A cada hora forma-se uma orquestra melodiosa em casa de Luís, de tal forma que uma vizinha do prédio do lado pediu para calar alguns relógios durante a noite. São três da tarde e o sol está forte. Na sala de estar, Luís Couto Soares levanta-se do sofá, onde toma café, para fechar as cortinas. Cuida dos seus relógios como quem cuida de plantas. Eles não gostam de sol e precisam de ser “regados”. É o que acontece às segundas-feiras, dia de dar corda.
Luís cresceu no Porto fascinado pelos contos de reis e de mosqueteiros de Alexandre Dumas. Em pequeno, já sonhava com viajar no tempo. Hoje, na sua “casa-museu”, em Lisboa, cidade onde chegou aos 22 anos para entrar na Marinha, Luís transporta qualquer um até ao século XVIII. A banda sonora é o “tic tac” persistente que sai dos relógios, quase todos ingleses, que colecionou ao longo de uma vida.
A relojaria era um hobby que conciliava com o trabalho no Instituto Hidrográfico da Marinha e com atividades ligadas à aviação. Já reformado, o hobby de Luís deu origem a uma rara loja na cidade de Lisboa, o Pêndulo Real, na Rua Rodrigo da Fonseca, especializada no restauro de relógios e mostradores. Ou seja, a parte frontal dos relógios com os ponteiros que indicam horas e minutos. “É como se os relógios tivessem uma cara e uma personalidade.”


Na loja, está metido ainda o filho, de seu nome também Luís, que trocou a Economia pelo restauro. Um percurso talvez normal, para alguém que cresceu literalmente dentro de relógios.
A história de Luís Couto Soares é a “vida de alguém que está sempre a sonhar”. Em pequeno, “dizia que gostava de ser milho. Depois, quis ser boi. Também quis ser um elétrico”, recorda. “Gostava de ter sido pianista, arquiteto, astronauta. Quis voar e tirei o brevet.” Luís diz que talvez não seja “muito normal”, mas não quer ser retratado como “maluquinho”. É um espírito desassossegado, um “escravo das datas”, como se intitula, e um apaixonado pelo passado.
Numa estante cheia de livros de relojoaria, há memórias do Porto e da família. Uma das fotografias mostra a face do pai médico e da mãe dona de casa, que enfrentou a difícil tarefa de educar dez filhos. Ao lado, Luís guarda um autorretrato que fez aos 26 anos, quando usava óculos quadrados e bigode. “Estou sempre a desenhar”, comenta.
Na infância portuense, nasceu o gosto pelo século XVIII e pelas “coisas antigas”. A culpa é das “revistas aos quadradinhos”, das histórias dos mosqueteiros de Alexandre Dumas e do pai, que fazia questão de ter móveis antigos em casa. “As coisas antigas têm uma beleza que hoje não existe, porque eram feitas à mão”, justifica Luís.
“Mesmo antes dos dez anos”, já sonhava em ir ao século XVIII. A fantasia, as pistolas, as roupas. Tudo o fazia vibrar. “Isto não acontecia com os meus irmãos. São pessoas normais.”, diz, a rir. “A minha mãe tinha um espaço para cada um ter as suas coisas. Chegou uma altura que precisei de um armário bem maior só para mim. Arrecadava tudo.”
Aqui há relógios até na despensa
Tudo começou aos 26 anos. O primeiro relógio da coleção de Luís foi uma prenda de casamento dos pais, um relógio do século XIX de caixa alta francês. Anos depois, até estantes de livros tem na cozinha e relógios na despensa. “É uma coisa absurda”, brinca Luís.
O mais antigo dos seus relógios mecânicos é de 1674, um lantern clock, por ter a forma de lanterna. “O som é de tal forma intenso que a minha vizinha, do prédio do lado, pediu para o parar durante a noite. Atenção que há duas paredes a separar-nos, mas atendi o pedido”, conta.

