Do pontal de Cacilhas, Maria observa Almada, o austero farol vermelho e o céu cinza como companhias, a monocromia de uma típica tarde invernosa cortada por um vistoso arco-íris. A fotografia, para além do registo da personagem desta matéria, o retrato da semiologia de uma vida, da mulher que apesar dos tempos sombrios para o jornalismo ainda é capaz de perceber as cores de uma profissão.
Maria João Morais é a diretora, jornalista, fotógrafa e ainda a responsável por administrar o site e as redes sociais do Almadense, o jornal que há três anos alterou o cenário jornalístico em Almada, um município que apesar dos cerca de 177 mil habitantes espalhados pelos 70 mil quilómetros quadrados, à época não tinha um órgão de comunicação social a dedicar-se exclusivamente em contar as suas histórias.
Uma experiência tão bem sucedida que inspirou outras iniciativas, como a do recente Almada Online, a funcionar desde agosto do ano passado.

Uma experiência bem sucedida, mas nada fácil de executar, que a jornalista de 39 anos, nascida em Bragança e formada em Coimbra, abraçou desde que se mudou para Almada em 2017, após uma temporada de dez anos em Madrid, onde trabalhou como correspondente para jornais portugueses e também em media espanhóis.
“Quando cheguei a Almada, queria informar-me sobre o que acontecia na cidade, mas percebi que não havia onde”.
Maria João Morais
Da inquietação da jornalista nasceu o Almadense, em janeiro de 2020, portanto sob o signo da pandemia, um período dramático que confirmou a importância da presença de um meio de comunicação local para uma comunidade. “Os jornais nacionais não costumam dar notícias sobre Almada e informações relevantes, como os locais onde fazer os testes na cidade, os almadenses só encontravam no Almadense”, recorda-se.
O gradual reconhecimento da comunidade sobre o papel do jornal nestes três anos de trabalho, porém, ainda não se traduz numa estabilidade financeira para o Almadense, exigindo de Maria João a habilidade de um funambulista para se equilibrar sobre o fio da navalha contábil. “A imprensa de uma forma geral está em crise e os media locais, em especial, também”, reconhece.
Uma crise que Maria João credita principalmente ao modelo de negócio dos jornais, mas não necessariamente em relação aos consumidores de informação. “As pessoas gostam de ler, de se informar, percebo isso todos os dias. O jornalismo passa por dificuldades em encontrar uma forma de se financiar, é verdade, mas é uma crise do jornalismo e não uma crise de leitores, que ainda procuram, valorizam e leem uma boa história.”
Histórias que os outros jornais não contam
A procura por uma boa história é o que move a diretora, jornalista e fotógrafa do Almadense, que só não acumula também a função de motorista do jornal pois as coberturas fazem-se de transporte público, bicicleta ou a pé, como no percurso entre o pontal de Cacilhas e a redação, em Almada Velha, quando Maria João, misto de repórter e guia, indicava no caminho os vestígios de antigas e futuras matérias.

