Neste artigo:
1 - Densidade que aquece
2 - Há ilhas de calor urbano, mas também há ilhas de frescura
3 - 50 metros quadrados de verde para fazer a temperatura descer 1ºC
4 - Na resposta ao calor, árvores, sim; relvados, não
5 - Onde estão as árvores em Lisboa?
6 - Plantar árvores na Baixa para reduzir o desconforto?
7 - Responder às alterações climáticas: que árvores, que medidas?
No verão, o calor é uma das maiores ameaças no interior dos edifícios e das casas, mas também nas ruas. No espaço público, defendem especialistas, uma das respostas de Lisboa pode e deve passar por ter mais árvores. Zonas como a Baixa quase não têm árvores e quem por lá passa em dias de calor “assa ao sol”.
Podem os espaços verdes arrefecer a cidade? A questão foi o ponto de partida para um trabalho de investigação que levou Cláudia Reis a analisar o impacto de dois jardins da cidade na temperatura das ruas em redor.
Para este estudo, a investigadora no Zephyrus – unidade de investigação em alterações climáticas e sistemas ambientais da Universidade de Lisboa – escolheu dois espaços verdes no centro da cidade: o Jardim Gulbenkian, nas Avenidas Novas, e o Jardim Fernando Pessa, na Av. de Roma/Areeiro.
A sombra, concluiu, “é de facto o mais importante”.
Densidade que aquece… e mata
A densidade de construção que distingue a cidade do campo reflete-se na temperatura das ruas. No espaço urbano, dominam os solos impermeabilizados e os edifícios acumulam energia e diminuem a circulação de ar.
“Temos fluxos de energia que são muito diferentes dos do campo”, explica António Lopes, professor associado no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT) e coordenador do Zephyrus.
O especialista em climatologia urbana explica que a ameaça do calor nas cidades vem de três frentes: as ondas de calor, a subida dos valores médios de temperatura e o efeito ilha de calor urbano. Este último diz respeito à diferença positiva de temperatura que se verifica entre o meio urbano e o meio não urbano. “São locais da cidade que, por causa da grande densidade urbana, pela falta de vegetação e ventilação, acabam por ficar mais aquecidos do que fora da cidade”.


No caso de Lisboa, “não existe uma ilha de calor, existe uma espécie de arquipélago”. “Sobrepondo-se estes três [fatores], as cidades são [os locais] mais vulneráveis. Há determinadas alturas em que vamos ter muito mais mortalidade pelo calor do que tivemos agora”, diz António, lembrando as mais recentes ondas de calor e o seu efeito na mortalidade em Portugal.

Em agosto de 2003, uma onda de calor matou cerca de duas mil pessoas em Portugal. Dez anos depois, o excesso de mortalidade atribuído às altas temperaturas era estimado em mais de 1600. Em 2018, os termómetros de Lisboa marcaram 44ºC e, segundo resumo climatológico do IPMA, o valor médio da temperatura máxima do ar no país em agosto foi o mais alto desde 1931.
Esta semana, entre 11 e 17 de julho, estão a registar-se valores extremos de temperatura em Portugal Continental. E Lisboa não é exceção à onda de calor.
Neste inverno, o território à volta de Lisboa encontrava-se em situação de seca severa. Em 2019, o município reconheceu oficialmente a emergência climática e em virtude das alterações climáticas, é esperada uma intensificação de fenómenos climáticos extremos, bem como a continuação do aumento médio das temperaturas.

Em Lisboa, o Plano Geral de Drenagem e as bacias de retenção instaladas em espaços verdes procuram dar resposta a futuras situações de cheia e a substituição de relvados por prados de sequeiro diminui as necessidades de água para rega.
A resposta às vagas de frio e ondas de calor está no combate à pobreza energética e na reabilitação dos edifícios, promovendo o conforto térmico. Mas porque a vida nas cidades acontece fora de portas, também as ruas devem procurar adaptar-se.
Há ilhas de calor urbano, mas também há ilhas de frescura
Ao nível da rua, as formas que a cidade toma têm impacto na temperatura. É na zona dos Restauradores, junto à baixa da cidade, e no Parque das Nações que as ilhas de calor urbano apresentam maior intensidade em Lisboa. É esta a conclusão de um trabalho de investigação que juntou António Lopes e Cláudia Reis, entre outros investigadores, e que resultou na publicação do relatório Ondas de Calor Lisboa 2020, a pedido da Câmara Municipal de Lisboa.
Em Lisboa, as diferenças na temperatura motivadas pelo efeito ilha de calor urbano situam-se entre os 2ºC e os 3ºC, mas, diz o coordenador da unidade de investigação em alterações climáticas, nalguns locais chegam a verificar-se diferenças de 11ºC relativamente aos valores registados no aeroporto. Tem tudo a ver com a densidade de construção, a largura das ruas, a presença de vegetação e até os materiais e cores dos edifícios. Para combater as altas temperaturas, as fachadas devem apresentar cores claras, já que estas permitem “maior reflexão e não vão absorver tanto” a radiação solar, explica Cláudia Reis.