No escritório, onde Luís passa o tempo a investigar e a acompanhar leilões on-line, sentado ao computador, há espaço para dez relógios de caixa alta. Quase todos são de produção inglesa, por uma questão de gosto e de personalidade.
“O relógio francês tem uma exuberância quase à Luís XIV”, explica Luís. “Os ingleses são mais sóbrios, como eu. Aprecio a frugalidade, a sobriedade e não gosto do excesso de vaidade.”
De t-shirt azul e calças de ganga, Luís brinca: “não gosto de gastar dinheiro em roupa. Ando sempre mal vestido”. Esta postura já lhe deu algumas vantagens no mundo elitista das antiguidades.
“Uma vez entrei assim num antiquário queque de Lisboa. O empregado pensava que era um labrego e não ia comprar nada”, recorda. “Quando perguntei o preço de um relógio, disse-me um número para me despachar. Pensava que me arrumava. Depois, foi confirmar e era mais caro. Fiquei com uma peça mais barata pelo preconceito.”
Na coleção de Luís Couto Soares, há poucos vestígios de relojaria portuguesa do século XVIII, uma escola “fraquinha e quase inexistente”. Para o colecionador, “Lisboa é pobre na tradição de relógios”. Mesmo assim, pela sua loja já passaram exemplares da Biblioteca Nacional e do Palácio de Queluz. “Quase todos estrangeiros”, aprofunda. Há-que destacar o relógio d’ A Brasileira, de meados do século XIX, numa altura que “casas comerciais importantes foram evoluindo e importando relógios”.




Os relógios são de vários tipos e feitios. Há de caixa alta, de mesa, de parede, de sol e outros mais curiosos… De cima de uma estante onde guarda a fotografia dos pais, Luís retira um relógio de azeite. Transparente, com um depósito em vidro tosco tem uma escala que começa às seis da tarde e termina às dez da manhã. “Enchia-se de azeite e acendia-se uma chama. O azeite não sai e vai sendo consumido”, ilustra o colecionador.
Não é só de relógios que vive esta viagem ao século XVIII. Luís aponta para um objeto caricato. “Parece a parte da frente de uma bicicleta”, brinca. Sem demoras, agarra no guiador para explicar que é um hodómetro, aparelho que mede distâncias a pé, uma verdadeira peça de museu.
Ao lado, guarda-se umas pequenas caixas de prata, as vinagrettes, desenhadas para encostar ao nariz de damas e nobres oitocentistas. Lá dentro, ainda se sente o cheiro a perfume que o proprietário deixou. Numa época “de mau cheiro e de muita porcaria”, a nobreza colmatava assim a passagem por certos lugares.
É também pelo cheiro que se viaja no tempo. Educado numa família católica tradicional, uma das coisas que mais apreciava nas Igrejas era o “cheiro das velas”. Por vezes, quando anoitece, apaga a televisão, que está ao fundo, na sala de estar, e acende celas e candeias espalhados pelo corredor de sua casa. A luz é a máquina do tempo.
As histórias que um relógio pode esconder
Além de colecionar, Luís investiga o percurso de cada peça e é impressionante a quantidade (e qualidade) de histórias que estão por detrás de cada relógio, mesmo dos mais pequenos. Nas mãos, o colecionador exibe um relógio de sol portátil que esconde a história de amor de um rei por uma atriz de teatro.
Não é a do Príncipe do Mónaco e de Grace Kelly. É preciso recuar uns séculos. No relógio, deixa-se as coordenadas geográficas de cinquenta cidades, sinal de pertença a alguém suficientemente rico para viajar no século XVII. João José de Áustria é o dono original, filho bastardo de Filipe IV e da sua favorita, La Calderóna, como ficou conhecida María Calderón na corte espanhola.
Aos 13 anos, quando o rei o reconheceu como filho, João José recebeu o relógio de sol como prenda. Anos depois, perdeu-o na batalha do Ameixial, em 1663. “É ele quem invade Portugal, numa das últimas batalhas da Guerra da Restauração. Os espanhóis perderam cerca de dez mil homens, fugiram e largaram tudo o que transportavam. E agora o relógio está comigo”, conta Luís.

Na sala de estar, há um relógio de caixa alta diferente de qualquer um. A maioria são feitos de madeira de nogueira e mogno, robusta e para durar. Mas aquele pinta-se a vermelho e está carregado de motivos asiáticos, à moda chinoiserie, explica o colecionador. O relógio pertencia ao comandante Ernesto de Vilhena, fundador e presidente da Companhia de Diamantes de Angola e colecionador de arte.
Um outro relógio de caixa alta, em raiz de nogueira, está associado a acontecimentos dramáticos. Pertenceu a José Carlos da Maia, antigo governador de Macau e membro da Maçonaria.
Pode parecer a cena de um filme. Na noite de 19 para 20 de outubro de 1921, em plena Primeira República e num clima de sucessivos golpes de Estado, um grupo de revoltosos conduziu pelas ruas de Lisboa a “camioneta-fantasma”. O objetivo era procurar e matar republicanos que se encontravam na capital. José Carlos da Maia foi uma das vítimas da conhecida “Noite Sangrenta”, que vitimou inclusive o primeiro-ministro, António Granjo.
Não é só de reis, príncipes, damas e políticas que reza a História, lembra Luís, que não esquece aqueles que não têm rosto e cujos nomes não aparecem nos manuais do secundário.

