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No gabinete do arquiteto André Caiado, numa esquina da Av. Marginal quase a chegar ao Estoril, há um quadro de luz com uma planta da Av. da Liberdade. Iluminados, estão os seus projectos de remodelação – desde o Edifício do Diário de Notícias às lojas da Prada, Armani, Louis Vuitton, Miu Miu, ou a nova loja da Massimo Dutti…

O mote para esta entrevista foi o projeto do Quarteirão da Suíça, que não entra no quadro de luz, mas é a última grande obra do arquiteto. Começa agora a levantar-se o véu (isto é, os andaimes) de uma remodelação que vai mudar a face do Rossio e da Praça da Figueira.

André Caiado diz não que pode falar do projeto, porque ainda está em venda – apesar de já se saber que a Zara vai ali instalar uma das suas maiores lojas da Europa. Mas o arquiteto pode contar a sua visão para a Baixa, que inclui ruas cobertas e organização centralizada do comércio.

André Caiado nasceu no Alentejo, em 1967, fez o mestrado em Madrid, em Informática para Arquitectura, Urbanismo e Gestão Imobiliária e doutorou-se em tecnologias para edifícios inteligentes – tendo trabalhando como arquiteto na IBM Espanha. Em 1996, fundou a Contacto Atlântico, empresa que desenvolveu até hoje, e onde continua a ter um papel muito ativo e participante – chega até a atender o telefone. Dá conferências e aulas de arquitetura. Em 2021, o Edifício DN ganhou dois Prémios de Reabilitação Urbana, o nacional e o da cidade de Lisboa.  

O arquitecto André Caiado no seu atelier. Foto: Inês Leote

Está a transformar um dos grandes quarteirões de Lisboa, entre o Rossio e a Praça da Figueira. Como seria para si uma Baixa de Lisboa fantástica?
Seria uma Baixa onde teriam deixado cobrir uma das artérias principais. A Rua Augusta estaria semi-coberta como há em Paris ou em Milão… Porque às vezes também chove aqui (sorrisos). Onde a escolha de quem pode operar cada um dos comércios seria feita em relação com o seu envolvente próximo. Não poderíamos ter, por absurdo, que é sempre o mais fácil, livraria ao lado de livraria. Poderíamos ter uma livraria, outra coisa qualquer, no próximo quarteirão mais outra livraria e obviamente não poderíamos ter só um tipo de comércio. Eu penso que esse caminho seria o mais eficaz.

Aquilo que hoje se faz nos centros comerciais, gerir o que lá entra e onde fica.
Ora aí está. Se num centro comercial, que é uma entidade nova e diferente, há um conhecimento científico que leva a uma determinada escolha do que para lá vai, então na cidade, ao ar livre, seria fabuloso podermos fazer a mesma coisa. Aplicarmos os mesmos conceitos e regras. Teríamos uma cidade ainda mais fantástica do que temos.

Outra questão é dar qualidade ao utilizador da cidade. Por exemplo, se eu puder trocar os caixilhos de madeira por vidro duplo, isolar as paredes, vou ter aquela família a passar menos calor no verão, mas principalmente menos frio no inverno. As crianças têm melhores resultados escolares e os avós vivem mais anos. E é assustador sabermos que isto é possível fazer e que não está a ser feito. Quando há falta, não cortamos na comida, cortamos no aquecimento. 

E isso diz especialmente respeito ao centro de Lisboa? 
Há muito centro de Lisboa onde vivem pessoas com recursos limitados. Esses é que precisam de ser apoiados. Cada vez que há uma intervenção num edifício ele melhora brutalmente em termos tecnológicos. Fica mais adaptado a viver-se bem, passa a consumir menos energia. No planeta, 35 % da energia consumida é nos edifícios.

Eu consigo fazer todos os projetos para que ao final do ano tenham zero consumo de energia. E o custo adicional é qualquer coisa entre 4 e 7,5%. Não é muito dinheiro. 

