Não sou desagradecido, se ele vier pelo passeio oposto, atravessarei sempre a rua, fazendo questão em me cruzar com Cristiano Ronaldo. E olhem que sou tímido, sobretudo com aqueles que admiro.

Uma vez, representava o meu jornal num encontro em Cartagena, na Colômbia, e passei horas com Gabriel García Márquez. E não tenho nenhuma foto dos dois, sós e juntos. Eram muitos diretores, ibéricos e ibero-americanos, houve foto em conjunto, uns sentados com ele e uma fila de pé, onde eu estava. Esticando-me, até podia ter posto a mão no ombro dele.

Não o fiz, mas aí não foi por timidez, foi mesmo por delicadeza.

Essa foto em conjunto tenho. Mas os outros jornalistas têm foto particular, tipo “yo y Gabo”. Algumas feitas por mim, os colegas abusaram da minha disponibilidade, do único que não estava na fila para o beija-foto. Ainda não havia selfies e muitos estendiam-me a máquina fotográfica para a “sua” foto com o escritor. Depois ofereciam-se para a “minha”. Eu disse sempre que não.

Amo Gabriel García Márquez desde que chegou uma fábrica de gelo a Macondo, exposta numa tenda de ciganos. Uma vez também chegou uma tenda pobre à minha aldeia que se chamava São Paulo. Era um bairro de Luanda – e ali morreu a tenda e o circo. O meu pai comprou a bicicleta do chimpanzé, amarela, e ofereceu-ma pelos meus cinco anos. Recusei-a. Houve consternação lá em casa, mas não quis partilhar um selim com a única parte do chimpanzé que eu detestava.

Com a fábrica de gelo, García Márquez escreveu Cem Anos de Solidão e também aquela reportagem, na província de Antioquia, sobre o deslizamento de terras que, enquanto enterrava pessoas, “crepitava como um aparelho de rádio mal sintonizado”.

Lá está, sobre a bicicleta do chimpanzé, assunto que repito de crónica em crónica, nunca ninguém me pediu uma foto, juntos.

Daí o meu pudor em sugerir alguma cumplicidade com alguém por quem tenho uma admiração arrebatada. Da única vez que ouvi Georges Brassens foi numa pequena sala, em Paris. Quando ele cantou Les Copains d’abord – aconteceu com as outras canções, mas com essa fiz finca-pé – não bati palmas. Quem era eu para me intrometer?

Se ao menos o meu único encontro com Gabriel García Márquez não fosse numa cerimónia oficial… Por acaso eu tinha uma coisa para lhe dizer, de igual para igual, de mim, homem muito errado, sobre um erro dele. Uma vez ele escreveu uma reportagem sobre a minha terra, Luanda, e a chegada dos cubanos, na independência angolana. Começou o texto a olhar pela janela do avião a aterrar e da minha cidade escreveu: “Parece um casco vazio.”

Eu tinha tanto para dizer a García Márquez.

Falava-lhe da Dona Antónia Van Dúnem, a da festa dos seus 100 que fez, há dias, e das tragédias e glórias à sua volta. Do meu pai, que podia ser Buendia. Do que me ensinou o campo dos Coqueiros de essencial: somos iguais, basta olhar. E do que concluí sobre isso: abençoados os que, sendo nós iguais, são tão bons que nos deixam os olhos esbugalhados de admiração.

“Lá em baixo da janela do avião não era um casco vazio, era Macondo”, diria eu, que sou de Luanda, a Gabriel García Márquez, que é de Aracataca, filhos de maravilhas.

Tivesse eu podido dizer-lhe isto, gostava de ter uma foto com ele, eu e ele, comigo a olhar a câmara.

Se um dia, mesmos a muitos amanhãs de hoje, o Cristiano Ronaldo vier pelo passeio oposto, atravessarei sempre a rua, fazendo questão em me cruzar com ele. Talvez eu não diga nada, mas ele terá um sorriso de agradecido.

Quando ele tinha um terço da minha idade fomos vizinhos. Ele jogava nos juvenis do Sporting e morava numa pensão na Duque de Loulé. Ao fim da tarde, depois dos treinos, o miúdo vinha dominar a bola, mais e mais, frente ao jardim do Diário de Notícias, onde eu trabalhava.

Falhei, não vi as ganas que ali estavam todos os dias, nem adivinhei o prazer que me viriam a dar tanto querer, trabalho e talento dele.

Quando eu tenho quase o dobro da idade dele, lamento não ter sido tão presciente, então, fim da década de 90, para o aconselhar, hoje, 2022: tenho quase a certeza de que é melhor, para que se produzam grandes alegrias minhas por estes dias, que ele não passe todos os 90 minutos a jogar. Tenho quase a certeza de que ele pensa o contrário.

Onde não entra nenhum quase, disso tenho a certeza absolutíssima é que no deve e haver: ele deu-me muito mais. Daí que atravessarei sempre a rua para o fazer saber.

Ferreira Fernandes

Nasceu em 1948 em Luanda. Jornalista – um ponto é tudo.

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