Numa caixa de fósforos usada esconde uma miríade de chaves minúsculas que põem em funcionamento os relógios de bolso do século XVIII. Luís Couto Soares desenha numa folha as pequenas peças que movimentam o mecanismo. Em torno de uma, o pião, vai enrolando-se uma corrente, composta por elos, quase como a das bicicletas, mas em ponto ínfimo.
“Cada elo tem um milímetro de comprimento”, precisa Luís. “A maior parte deste trabalho de conceção era feito por raparigas órfãs que precisavam desesperadamente de dinheiro. Isto dá cabo dos olhos. Quando chegavam à idade adulta não viam nada. É uma tragédia humana.”
“O restauro é restituir a beleza a coisas que as pessoas acham feias”: uma das últimas relojarias de Lisboa
Ao lado da cozinha que guarda livros, há em casa de Luís uma marquise, envidraçada, com um pequeno estúdio de madeira que serve para trabalho mais técnico. É uma espécie de mesa que assiste um cirurgião. Os órgãos são substituídos por peças como um mostrador de latão pronto a ser limpo e uns pesos de um relógio que está desmontado. “Pesam nove quilos, é com eles que o relógio se movimenta.”
Luís jamais teve a pretensão de ser relojeiro, mas aprendeu as técnicas de restauro. É uma paixão, não esconde. “O restauro é um entusiasmo, é restituir a beleza a coisas que as pessoas acham feias”, afirma.

Quando saía do trabalho na Marinha, passava os fins de tarde em lojas dos “mestres de Lisboa”, hoje raros. Regularmente, visitava a oficina do senhor António Couto, perto do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, na zona do Parque Eduardo VII, na rua Sampaio Pina “Aprendi muito aí. Ele deixava-me fotografar tudo, mexer e tirar apontamentos.”
Curiosamente, há 11 anos, o colecionador abriu uma loja de relojaria, o Pêndulo Real, a escassos metros da oficina onde tanto aprendeu. Tudo nasceu de uma necessidade prática: “Comecei a ver os mestres a desaparecer e precisava de alguém que assegurasse a manutenção dos meus relógios.”
Na rua Rodrigo da Fonseca, o som dos carros mistura-se com um “tlim” persistente. Lá dentro, Luís Soares, filho do colecionador, tem na mão um alicate vermelho e preto. A cada pinça, desmonta um relógio francês do século XIX. “Tudo tem de ser desmontado e limpo para uma revisão geral.”
As pequenas peças acumulam-se numa caixa de plástico. Depois, Luís encaixa-as num arame de metal para não se perderem dentro da máquina onde são polidas e limpas. “É uma espécie de máquina de lavar a roupa”, brinca Luís.


No início, Luís Couto Soares começou com um relojoeiro, mas há oito anos o sobrinho, Filipe Enes, hoje responsável técnico do Pêndulo Real, e o filho, Luís Soares, agarraram o projeto e quiseram aprender. Filipe e Luís deixaram para trás o Design Industrial e a Economia para se tornarem relojeiros, numa Lisboa onde existem “cada vez menos relojarias”.
“Não queria trabalhar num banco. Estar oito horas à frente de um computador não é para mim. Aqui há mais ação. Cada relógio é diferente, estamos sempre a aprender”, justifica Luís Soares.
Atrás do balcão onde Luís trabalha, há relógios de mesa, caixas e muitos pendurados na parede. Desde a pandemia, houve um “boom de trabalho”, comenta. “As pessoas estavam em casa mais do que o normal e queriam ter as coisas arranjadas. Traziam sobretudo relógios de parede e de mesa, dos avós, dos tios.”
Ao lado, há um espaço destinado à venda de relógios, a maioria de caixa alta e ingleses. “Já não havia espaço em casa do meu pai”, brinca Luís. Junto à bancada, tem uma cópia da fotografia em pequeno, dentro de um relógio, com umas meias brancas e vermelhas na ponta. “Às vezes, quando instalo relógios em casa dos clientes, ouço os filhos reclamarem do barulho e lembro-me do que sentia quando era mais novo”, conta.
Do pai, Luís herdou o nome e também o gosto pelos relógios. Mas sabe que esta é uma “paixão” do pai. A obsessão por relógios não é coisa de Luíses, nem de genes, mas existe.

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* João Damião é aluno do mestrado de Jornalismo da Universidade Nova de Lisboa/ FCSH. É um tanto idealista. Acredita que o melhor futuro é pautado pela educação, informação, beleza e tolerância. É isso que o move a contar histórias. Está a estagiar na Mensagem de Lisboa. Este texto foi editado por Catarina Pires.