Precisamente, mas a maior parte da reabilitação que se faz hoje no centro de Lisboa não é para quem lá vive, é para quem vem morar de fora. Essa gentrificação acelerada é boa para a cidade? 
Fui imigrante durante 5 anos, tenho extremo respeito pelas pessoas que não querem o que têm à mão e vão à procura de qualquer coisa mais. Esta questão que estamos a abordar é uma questão muito antiga. É nova para Lisboa, mas já aconteceu há muitas décadas nas grandes cidades, em Paris, em Londres, etc.

Primeiro, o centro foi abandonado. Porque a qualidade de vida no centro era um desastre, por causa da poluição, pela incapacidade de resolver o problema do tráfego, porque as casas estavam a ficar em mau estado, porque os esgotos não funcionavam… Então a cidadania começa a afastar-se do centro da cidade e esse centro fica perdido.

Depois há um conjunto de regras que se começam a aplicar globalmente… deixamos de ter um aquecimento a carvão que deixavam as nossas cidades com uma nuvem, uma calote cinzenta…

Isso aconteceu em Lisboa?
Também, sim. Em Lisboa era menos violento que nas cidades mais frias, porque tínhamos só uma lareirazita que normalmente era a chaminé da cozinha e ficávamos todos, como dizia a minha avó, à chaminé, a aquecer. Aliás, no Alentejo, de onde eu sou, vivia-se dentro da chaminé, era grande e ficávamos ali dentro com uma braseira no centro e as cadeirinhas de verga pequeninas e todos sentados ali, ao borralho.

A cidade depois vai melhorando os sistemas de esgotos, deixamos de ter um caneiro no centro da rua, começa a haver esgoto… que se tinha perdido, porque os romanos já o faziam há 2 mil anos. Começa a haver água potável para todos os edifícios. E começa a haver outra vez uma vontade de voltar para o centro da cidade.

E o centro da cidade, já nessa altura, tinha a ópera e palácios e já tinha o hospital. É um sítio interessante para viver. E voltam os que tinham mais recursos porque queriam estar junto ao poder.

Em Lisboa estamos em contraciclo. Quando o sistema começa a voltar a equilibrar-se já estamos numa era com uma estratégia de atração de imigração. A pirâmide etária na Europa é invertida, vamos ter problemas gravíssimos, rapidamente a imensa população da Europa vai ter mais de 55 anos e os países, alguns procuram atrair jovens e outros procuram atrair pessoas que já fizeram o seu caminho e criação de riqueza e que agora querem desfrutar da sua reforma. 

“O arquiteto pode ser um instrumento de adaptação da cidade para a criação de uma maior qualidade de vida”, diz André Caiado. Foto: Inês Leote

E Lisboa é fantástica…

Sim, e Portugal oferece condições fabulosas que não conseguimos destruir: uma meteorologia fantástica, o vento dominante ser de noroeste e portanto a maior parte do ar que circula por Portugal vir do mar, limpo e impecável.

Depois é um povo amável, extremamente aberto em termos culturais, religiosos, até tenta falar a língua dos vizinhos todos. E um nível de violência reduzidíssimo que me espanta como é que existe.

Isto de facto tem condições para atrair quem já tem recursos e quer procurar um sítio tranquilo. Ou seja, foi a perceção desta situação associada a uma estratégia política que é uma criação de vistos e residentes não habituais…

E já devíamos saber que isso ia focar-se sobretudo no centro de Lisboa.

Os melhores locais, porque estamos a falar de pessoas competentes e inteligentes. Agora, se isso é bom? Eu acho que é bom porque essas pessoas vão trazer riqueza para um país que, infelizmente, não é assim tão rico e vão proporcionar àqueles que cá vivem uma melhoria global da cidadania.

Se há uma solução para garantir que no centro da cidade possamos ter pessoas com recursos limitados? Há experiências urbanísticas que eu por princípio político não defenderia, mas que me fazem sentido. 

E qual o seu papel, o do arquiteto, nisso tudo?
O arquiteto pode ser um instrumento de adaptação da cidade para a criação de uma maior qualidade de vida. Após uma intervenção/reabilitação num apartamento, por exemplo, vive-se melhor. A cidade precisa de uma gestão e o arquiteto é uma pequena parte dessa gestão. 

O que é para si a cidade ideal?

