Estamos na Graça, território de Natália Correia, onde as crianças baloiçam num parque na rua que leva o nome da poeta. Logo à frente, o Botequim abre preguiçosamente as suas portas. O bar que foi uma das várias área de atuação desta mulher, o quartel general que ela manteve em sociedade com a amiga em tempo integral e amante em part time Isabel Meyrelles. É o ponto de partida nesta Lisboa que pode ser de alguma forma dividida entre a.N. e d.N. (antes e depois de Natália).

Mas é Filipa Martins quem se senta connosco neste dia. Ela (cronista da Mensagem) que descosturou a vida desta poeta, para depois cuidadosamente urdir numa biografia que já nasce definitiva. Uma tapeçaria chamada O Dever de Deslumbar (da editora Contraponto) e que se não tem mil e uma noites, chegou quase lá, com as suas setecentas páginas.

*Artigo publicado originalmente a 17 de março de 2023

Antiga carvoaria na Graça, prédio do Botequim foi escolhido com a ajuda de uma vidente. Foto: Inês Leote.

Um esforço por um bom motivo e em boa hora: para lembrar os 30 anos de ausência da poeta, feitos no 16 de março passado – e justamente no ano que marca o centenário de Natália Correia, a 13 de setembro. A vida e a morte da mulher que mais do que outra portuguesa do seu tempo – e quiçá de outros e deste tempo também – intensamente amou a vida, como se a morte não existisse.

A capa do livro, editado pela Contraponto, escrito por Filipa Martins

“Outras cento e quarenta páginas ficaram para trás. Era impossível sintetizar todas as dimensões da Natália, as várias áreas de atuação e de conhecimento, a sua vida pessoal marcante em menos do que isso. Mas também havia de ser um livro transportável”, brinca Filipa, enquanto autografa um exemplar de O Dever de Deslumbrar, sentada num dos bancos do largo em frente ao Convento da Graça.

Conspiração, revolução e boémia no Botequim

Filipa Martins fecha o livro em seu colo e começa a contar uma história, cada palavra no devido lugar, a narrativa um mosaico que a escritora habilmente constrói: era uma vez Natália Correia e Natália fez isso, e Natália era aquilo, e fez mais isso e era mais aquilo.

Como redentor consolo para um imigrante como aquele que escreve agora, também a autora confessa que conhecia pouco a respeito da biografada antes de enveredar por seis anos no universo dela e transformar-se numa exímia natalióloga. “Como a maioria das pessoas, sabia que Natália era uma personalidade do século vinte e as várias histórias do seu lado polémico e anedotário.” 

Uma perceção natural, segundo Filipa, levando-se em conta Natália Correia ser uma personagem que, vista de fora, superficialmente, daria uma ótima caricatura. “Só depois de conhecer a sua vida, percebi que era uma visão reduzida do real valor de uma mulher de exceção, cuja história confunde-se com a história de Portugal”, conta.

Confunde-se com a história de Portugal e, naturalmente, com a de Lisboa. 

Natália Correia
Natália Correia, poetisa e agent provocateur numa Lisboa sob o tempo do Estado Novo. Foto: Biblioteca e Arquivo Regional de Ponta Delgada.

O Botequim é um bom exemplo, nascido em 1971 com a pretensão de ser o “ponto nevrálgico da tertúlia lisboeta” em dias e, principalmente, nas noites conspiratórias pré 25 de Abril. Um “espaço que antecipasse um Portugal” do futuro, sítio de convívio de “afetuosidade, de inteligência e de crítica”, escreve Filipa no capítulo dedicado ao bar.

Apesar do modelo de negócio do Botequim nascer sob o signo de uma certa racionalidade, a escolha do local obedeceu a critérios metafísicos.

Filipa conta que Natália Correia guiou o seu Volkswagen por Lisboa – as “habilidades” da poeta no volante, um capítulo à parte – na companhia de uma vidente, “munida de um alguidar com água e um pêndulo”.

A intenção era percorrer as opções disponíveis no mercado imobiliário em Lisboa e verificar a energia dos espaços, a ideia de procurar um imóvel na companhia de uma sensitiva por si só, uma clarividente solução prescrita pela poeta para os dias de hoje – quando encontrar um apartamento em Lisboa parece possível apenas com o providencial auxílio do oculto.

O facto é que o pêndulo vibrou de forma diferente no alguidar com água diante do prédio onde o Botequim está até hoje, à época uma antiga carvoaria, “um lugar pequeno, lúgubre e sujo”, ainda entulhado de petróleo e carvão, o que na visão estratégica dos espíritos tanto do além como do capital, era a garantia de um preço acessível para dar o start no negócio.