“Aquele é o mercado municipal de Almada, eternamente à espera de reforma”, aponta a jornalista em direção ao prédio de formato circular e ares de quem já viveu melhores dias. “É preciso voltar ao assunto”, diz a si mesma, numa anotação mental da lista de histórias por retomar, antes de seguir a jornada, a passada firme, habituada a vencer a caminhada em aclive até à própria redação sem perder o fôlego.
De repente, uma sirene ecoa alto por entre os prédios.
“É a sirene dos bombeiros”, explica. “Toca sempre ao meio-dia e às cinco da tarde, provavelmente a marcar a mudança de turno na corporação. Um incómodo para os vizinhos e um inconveniente ainda maior para os refugiados da guerra da Ucrânia em Almada, ainda traumatizados pelo som das sirenes anti ataque aéreo”, conta, lembrando da cobertura do Almadense na chegada dos ucranianos a Almada.
A promenade segue sempre rua acima, costurando observações variadas, sobre o Cine Incrível já não ser um cinema e sim um polo cultural ou a recente transformação da Rua Capitão Leitão, bem em frente ao prédio da Câmara Municipal, em via pedonal, o fecho de alguns comércios nos últimos meses e generalidades sobre a atividade económica almadense.
“Gosto de contar as histórias que não são contadas pelos outros jornais”, explica Maria. “Principalmente, as que diferem da imagem dos media sobre Almada, geralmente retratada como uma cidade complicada”, continua.
A visão generosa sobre o sítio que elegeu como lar não afasta o radar sobre as lutas importantes. “É importante dar voz às queixas das pessoas, claro, mas sempre com o objetivo de melhorar”, reforça.
Nas edições digitais do Almadense estão, por exemplo, projetos interessantes promovidos por associações e moradores, experiências de vida e a divulgação de assuntos de interesse público. “A ideia é cobrir o que os outros jornais não cobrem, pois para temas como os crimes, por exemplo, já há o Correio da Manhã”, ilustra.
Um exemplo recente do papel do Almadense como um meio local foi a luta para retomar as carreiras 3703 e 3710 que ligavam respetivamente Almada a Costa da Caprica ao Areeiro, em Lisboa, desativadas após a criação da Carris Metropolitana.
“Era um tema pouco importante para os outros jornais, mas que mexeu com a comunidade. Houve uma mobilização e frequentemente escrevia para a Câmara de Lisboa a questionar, até o regresso ser anunciado”, conta.
“E tem tanto assim para escrever sobre Almada?”
Além da questão dos transportes públicos, outro tema omnipresente é o da habitação e a subida dos preços das rendas, um problema que há tempo une as duas margens do Tejo. Mas nem sempre foi assim. Em 2017, quando Maria João decidiu voltar de Espanha para Portugal, Almada acabou por ser escolhida justamente por representar uma alternativa viável aos altos valores praticados em Lisboa.

“Em 2017, fazia mais sentido pensar em rendas menores na Margem Sul, hoje nem tanto”, conta a jornalista. “Nestes cinco anos, o valor do apartamento onde vivo duplicou”, revela, sobre o T2 em Almada Velha, com direito a uma privilegiada vista da varanda para o Tejo, onde à noite Maria descontrai da rotina pesada acompanhando o vai e vem dos cacilheiros, iluminados por Lisboa, a cortarem o leito negro do rio.

Privilegiada também é a distância do apartamento à redação do Almadense, a menos de cinco minutos da casa da jornalista, situado no coworking Quarteirão das Artes. A sala de 24 metros quadrados é um “luxo” que o Almadense, desde sempre regido pela realidade do sistema de home office, permitiu-se após o acerto de alguns apoios publicitários.
A mudança visou comportar a chegada de colaboradores eventuais, a última delas, em regime part time, uma pequena vitória para Maria João, após trabalhar nos dois primeiros anos no esquema “exército de uma mulher só”. Estar num ecossistema de coworking também garante a sinergia com os novos vizinhos e a possibilidade de novos negócios.
Os bons ventos que sopram contradizem a ideia geral de que Almada não comportava um jornal dedicado exclusivamente aos seus assuntos.
“Quando comentava que pensava em abrir um jornal, as pessoas da cidade diziam: e tens o que escrever?”, lembra a jornalista. “É justamente o contrário, há tantas histórias para se contar e essa era a grande frustração em ter sido sempre um jornal de uma pessoa só.”
Maria João Morais
A noite cai e mais uma jornada se encerra. A manhã seguinte começa logo cedo com mais uma história para ser contada, uma entrevista sobre o turismo em Almada.
Entre um turno e outro de trabalho, porém, a jornalista mais almadense de Trás-os-Montes sabe que poderá contar com um dos privilégios da Margem Sul e observar da sua varanda, atenta como um vigilante farol, o navegar dos cacilheiros pelo Tejo, iluminados pelas luzes de Lisboa.

Álvaro Filho
Jornalista e escritor brasileiro, 50 anos, há sete em Lisboa. Foi repórter, colunista e editor no Jornal do Commercio, correspondente da Folha de S. Paulo, comentador desportivo no SporTV e na rádio CBN, além de escrever para O Corvo e o Diário de Notícias. Cobriu Mundiais, Olimpíadas, eleições, protestos – num projeto de “mobile journalism” chamado Repórtatil – e, agora, chegou a vez de cobrir e, principalmente, descobrir Lisboa.
✉ alvaro@amensagem.pt

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