É onde as pessoas podem sentir-se seguras, e o ambiente em redor é agradável e facilita a criação de relações pessoais e a execução das atividades profissionais de cada um. Onde à mão está tudo aquilo de que precisamos.

A cidade é uma coisa extraordinária, é talvez o maior sucesso da humanidade…. Mas é altamente restritiva. O percurso entre a minha casa e o meu trabalho é determinado pelas ruas… A cidade quer-se densa onde as pessoas vivem próximas uma das outras, para estarem próximas do museu, do aeroporto, da escola, do hospital, etc.

É arquiteto e não falou de prédios…
Os edifícios são secundários à cidade. A cidade começa com o utilizador e com o espaço. Podemos trocar edifícios, mas temos dificuldade em trocar o percurso que fazemos de um ponto A a um ponto B. Uma cidade que funciona deve ter metro e tudo deve estar localizado a menos de 200 metros da entrada do metro.

André Caiado: “O Marquês de Pombal era tão poderoso que permitiu aos urbanistas desenhar um modelo que nada mais era que uma interpretação da malha romana.” Foto: Inês Leote

A liberdade das pessoas nas cidades…

A cidade continua a ser um dos maiores e mais restritivos fatores da felicidade dos humanos. O maior ditador da minha vida é a pessoa que desenhou a casa onde eu vivo. Porque dita o percurso que eu faço todas as manhãs da minha cama até ao duche. 

O urbanista, ou a cidade orgânica que se desenvolve, criam restrições às quais nos vemos obrigados a adaptar. Não conseguimos atravessar paredes.

Nas grandes megalópoles há uma parte substancial da população que passa pelo menos 2 horas por dia em transportes para chegar ao seu posto de trabalho. É importante perceber que a qualidade de vida é inerente à cidade pela positiva ou pela negativa. 

E em Lisboa? 

Em Lisboa, temos uma cidade que começa por ser uma orgânica e que depois começa a ser planeada, mas aos solavancos. O primeiro desenvolvimento urbano foi feito face aos poderes da cidade: a malha chega até à quinta de Dom qualquer coisa. Um indivíduo tão poderoso que não era possível ao urbanismo opor-se. Isso poderia pôr em risco quem o fizesse, à sua continuidade… enquanto ser humano vivo.

É por isso que Lisboa não tem grandes avenidas como Madrid ou como Paris?

Os reis, eu diria, eram medricas ou desinteressados. O Marquês de Pombal, pelo contrário, era tão poderoso que aqueles que se atravessaram no seu caminho foram esmagados. Aí fizeram-se ruas com largura razoável. Permitiu aos urbanistas desenhar um modelo que nada mais era que uma interpretação da malha romana. E que funcionou perfeitamente.

Faz falta hoje nas nossas cidades quem tenha esse poder? Ou seria hoje mais perigoso?

Faz falta, mas é fundamental que esse poder tenha uma data de validade. O poder deve ser atribuído de uma forma muito eficaz e com um nível de intervenção elevadíssimo.

Ao fim de um determinado tempo (eu diria anos, nunca uma década), esse poder acaba e essa pessoa não mais pode ter esse poder. Tem que se dedicar a outra coisa. Tenho que me tornar de novo um cidadão como todos os outros.

“Um presidente da Câmara não tem quase nenhum poder de intervenção, porque as cidades da Europa são regidas por planos diretores que determinam os usos. A única solução seria alterar o plano diretor e alterar os usos da cidade”, diz André Caiado. Foto: Inês Leote

Por absurdo que pareça, um presidente da Câmara Municipal de Lisboa não tem grande poder de intervenção naqueles que são os usos da sua cidade…

Não tem quase nenhum poder de intervenção, porque as cidades da Europa são regidas por planos diretores que determinam os usos. A única solução seria alterar o plano diretor e alterar os usos da cidade.

Mais micro?
Sim, mais micro. É possível fazê-lo.

Há exemplos?
Sim. A Praça do Comércio. A maioria dos reis viviam na praça onde tinham debaixo de olho os dois negócios mais importantes do país: o comércio e os estaleiros navais. Diz o ditado que “o olhar do dono engorda o gado”. Mas o poder é uma máquina que se auto-alimenta e que vai crescendo. A praça é ocupada em contínuo pela administração.

