nos momentos difíceis e que certamente virão. Parentes que mesmo que discordem, briguem e fechem os olhos uns para os outros, ainda terão a velha foto em preto e branco e as bordas roídas pelo tempo a lembrá-los de que os olhos de um são os olhos do outro.
A lembrá-los de quem herda aos seus não degenera.
Como já dizia o velho Gastão.

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Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt
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