Por cá, o efeito ilha de calor urbano é medido sempre em comparação com os valores registados pela estação meteorológica situada no aeroporto – é a estação referência. À volta, explica António Lopes, “há pouco edificado” e, como tal, esta “comporta-se mais como uma estação rural do que como uma estação urbana”.
No Parque das Nações, “sobretudo nas avenidas principais”, avança António Lopes, “a carga térmica é tremenda”. A culpa pode estar no planeamento urbano da zona nas duas últimas décadas. “A Expo foi inicialmente planeada para combater o calor que esperavam naquele verão. Todos os pavilhões tinham uma separação de 20 ou 30 metros entre eles, para as brisas penetrarem e refrescarem o espaço. Sabiam que se construíssem demasiado junto ao rio, as brisas iam ficar tapadas”.
Apesar de ser uma das freguesias da cidade com maior densidade de árvores de arruamento, a densidade aumentou nos últimos anos. “Como se tapou muita da ventilação, o que se mostra é que as árvores não chegam para tudo”.
Contrariamente ao que é normalmente verificado noutras cidades, a maior intensidade do efeito ilha de calor urbano em Lisboa não se dá durante a noite, mas “ao fim da tarde”. “Andamos a tentar descobrir porquê”, conta António.
Apesar de tudo, a cidade está “numa posição muito favorável”, por se encontrar “perto do oceano e ter o vento de norte”, o que contribui para a dissipação do calor. O vento, diz Cláudia Reis, é “fundamental” para a formação do “arquipélago” de ilhas de calor urbano em Lisboa. “Quando temos ventos de norte e noroeste, nunca chegam ao centro da cidade e à zona da Baixa e da frente ribeirinha e Parque das Nações”, esclarece.
Se é verdade que o ambiente construído em alguns espaços da cidade propicia a existência de ilhas de calor, também é verdade que há espaços que possibilitam ilhas de frescura. É a diferença, negativa, de temperatura entre jardins e estruturas verdes da cidade e outros pontos de medição.


Cláudia testou o potencial de arrefecimento dos espaços verdes em Lisboa. Utilizando como referência a estação meteorológica do IGOT, na Cidade Universitária, analisou a variação da temperatura no Jardim Gulbenkian, através da instalação de aparelhos de medição da temperatura em vários pontos do jardim e fora deste.
Na Avenida Miguel Bombarda, foram feitas várias medições, “para ver até onde ia o efeito [do jardim]”. “Se tivermos uma diferença em que o interior do parque está mais quente do que a área envolvente, aí não é uma ilha de frescura, mas se o interior estiver mais fresco do que a área envolvente, temos aí uma ilha de frescura e há algum efeito de arrefecimento proporcionado por aquele espaço verde”.

No estudo, Cláudia constatou que “quanto maior a densidade da vegetação, mais reduzida é a temperatura do ar” e que no verão, 74% das anomalias na variação da temperatura do ar ocorrem devido à presença de vegetação – enquanto que no inverno este valor chega aos 83%.
50 metros quadrados de verde para fazer a temperatura descer 1ºC
Para além do potencial de arrefecimento que os espaços verdes da cidade representam, o estudo traça também uma relação entre as áreas com menos vegetação e as ilhas de calor urbano. “As áreas com menos vegetação e, assim, com menos potencial de arrefecimento”, nomeadamente a frente ribeirinha, a baixa lisboeta e o Parque das Nações, “correspondem às áreas onde se verificam as maiores intensidades do efeito ilha de calor”.
Na sua investigação, Cláudia concluiu que não só os espaços verdes têm o potencial de reduzir a temperatura nas cidades, contribuindo para a melhoria dos microclimas urbanos e a atenuação do efeito ilha de calor urbano, como calculou a área mínima capaz de alcançar um efeito considerável. Para atingir uma redução da temperatura do ar de 1ºC, é necessária uma cobertura vegetal com 50 metros quadrados de área.
Esta redução da temperatura do ar através de estruturas verdes com uma área considerável, como é o caso do Jardim Gulbenkian, tem um alcance “limitado” na zona envolvente. No caso desta estrutura verde da cidade, Cláudia não encontrou efeitos da redução da temperatura do ar “a mais de 200 metros”. Mas, à escala humana, mesmo um espaço verde com 50 metros quadrados tem “reflexos positivos no conforto térmico humano, contribuindo para cidades mais saudáveis e resilientes”, lê-se no documento, publicado em 2019.
“Aquela velha ideia de que Monsanto é o pulmão de Lisboa é verdade, mas não arrefece a cidade, não serve a cidade nesse sentido”
ANTÓNIO LOPES