A fotografia de Natália Correia ainda presente nas paredes do Botequim, bar que a poeta transformou em epicentro cultural de Lisboa. Foto: Inês Leote.

Natália e a amiga Isabel empreenderam uma reforma nada metafísica, decorando o bar ao estilo belle époque dos cafés parisienses, com cabalísticas treze poltronas em estofo vermelho, paredes revestidas em madeiras escuras e um piano, conduzido por Doutor Ávila. Ele, conhecido pela destreza nos dedos e uma fealdade notória, o que lhe rendeu a alcunha de “Frankstein Junior“.

Iniciava-se uma intensa década de atividade cultural e política no espaço. O Botequim como leitmotiv revolucionário antes de Abril (na visão de Graham Greene que por lá passou para dois dedos de conversa e alguns mais de uísque no copo) e Natália Correia uma espécie de nossa agente em Lisboa. O bar era o ponto obrigatório para “saber o que se passava em Portugal”.

Em O Dever de Deslumbrar, as aventuras e desventuras do Botequim percorrem uma centena de páginas, a extravagante liturgia das telúricas noites do bar como testemunha de um capítulo crucial da história portuguesa e do modus vivendi da intelligentsia lisboeta e, após a revolução, também gabinete paralelo onde “madrugada fora se improvisavam e desfaziam governos”.

O querubim e as estantes com livros e memorabília, lembranças do glamour dos tempos de Natália Correia á frete do Botequim. Foto: Inês Leote.

Um boémio ativismo político que se esvaiu com o tempo.

O Botequim de hoje, apesar do vinho e da boa ementa, da esplanada perfeita em dias soalheiros, pouco guardou dos anos Natália Correia. Assim como a decoração original, remanescente talvez no alpendre em estilo art nouveau a precisar de reparos, nos livros e memorabílias nas estantes e o par de querubins a observar o burburinho de um point lisboeta.

Filipa conta que Natália manteve-se à frente do Botequim até o início dos anos 80, já sem a amiga Isabel, que retornara a Paris. O acidente automobilístico com a poeta ao volante do seu Volkswagen debilitara a saúde do marido Alfredo Machado e, sem o seu braço direito, a eminência parda da gestão do negócio, não houve outra alternativa a não ser vender o bar.

Banquete em via pública e a escultura perdida

Alfredo Machado teve um papel de relevo no importante papel de Natália Correia como intelectual, diva e agent provocateur em Lisboa. Não só nos frenéticos anos do Botequim, mas bem antes, ao ser o mecenas do deslumbrante período onde o pensamento político, literário e estético lisboeta de certa forma gravitava na órbita da poeta.  

Era o tempo do apartamento na Rodrigues Sampaio, em frente ao Hotel Império, gerido pelo marido, que não mediu esforços e muito menos dinheiro para manter em funcionamento o “salão literário” capitaneado por Natália Correia, inspirado filosoficamente no Banquete de Platão, com direito a uma ementa nada epicurista, de fazer inveja aos comensais platónicos.

As páginas do livro relatam o intenso tráfego de empregados fardados em fila indiana em plena via, bandejas em punho, num luxuoso delivery entre o hotel e o apartamento onde o casal vivia de iguarias e garrafas de vinho e outras bebidas, uma espécie de avô rico e sofisticado do Uber Eats a alimentar os nababescos saraus patrocinados pela anfitriã.

A fachada do Hotel Britannia, onde antes funcionou o Hotel Império, que näo aguentou aos exageros do salão literário de Natália. Foto: Inês Leote.

Terceiro entre os quatro maridos de Natália Correia, Alfredo Machado dividiu três décadas de vida com a poeta, a relação mais longeva dela.

Um tempo a dois que não o livrou de certos rompantes de ciúme, como daquela vez que desembolsou uma pequena fortuna para adquirir uma escultura de Natália Correia esculpida, nua em pelo, em mármore. Esculpida, conta Filipa no livro, pelas mãos da futura sócia no Botequim, Isabel Meyrelles, à época um pouco mais do que apenas amiga, sugerindo que as mãos da escultora tocaram muito além da frieza do mármore.

Certo é que Alfredo Machado, consumido pelo ciúme do corpo da sua amada exposto como veio ao mundo, decidiu comprar a escultura.

Filipa Martins mergulhou seis anos no universo da poeta Natália Correia e o resultado é uma biografia que já nasce definitiva. Foto: Inês Leote.