Não seria de todo incorreto criar regras que determinassem que o Terreiro do Paço deveria ser o lugar por excelência para o comércio de usufruto da cidadania atual. Até seria desenvolvido um plano urbanístico que poderia chegar ao ponto de determinar qual o tipo de atividade possível em cada um daqueles espaços.

Não vemos muito isso… exceto talvez precisamente na Praça do Comércio… 

O que vemos é a cidade a autorregular-se. Com o passar do tempo vimos os bancos desaparecer da Avenida da Liberdade. E o aparecimento de lojas de comércio de roupa, um negócio de alto rendimento. Isto acontece lentamente, numa cidade madura, desenvolvida, do mundo ocidental. Mas temos exemplos em mundos mais jovens em que há o conceito de placemaking. Criar o conjunto de coisas necessárias para dar a qualidade de vida à cidade.

Em Lisboa temos o exemplo Príncipe Real, onde um investidor decidiu adquirir tudo aquilo que estava degradado e à venda e recuperar. Com estratégia. Não escolheu ter o máximo rendimento imediato, escolheu ter um mix (restauração, comércio, lojas fora do comum), criando assim um ambiente que leva o cidadão a querer ir passear e ir conhecer.

Construir uma loja de chocolates não é tão rentável como ter um McDonalds.

Uma loja de gelados, aliás, é um muito bom exemplo para mostrar o que é uma cidade: quase todos nós sabemos qual é a nossa gelataria preferida. E deslocamo-nos propositadamente a essa gelataria. É a criação de um destino.

Portanto está a dar um exemplo em que há um investidor que tem mais poder na cidade que a própria Câmara…

O Plano Diretor Municipal é o que dirige o município. A função do presidente é cumprir este plano. 

Mas por absurdo, imaginemos o Rossio, lá está, se o mercado assim o indicasse poderia ser só Zaras ou só hotéis, ou só outra coisa qualquer.

Poderia. E isso é um problema.

Isso é um problema. Porque a lei não permite haja esse controlo.

Eu já ouvi um vereador de uma grande câmara de Portugal, que não Lisboa, dizer  “Eu não quero mais hotéis no centro histórico”. Tem ele direito a dizê-lo? Sim. Tem ele uma ferramenta jurídica para evitar que aconteça? Não. Ainda assim, poderá provavelmente conseguir o seu objetivo, mas isso já são outros quinhentos.

Com política, por exemplo, não é? Que perspectivas tem para o futuro de Lisboa? Está otimista?

É uma das poucas cidades à beira mar, capital de um país na Europa, tem uma qualidade de vida única. Oferece, portanto, a quem vem para a cidade essas benesses.

Vamos sofrer todos alguma coisa com a crise económica, com a inflação e com os resultados da guerra na Ucrânia, mas, curiosamente, e para benefício de Portugal e é um benefício triste, Portugal está a tornar-se refúgio de investimento.

Além disso as pessoas lembram-se que a Segunda Grande Guerra não chegou cá… E, portanto, Portugal provavelmente vai passar por estas dificuldades de uma forma menos violenta que outros.

No Princípe Real há um pensamento estratégico, defende André Caiado. Foto: Rita Ansone

Mas depois, por outro lado, Lisboa será vítima disso, de si própria, do seu sucesso.

Sim, acabamos sempre aí. A cidade está a recuperar-se, a ganhar vida ao longo do rio, em quase toda a sua extensão. E quanto a isto há que tirar o chapéu às várias entidades envolvidas e às várias vereações na Câmara ao longo dos últimos 20 anos. Isso faz todo o sentido.

Os projetos do Metro de Lisboa vão melhorar claramente a qualidade de vida. Vai-se fechar a linha circular, isto são melhorias fantásticas para a cidade de Lisboa.

Tenho expectativa de que se acabe com o monopólio das travessias do rio por parte de uma só empresa. Na minha lista de desejos caberia isso, para que fosse possível colar cada vez mais Almada a Lisboa de muitas maneiras.

Vejo a cidade a atrair cada vez mais jovens internacionais, mais estudantes, porque o nosso sistema universitário é excelente.