António Lopes, que também assina o estudo realizado no Jardim Gulbenkian, não desvaloriza a importância das grandes estruturas verdes da cidade, mas aponta para uma medida de ação climática mais determinante: “é preciso pôr muitos espaços verdes e muitas árvores nas ruas”. “Ter um parque da dimensão da Gulbenkian é muito importante naquela rua à volta, mas não muito mais para além do próprio parque. Aquela velha ideia de que Monsanto é o pulmão de Lisboa é verdade, mas não arrefece a cidade, não serve a cidade nesse sentido”.
O efeito sente-se mais em dias de céu limpo. “Se estivermos debaixo de uma árvore, vai estar muito mais fresco do que ao sol, mas se estivermos num dia nublado, chuvoso, as diferenças são quase nulas”, explica o investigador.
Na resposta ao calor, árvores, sim; relvados, não

As árvores podem não chegar para tudo, mas são elementos chave para a ação climática das cidades e para ajudar com o desconforto térmico nos dias mais quentes do ano. Uma simples árvore na rua pode fazer a diferença no conforto térmico das pessoas que se deslocam pela cidade.
No Jardim da Gulbenkian, caracterizado pela vegetação diversa e frondosa, o efeito ilha de frescura resultou num decréscimo médio da temperatura de 2,2ºC, em dias com nebulosidade moderada a forte, face aos valores registados na estação meteorológica do IGOT.

No entanto, no mesmo ano da experiência do Jardim Gulbenkian, Cláudia Reis decidiu testar o impacto de um jardim com características distintas – o Jardim Fernando Pessa, de pequena dimensão. Desta vez, o foco da análise foi para o relvado e o resultado foi esclarecedor: “nos relvados, não temos quase efeito de arrefecimento”.
Lê-se, entre as conclusões do estudo, que “espaços verdes compostos maioritária ou exclusivamente por relva (…) absorvem mais energia em comparação à vegetação” e “não são tão eficazes no arrefecimento da temperatura do ar”. Os relvados podem mesmo “estar mais quentes que os seus arredores” e foi precisamente isso que a sua experiência comprovou no relvado do jardim da freguesia do Areeiro.
No decorrer da sua investigação, Cláudia comparou ainda, o comportamento térmico de ruas arborizadas face a ruas sem cobertura arbórea, tendo constatado que as primeiras se encontram, em média, 1ºC mais frescas que as ruas sem vegetação, com diferenças que chegam a atingir os 3,7ºC.
Num dia de calor e radiação solar intensa, “para estar confortável, de certeza que não vamos querer ficar no relvado. É o efeito sombra que eu concluí ter de facto mais peso. Daí as árvores serem muito mais importantes que os relvados”.
Onde estão as árvores em Lisboa?
Espalhadas pelas ruas e espaços verdes da cidade, estão georreferenciadas mais de 70 mil árvores em Lisboa. São, sobretudo, árvores de arruamento e árvores presentes em espaços verdes e cemitérios. Mas não se distribuem de forma igual. Apesar de poderem ser uma das melhores respostas ao calor, há lugares da cidade que quase não as têm. É o caso das freguesias ribeirinhas do Beato e São Vicente, locais onde o efeito ilha de calor urbano se verifica com particular intensidade. Em sentido contrário, as freguesias com mais árvores nas suas ruas são as Avenidas Novas, Parque das Nações e Santo António.
Mapa 3D interativo com a densidade de árvores por cada uma das 24 freguesias de Lisboa, a partir dos dados do arvoredo da cidade disponibilizados pelo município. Ao passar com o cursor, é possível consultar o número de árvores identificadas em cada freguesia, bem como a sua densidade em relação à área total do território.
Plantar árvores na Baixa para reduzir o desconforto?
Percorrer a Baixa à procura de uma árvore aproxima-se de uma caça ao tesouro. Basta percorrer o mapa da Câmara Municipal de Lisboa que identifica os pontos de arvoredo da cidade para perceber que, ali, por entre as dezenas de ruas geometricamente desenhadas, as árvores contam-se pelos dedos de uma mão. Na zona da Baixa, “para além de não haver árvores, as ruas são estreitas, há uma grande densidade urbana e todo o calor que ali chega, toda a radiação, é armazenada e é libertada durante a noite”. Se ali fossem colocadas árvores, diz Cláudia Reis, “seria o ideal”.
A Rua Augusta não tem nenhuma árvore ao longo dos seus mais de 500 metros de extensão. O mesmo acontece com a maioria das ruas da baixa lisboeta.
Mapa com a localização de todos os pontos de arvoredo no espaço público da freguesia de Santa Maria Maior, onde está localizada a baixa lisboeta.