A vultosa quantia, sugerida à amiga pela própria Natália Correia, foi suficiente para que Isabel mudasse para Paris e ainda pagasse os estudos na Escola Superior de Belas-Artes em Sorbonne. Após o investimento, o marido sentiu-se no direito de dar o fim que quisesse à peça e até hoje o destino da escultura segue indecifrável como a modelo que a inspirou.

A mão aberta do marido custou caro e o Hotel Império não suportou aos salões literários de Natália Correia, entrando em falência. O antigo Império cedeu lugar ao Hotel Britannia, que ainda preserva algumas das características arquitetónicas do antigo motor da máquina de fazer deslumbres da poeta.

Entre saraus poéticos e sessões na Assembleia

A poeta entrou na vida de Filipa Martins há seis anos, quando a escritora assinou o guião da série histórica 3 Mulheres, da RTP, que narrava o papel da editora Snu Abecassis, da jornalista Vera Lagoa e de Natália Correia no enfrentamento ao Estado Novo. “Foi dessa experiência que surgiu o convite para escrever a biografia”, conta.

O prédio da Sociedade de Belas-Artes: testemunha da acalorada disputa poética, com vitória dos surrealistas defendidos por Natália Correia. Foto: Inês Leote.

O mergulho de seis anos no espólio da poeta e de Alfredo Machado levaram Filipa a reconhecer em si um dos notórios perfis da sua biografada. 

 “Natália não primava pela organização e também não sou daquelas escritoras metódicas, que separam a pesquisa num post it. Fiquei a juntar tudo sobre a minha secretária ao ponto de quem entrasse no escritório não conseguir ver-me por trás das pilhas de coisas”, diz.

Do caos das pilhas sobre a secretária de Filipa fez-se uma biografia sólida, não apenas sobre a poeta, mas também de uma certa Lisboa de outrora, com suas virtudes e vicissitudes.  

Uma Lisboa onde a presença das mulheres nos cafés não era bem vista, o que nunca impediu a poeta de frequentá-los ativamente e politicamente. Passear pelas esplanadas do Versailles na República e d’A Brasileira do Chiado é um pouco como revisitar essa Lisboa de Natália, agora de braços abertos à companhia feminina.

O Dever de Deslumbrar também revela uma Lisboa onde as diatribes estéticas eram resolvidas não em posts mas em acalorados recitais, como o ocorrido na Sociedade Nacional de Belas-Artes, entre surrealistas e neorrealistas, embate conhecido como “O Teste”, com poemas das duas vertentes avaliados pela plateia e os aplausos a serem cronometrados. 

Não se sabia, porém, os autores dos mesmos, uma “prova cega”, portanto, como assinala Filipa. Mesmo sem se declarar surrealista, Natália Correia alinhou entre eles e os poemas de sua lavra garantiram os aplausos suficientes para a vitória sobre a equipe adversária, que contava com nomes como o de Sophia de Mello Breyner. 

Quem passar diante do prédio da Sociedade Nacional de Belas-Artes ainda pode ser capaz de ouvir os ecos do triunfo da poeta, na forma de uma fantasmagórica gargalhada.

O tour pela Lisboa de Natália Correia sugerido por Filipa Martins passa pela Assembleia da República, onde ela cumpriu mandato como deputada, eleita pela primeira vez em 1980, transformando em oficial uma trajetória política que Natália Correia exerceu de forma extra-oficial em toda a sua vida. 

A biografia conta de forma pormenorizada a rotina nada politicamente correta da poeta nas plenárias, frequentada por Natália Correia em regime part time, pois quase nunca acordava a tempo para o expediente matinal.

O que não a impediu de travar intensas disputas políticas, entre elas uma que envolveu a estatização do Teatro Dona Maria II, outra paragem da Lisboa de Natália Correia, uma transformação em empresa pública do teatro a qual a poeta se opunha, temendo que a mão do Estado voltasse a exercer uma certa censura.

A voz de Filipa Martins é cortada pela urgência do tempo, anunciada pelos sinos da igreja do Convento da Graça. O agradável passeio pelas alamedas de Natália Correia conhece não o fim, mas um fim possível – até mesmo porque, assim como o dilema da escritora, é impossível abraçar a grandeza da poeta e a sua relação com Lisboa nas cinco páginas que este texto daria. 

A sugestão para quem quer seguir viagem é embarcar no comboio de O Dever de Deslumbrar, seguro de Filipa Martins como a maquinista das centenas de carruagens que percorrem as paisagens belas e outras nem tão belas da vida de Natália Correia, a repetir insistente, como o som de uma locomotiva – e Natália fez isso, e Natália era aquilo, e fez mais isso e era mais aquilo.


Álvaro Filho

Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.

alvaro@amensagem.pt


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