Cada vez há mais novas formas de viver que vão provavelmente densificar a cidade, também haveria uma expectativa de uma certa boa vontade em permitir novas formas de viver, mais denso. E deixaria um grande desafio, não só para a cidade de Lisboa, para todos os portugueses: a gestão de urbanismo é de 1954, por favor, escrevam outro, já passaram 80 anos quase.

O que é que isso quer dizer?

Vou contar isto em forma de parábola: se eu tiver regras razoáveis o meu povo pode cumprir, se eu fizer regras que o meu povo não pode cumprir então a responsabilidade não é do meu povo, é minha. É um pensamento de Antoine de Saint-Exupéry num livro chamado Cidadela.

Em países pobres (sorriso), como a Holanda, nos pisos 0 dos edifícios de habitação é obrigatório termos apartamentos desenhados para pessoas com problemas de mobilidade, a necessidade de usar uma cadeira de rodas. Esses apartamentos têm de ser desenhados de forma a que eu possa com uma cadeira de rodas chegar à casa de banho e à cozinha e à sala e ao quarto.

Em países ricos como Portugal, todos os apartamentos têm que ser acessíveis. Esse adicional de área implica um acréscimo de mais de 13% no preço de cada apartamento. Depois temos que o maior custo do desenvolvimento da cidade é o tempo das aprovações dos municípios, sistemas que funcionam muito mal e que não se conseguem resolver.

Quanto tempo?

Tenho visto de tudo, desde 10 meses até 3 anos. Este problema existe em França, em Itália, em Espanha, Inglaterra, etc.

Isso é certamente importante, mas estamos num ponto em que provavelmente não chega resolver dessa forma. Ou seja, como é que aumentamos os usos da cidade e prevenimos alguma gentrificação? Para que Lisboa seja mais diversa, mais interessante, para que a Baixa por exemplo não esteja só com turistas, que Alfama não esteja só com airbnb…

A resposta é não, não podemos, porque isto é um Estado de Direito, não podemos fazer essas coisas… Mas até eu que normalmente sou hiper a favor de deixar o mercado trabalhar, no urbanismo é a única área em que acho que alguma regulação poderia fazer sentido.

Dou um exemplo: num edifício com 10 apartamentos e um bocado de terra à frente vivem 9 famílias de classe média e uma família de recursos muito debilitados. Mas os meus filhos jogam à bola e os filhos da família com recursos muito limitados também. Depois vêm todos para minha casa lanchar, e eu percebo que o menino filho da família com muitas dificuldades comeu muito mais do que aquilo que seria habitual. E com algum cuidado percebo que naquele momento quer a mãe dele quer o pai dele não têm trabalho. E penso “bem, não preciso mas enquanto ele não arranja trabalho eu vou arranjar um motorista” e o meu vizinho que estava a pensar se arranjava alguém que o ajudasse a limpar a casa porque vive sozinho contrata a mãe e a família consegue dar de comer ao Pedro.

Se eu como urbanista e arquiteto decidir fazer um prédio para famílias com dificuldades e fizer aquilo que se chama, e muito bem, um gueto, quando a família da mãe e do pai do Pedro não tiverem o que comer, não há ninguém para os ajudar a ganhar dinheiro suficiente para dar de comer ao Pedro…

E é aí que eu vou contra os meus princípios de deixar o mercado e a economia funcionar para dizer que na cidade, sim, na cidade algumas vezes faz sentido regular. E eu penso que este exemplo é muito ilustrativo daquilo que se pode fazer.

Citando uma americana, Hillary Cinton, “é preciso uma aldeia”…

É verdade, não há qualquer dúvida… E vale a pena dizer que a cidade é a coisa mais importante que a humanidade tem.

É aqui que há espaço para que poucos trabalhem gerando a comida de muitos e com isso produz o ócio. Que pode ser a mãe de todos os males, mas também a criação de tempo para pintar, para esculpir, para desenhar, para sonhar, para compor uma música, para desenvolver um conceito científico e para fazer a humanidade andar para a frente. É na cidade que acontece o desenvolvimento.