A aposta, para a investigadora, deve ser “nas árvores de arruamento”. Colocando o foco na Baixa e através de modelações em que tem estado a trabalhar, explica que em “dias muito quentes e com temperaturas superiores a 30 graus”, a temperatura sentida ali é “superior a 40 graus”. “No verão, assamos de calor” e “o simples facto de colocarmos mais algumas árvores nas ruas” daria um contributo para “diminuir o desconforto”. A arborização, considera, é “uma das maiores armas” contra o desconforto térmico nas cidades.
Em agosto, as áreas da cidade com menos vegetação, a céu aberto, são as “mais críticas”, com as temperaturas sentidas a poderem chegar aos 50ºC.
Responder às alterações climáticas: que árvores, que medidas?
“As árvores são sempre o elemento fundamental de todas as cidades. Não só pelo aspeto estético, mas também pelo valor comercial. E há o valor ecológico, é um serviço climático” e “são um bem precioso para combater as alterações climáticas”, considera António Lopes.
Quanto à escolha de árvores para plantar em Lisboa, esta deve recair sobre espécies caducifólias, já que bloqueiam a radiação solar no verão e deixam-na passar no inverno. Exemplo de uma destas árvores é o lódão-bastardo. De folha caduca, é uma das espécies mais utilizadas em Lisboa e também uma das mais resistentes à vida em meio urbano.


O trabalho de modelação do impacto da vegetação e da urbanização nas temperaturas sentidas é “muito importante para conseguirmos estabelecer medidas concretas para o ordenamento do território” e para “melhorar as condições de habitabilidade e conforto” em Lisboa, sublinha Cláudia.
No relatório elaborado para o município de Lisboa, com a participação da investigadora e de António Lopes, são elencadas várias medidas para diferentes áreas da cidade.
Para as zonas caracterizadas por uma “densidade urbana elevada” e de “densidade urbana média”, que totalizam cerca de 29% da área da cidade e que integram zonas da Baixa, Parque das Nações e Avenidas Novas, recomenda-se:
- Incentivo à manutenção de logradouros com vegetação arbórea ou arbustiva e a superfícies permeáveis;
- Favorecer a alternância entre espaços abertos e arborizados nos espaços verdes, com preferência para a vegetação caducifólia;
- Promover a implementação de corpos de água nos jardins urbanos;
- Evitar o aumento do número de pisos dos edifícios;
- Evitar a construção perpendicular ao vento dominante;
- Utilizar materiais de construção de baixa condutividade e com cores claras e promover a instalação de telhados verdes;
- Antecipar o impacto do calor através do planeamento de espaços públicos sombreados, através de “estruturas de fachada e canópias de toldos, que não devem impedir o bom arejamento dos espaços”.
Artigo publicado originalmente a 9 de fevereiro de 2022.
13 de julho 2022: foram adicionadas referências à onda de calor que está a dominar Portugal Continental.

Frederico Raposo
Nasceu em Lisboa, há 30 anos, mas sempre fez a sua vida à porta da cidade. Raramente lá entrava. Foi quando iniciou a faculdade que começou a viver Lisboa. É uma cidade ainda por concretizar. Mais ou menos como as outras. Sustentável, progressista, com espaço e oportunidade para todas as pessoas – são ideias que moldam o seu passo pelas ruas. A forma como se desloca – quase sempre de bicicleta –, o uso que dá aos espaços, o jornalismo que produz.
✉ frederico.raposo@amensagem.pt
Amei a matéria!!! Vivi em Lisboa, em meados dos anos 1990, e não era uma cidade quente, não… Parece que muita coisa mudou.
Muito bom artigo.
Olá, boa noite! Obrigado pelo seu comentário ao artigo. Aproveitamos para anunciar que esta quinta-feira (17), às 18:30, a Mensagem de Lisboa vai ter um evento online para debater este problema da falta de árvores na cidade. Vamos contar com a presença de especialistas. Será na plataforma Zoom e o link está disponível aqui. Contamos consigo?
Obrigado por mais essa, Frederico. Excelente artigo, favoritei.