Do cais de Porto Brandão, a vista sobre a Lisboa ocidental é extraordinária. O Tejo impõe uma distância que maquilha todas as imperfeições da cidade e o que sobra é o desenho do edificado pontuado por obras de regime: a Ponte 25 de Abril, o Palácio das Necessidades, o MAAT, o Mosteiro do Jerónimos, o Centro Cultural de Belém, a Torre de Belém e o Center for the Unknown (Fundação Champalimaud), num equilíbrio de tradição e contemporaneidade que resulta.
Sem sair do cais, se nos virarmos para a outra margem, o contraste é brutal. Não há distância que camufle a decadência urbana, nem se conta um monumento (1) ou edifício nobre, pois o único volume impressionante é o dos silos da Trafaria.
Porto Brandão, com o casario a ocupar um vale talhado na costeira de Almada e a desembocar numa pequena enseada, localizado onde a distância entre as margens é a menor, dista apenas dez minutos de barco da residência oficial do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e poderia ser um bairro feliz, mas acumula sinais óbvios de abandono e esquecimento.
São vários os edifícios devolutos, inclusive nas zonas mais nobres, como a praça diante da enseada ou o topo da arriba poente, onde se construiu o lazareto de Lisboa (1869), um edifício com uma planta curiosa que foi usado para a quarentena de pessoas e mercadorias que chegavam de barco, hoje abandonado.
Quem se decidir a subir o vale a pé ou de bicicleta, ao ritmo que permite a observação, confirmará esta primeira impressão. Com o declínio da indústria de conserva e tanoaria, Porto Brandão viria a tornar-se um bairro residencial de gente remediada e um lugar de passagem para quase toda a gente.
Não sendo uma povoação de barracas, as fachadas descuidadas, as casas vazias e o parque automóvel envelhecido são sinais da falta de dinheiro e investimento. Há por lá placas de um grupo de columbofilia e de uma sociedade de recreio e beneficência, e se é verdade que têm alguma fama as “carvoadas”, não será grande o proveito, pois não se vê uma movida gastronómica, nem serviços básicos como um mercado, nem azáfama naquelas ruas.
Naturalmente, o potencial urbanístico e a proximidade a Lisboa alimentam sonhos de reabilitação, já vertidos em prosa do Plano Director Municipal de Almada. A qualquer pessoa que por ali passe ocorrerá uma ideia – genial, claro – para salvar o lugar e deve ser assim há muitos anos, mas depois nada acontece. Porto Brandão é o exemplo acabado do “lugar expectante” (1).
Afeiçoei-me a Porto Brandão por gostar tanto da travessia matinal diária de barco, desde Belém, e ainda da descida de bicicleta embalada ao fim da tarde, desde o Monte da Caparica até ao cais.
E é no cenário de Porto Brandão que faço ressoar as notícias sobre a pobreza que têm vindo a surgir com maior frequência, como preâmbulo da nova crise anunciada. Sobre os pobres todos falam: Marcelo, a Igreja, a oposição, Isabel Jonet, académicos, jornalistas, colunistas, até eu; todos, menos o pobre.
O pobre presta testemunhos de pobre e é um maná para o fotojornalismo, mas não se quer saber o que pensa, sendo a Mensagem de Lisboa uma excepção, pois deu uma coluna a Jorge Costa, que partilhou a sua experiência de “sem abrigo”.
Refém do assistencialismo da Igreja, da propaganda do Governo, de alguma auto-exclusão, da segregação geográfica e de classe crescentes, de um insuportável paternalismo insultuoso de populistas e outros oportunistas que lhe nega discernimento e bom senso, e ainda ultrapassado pela luta identitária que tem vindo a substituir a luta de classes por outros conflitos, o pobre perdeu a aura que o neo-realismo lhe trouxe; há um orgulho gay e as minorias étnicas ganham muito justamente protagonismo, mas não temos um orgulho de pobre, sobretudo numa cultura que cada vez mais valoriza as ideias do liberalismo e programas como o Shark Tank e os concursos de talento cultivam a ideia de que o empreendedorismo e o sucesso estão ao alcance de todos.
Poucos dias depois de ter decidido escrever sobre Porto Brandão e a pobreza, meti conversa no cais com um ciclista que vira na descida. Homem de meia-idade, articulado e simpático, contou-me que está a recuperar uma casa em Porto Brandão, agora que o divórcio o libertou da capital. Pareceu-me uma grande notícia para Porto Brandão, sinal de uma reabilitação orgânica do edificado e da chegada de população mais nova.
Mas a meio da conversa aprendi que o lazareto de Lisboa foi comprado por investidores chineses que contam transformá-lo num hotel. E isso bastou para projectar sobre Porto Brandão a sombra da gentrificação, que levaria à progressiva expulsão da sua gente.
Tem de haver outro destino e remato como a minha solução, também genial, claro. Talvez o futuro de Porto Brandão passe pelo reforço da ligação fluvial a Lisboa e pela transformação das muitas casas devolutas nas tão almejadas habitações para os estudantes das duas instituições universitárias do Monte da Caparica (3), ali tão perto.
(1) A Torre Velha (monumento nacional), bem próxima, não se vê do cais.
(3) Declaração de interesses: sou professor nas duas.

Vasco M. Barreto
É biólogo. Nasceu em Lisboa, cresceu nos Olivais Sul durante os anos 70 e 80, viveu uns anos no Lumiar e depois seguiu para Paris, onde se doutorou, e a seguir Nova Iorque. É casado e tem duas filhas. Árvores plantadas. Livro a caminho.

Lia Ferreira
Nasceu em Lisboa em 1974 e ali cresceu e fez a sua formação artística. É pintora, ilustradora e retratista. Mãe de 4 filhas, leva a vida na Arte.
Agradecemos a rectificação de «Monte da Caparica» para «Monte de Caparica».