YouTube video
O vídeo de apresentação do quarteirão da Suíça. Vídeo:

Uma cidade que deixa o quarteirão da Suíça no Rossio chegar ao ponto a que chegou merece a história que tem?

É um caso paradigmático de Lisboa. Durante demasiado tempo, mais de 45 anos, não se conseguiu fazer nada relevante ali. O promotor que decidiu desenvolver o quarteirão, na minha opinião e na opinião dele, não sabia muito bem onde se estava a meter. Foi um ato de coragem mas também de não perceber qual era a dimensão das dificuldades em que podia estar a envolver-se.

Estamos a falar de quê?

Estamos a falar de toda uma estrutura social que é avessa à mudança. Uma cidade não viva é uma cidade que se desfaz. Uma casa inutilizada degrada-se mais depressa do que uma casa usada.

É importante que as entidades licenciadoras nas cidades percebam que, dentro de determinados limites, que são muito claros, vale a pena apoiar a reabilitação versus criar barreiras que a tornam tão difícil que ninguém opta por desenvolver a cidade.

É essa a sua experiência?

É. As situações às vezes são constrangedoras. As regras estão distantes das necessidades da cidadania e da cidade em si e portanto não se reabilita porque não se encontra um caminho económico viável para cumprir com as regras existentes.

O arquiteto André Caiado, responsável pela remodelação do quarteirão da Suíça. Foto: Inês Leote

No caso do quarteirão do Rossio ou da esquina, do outro lado, que também reabilitou, essas regras não impediram nada…

Tivemos a sorte de encontrar na Direção Geral do Património Cultural pessoas que percebem que vale a pena reabilitar a cidade e proporcionar a criação de nova vida para os edifícios versus uma situação na qual as dificuldades podem chegar a ser tantas que não há espaço para reabilitar e as coisas caem.

Muitas vezes isso expressa-se naquilo a que os arquitetos chamam fachadismo… Qual é o interesse disso?

Essa estratégia funcionou em Portugal até aos anos 1990. Tem uma vantagem de velocidade, é mais barato e cria edifícios que não vão cair com um terramoto como o que destruiu Lisboa em 1775. Agora, há edifícios que têm valor e devem ser mantidos na íntegra. Se nós mantivermos os melhores exemplos de uma determinada tecnologia construtiva como a gaiola pombalina, de uma determinada estratégia de acabamentos como os azulejos… uma determinada solução de pintura nas paredes e nos tetos, mantendo os melhores exemplos… não vejo que seja necessário manter todos os exemplos corriqueiros.

Mas muitas intervenções devem ser feitas na nova cidade em construção e não pelo meio da antiga cidade consolidada. Faz-me sentido que o Bairro Alto tenha uma determinada entidade, a Madragoa, Alfama e Baixa Pombalina. Assim podemos ter uma cidade que vai continuar caracterizada.

Mas deixo aqui um desafio: devíamos ter uma zona da cidade onde se pudesse construir tudo aquilo que a engenharia da tecnologia permitisse. Não me incomodaria nada que Lisboa batesse o Dubai no edifício mais alto do mundo e que tivesse 10 uns ao lado dos outros, uma zona da cidade onde se permite fazer em vertical.

Por exemplo nas traseiras da Portugália?

Não, não na Baixa ou nas traseiras da Portugália, também não seria a minha escolha

André Caiado admite que o Rossio e a Praça da Figueira “são dois dos elementos chave da imagem da baixa pombalina. O que acontece nestes dois espaços é definidor da cidade.” Foto: Inês Leote

O que é que a Baixa tem que é tão fantástico?

Uma entidade e uma unidade. É uma entidade diversa do resto, uma luz que Portugal tem, uma zona plana onde é fácil deslocarmo-nos e uma quantidade de objetos estéticos interessantes, que fazem a diferença.

A intervenção horrorosa, criticadíssima, considerada monstruosa, do senhor Eiffel em Lisboa, o elevador de Santa Justa, é um dos objetos mais visitados. As coisas têm que ter alguma ponderação, não podemos limitar tudo, mas…

Se hoje alguém fizesse aquele pilar na rua do Carmo… seria supercriticado…

Hoje não seria possível. Há coisas que foram feitas no passado que hoje não seria de forma alguma possível fazer.

De certa forma, o futuro da Baixa será influenciado por aquilo que vai acontecer no Rossio e Praça da Figueira, ou não?

São dois dos elementos chave da imagem da Baixa Pombalina. O que acontece nestes dois espaços é definidor da cidade. Nos últimos 15 anos tem havido uma fortíssima reabilitação destas duas praças. São edifícios muito interessantes em termos de produção imobiliária. O município apercebeu-se desta necessidade de reabilitar. Tivemos uma atividade positiva das forças políticas envolvidas no sentido da reabilitação.

O Quarteirão da Suíça, já sem andaimes. Foto: Inês Leote

É um desafio para si como arquiteto de um dos mais importantes quarteirões da cidade?

Este é um local único. Que não se repete. De grande responsabilidade, mas que abordámos com grande tranquilidade. Com extrema visibilidade poderíamos ter oposição que levaria a uma situação municipal diferente.

Aqui foi o hipódromo romano, o Hospital de Todos os Santos, foi redistribuído o território conforme o terramoto, construídos 7 edifícios que deram início a uma unificação aos poucos. Era uma tristeza olhar para o quarteirão desde 1970 e tal. Sempre a degradar-se e sempre a perder-se. Já se via o rés do chão. 

Houve notícias de que a Zara tinha comprado a maior parte do edifício. Não faz parte da sua função definir o uso de um edifício destes quando o reabilita?

Não, infelizmente. Gostaria de ter esse poder, mas é importante perceber que a Baixa Pombalina permite o uso de habitação, escritórios, comércio, serviços, turismo.

Há quanto tempo não vive ninguém naquele quarteirão?

Nos anos 1980 já estavam encerradas umas pensões de má fama.

Fazia sentido ter algum espaço de habitação ali, em plena Baixa?

Faz todo o sentido ter habitação na Baixa. A cidade deve ser uma mistura de usos. O comércio de proximidade. O piso ao nível da terra pelo menos é quase sempre dedicado a comércio e retalho porque é imbatível o que se pode retirar de mais valia. Mas isso não passa pelos arquitetos.

O que está a acontecer agora é que o pequeno comércio que dava alguma característica à cidade desaparece…

O mercado permite alguma manutenção de algum comércio local específico como produto único. Mas na realidade a globalização traz-nos marcas internacionais com margens muito elevadas, poder económico muito elevado, capacidade económica muito elevada e que muito rapidamente vão atrás de uma antiga leitaria, manteigaria, aquelas coisas mais típicas, ourivesarias inclusive. 

É como uma tendência sem solução, é terrível.

O mercado internacional demonstra-nos que há algum espaço para o comércio local de boa qualidade e original. Mas não permite a não implantação do sistema planetário de luxo ou de marcas, porque têm mais recursos.

A loja da Prada, na Av. da Liberdade, projeto de André Caiado.

Em Paris, a câmara trespassou 6 mil lojas em Paris que estavam em risco e fez um concurso em que os usos eram controlados. Não podia haver marcas internacionais a alugar aquelas lojas.

É possível. Existe uma ferramenta para essa situação: a Câmara pode sempre pelo mesmo valor ficar com uma transação imobiliária entre duas partes privadas. Faz-me todo o sentido.

As Câmaras de Lisboa e do Porto têm bastante dinheiro (devido às taxas urbanísticas dos licenciamentos dos últimos 4 ou 5 anos) e podem de facto fazer isso. Acho que pode ser uma garantia interessante. Mas depois a decisão é discriminatória. Não é aleatória, é por escolha.

Acha que Lisboa está um pouco distorcida? As lojas que estão na Avenida da Liberdade não fariam mais sentido no Chiado e as lojas do Chiado não fariam mais sentido na Baixa? 

Teve a ver com o custo de oportunidade. A loja de maior luxo em Lisboa era o Rosa & Teixeira. Quando chegam as outras lojas querem colocar-se nas redondezas. A Dior só chega no fim, porque são os mais caros de todos. Mas para as primeiras, onde havia espaço era na Avenida da Liberdade.

A Rua do Ouro era pequena. A Augusta tinha os edifícios degradados. Foi assim que se foi consolidando a Liberdade. Mesmo assim com dificuldades. Foi preciso que todos fizéssemos um bocadinho de esforço.

O edifício do DN, remodelado em apartmentos. Foto: DR

Foi responsável pela remodelação do Edifício do Diário de Notícias – onde trabalhei mais de dez anos. O que é que representaria para a cidade ter-lhe dado outro uso sem ser o privado?

Sim, poderia por exemplo ter sido um museu do jornalismo e eu veria isso com bons olhos. 

Além do quarteirão da Suíça, de que não pode falar muito, recentemente remodelou a esquina do que é hoje a Calzedonia, e a Espingardaria. 

Sim, na esquina com mais tráfego pedonal em Portugal. Aí durante muitos anos esteve uma loja da Portugal Telecom, e antes tinha existido naquele sítio um café moderno, chamava-se Le Cafe de la Gare, em francês. Era da classe média-alta da cidade de Lisboa – e tinha uma fotografia da cidade de Paris. O comboio era um objeto altamente tecnológico. E esse café à frente da estação era um café muito avançado. Tinha uma pala art deco, e nós aí tivemos uma sorte incrível: encontrámos os desenhos da pala e em conversa com o chefe de direção da DGPC propusemos a hipótese de recuperar e refazer a pala que está lá hoje.

Nesse edifício recuperámos o exterior, reposicionámos o pátio interior do edifício que estava cheio e perdia-se a ventilação e a iluminação, fizemos a manutenção dos sobrados em madeiras, dos vários elementos pombalinos.

Quais? 

A arquitetura pombalina tem um sistema de pré fabricação não só de cantarias mas também dos elementos de madeira. Um sistema que permitisse que o edifício suportasse ações de vibração, um sismo. Era construída uma gaiola que foi inspirada naquilo que se fazia no norte da europa.

As nossas cruzes de Santo André, a forma de construir fazia com que o edifício conseguisse suportar algum impacto com bastante eficácia dos movimentos. As cantarias que eram pré fabricadas estavam agarradas às vigas de madeira com chumbadores, chamam-se chumbadores porque eram furos que se faziam na pedra e depois eram postos cravos, o nome dos pregos da época, metia-se o prego dentro do buraco do chumbador e era cheio com chumbo, daí chumbador.

Portanto, agarrava-se a ombreira duma porta ao pilar de madeira e às vigas de madeira da estrutura que era toda ela soldada. Os primeiros edifícios pombalinos são construídos quase como cascos de navios, com encaixes e com pernos de madeira que atravessavam os extremos das várias vigas e dos vários pilares e dão muita garantia.

Num edifício pombalino que não tenha sofrido alterações nos pisos inferiores eu estaria com bastante tranquilidade num terramoto com dimensão até do terramoto de 1755.

A loja da Calzedonia, no edifício recuperado, com a nova pala. Foto: DR

Quando diz que não tenha sofrido alterações

Porque a maioria desses edifícios nos pisos 0 e rés do chão, ao ter comércio foram adaptados às suas necessidades. O edifício foi brutalmente alterado e vai cair, literalmente vai cair.

Há uma equipa do Instituto Superior Técnico a fazer avaliação sísmica global dos edifícios: se eu quiser, na minha casinha no terceiro andar de um edifício pombalino tirar uma parede para ficar com uma sala maior, tenho de fazer uma avaliação global sísmica do edifício e provavelmente vou ter de produzir um reforço estrutural no terceiro, no segundo, no primeiro, no rés do chão e nas fundações.

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Catarina Carvalho

Jornalista desde as teclas da máquina de escrever do avô, agora com 51 anos está a fazer o projeto que melhor representa o que defende no jornalismo: histórias e pessoas. Lidera redações há 20 anos – Sábado, DN, Diário Económico, Notícias Magazine, Evasões, Volta ao Mundo… – e segue os media internacionais, fazendo parte do board do World Editors Forum. Nada lhe dá mais gozo que contar as histórias da sua rua, em Lisboa.
catarina.carvalho@amensagem.pt

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