Escolheu mal o marido e nem sequer teve amantes. Durante muitos anos, ninguém lhes levava a sério o casamento. Habituados um ao outro, era só aguentarem mais um dia. Nem alegria nem tristeza – mas não será isso ter um anel no dedo muito tempo? Assim viveram os dois numa casinha em Alvalade.
Talvez, ao fim de vinte anos, já não haja grande coisa para dizer. Aquele fogo inicial é fátuo, o artifício explode, o encanto só nasce da surpresa, e o surpreendente torna-se em coisa pouca, inabitada, dia-a-dia. Não surpreenderá por isso que os últimos anos só tenham tido conversas sobre o sal da sopa e pouco mais.
Aos 60 e tal, o homem começou a ficar doente. A família tinha mau sangue, adoeciam todos cedo, nunca adiavam os cadáveres. Alguns morriam tão novos que nem para procriar serviam. E quando lhes batia algum azar era coisa para meses de hospital, anos de cama. Assim se desfaziam uns atrás dos outros. Os homens, que no início cheiravam a after shave, ganhavam aquele cheiro denso a carne gasta. As mulheres largavam o perfume e no ar só havia Betadine. A água-de-colónia, com anos de vida, jazia semi-morta dentro de uma gaveta.
Ele era o Paulo, ela era a Paula. Como a cama não deu para os filhos, o máximo que conseguiram da vida foi um peixe no aquário chamado Paulinho. Todos os dias, ela, que ainda era quem trabalhava em casa, ia lá meter-lhe comida de um pacote. Uma vez por semana, lavava o aquário. E duas vezes por dia trocava as fraldas ao marido. Não havia vaga num centro público que o quisesse, pelo menos a menos de setenta quilómetros de distância, e arcava ela com a vida dos dois em simultâneo.
Coitada. Tanto esqueleto de mulher para tanta carne de homem. Ninguém sabia como o virava, como é que os seus 68 anos aguentavam tanto peso. Em cima dos ossos, era só pele e zero músculos. E ele, vencido pela doença, perdera a vida toda excepto o apetite. Sem outro consolo senão a placidez da cama, a Catarina Furtado na TV e o rádio para ouvir os relatos do Benfica, comia porque o palato estava intacto. Aos poucos, os pulmões sucumbiam, transformando-o num fio de gente que ainda era um colosso entre os lençóis. A Paula, sem outro remédio, sem cunhados por perto, era a única a manter a montanha erguida até ao fim.
Depois de piorar, o homem foi internado. No hospital, recebia uma mistela e recusava-se a comer. A mulher ia lá todos os dias levar-lhe croissants mistos, pães de deus. Ele foi perdendo o apetite e já só a sonda servia. O médico deu o aviso, não surpreendeu ninguém, fez-se a certidão de óbito. Chegaram os agentes da funerária, vestiram-lhe um fato, puxaram-lhe o cabelo para trás, colaram-lhes os lábios. Parecia um morto, parecia um vampiro, parecia um vampiro morto.
Foi transportado no mesmo dia para a Igreja dos Santos Reis Magos, ele cujo deus fora o Eusébio e ninguém mais. A família levou algumas flores, houve algumas lágrimas, não muitas, a viúva de vez em quando chorava ou berrava ou eu sei lá. Em tantos anos de casamento, havia contas a ajustar. Mas amava-o, dizia, amava-o muito. Eu nunca achei que se amassem assim tanto, mas um homem morto acende mais coisas do que um vivo.
No dia seguinte, levou-se o caixão para um T0 sob a terra. Mais uma vez, conta-se que a viúva chorou muito, com o lábio a tremer num só abalo. Toda a gente sabia que o homem, volta e meia, a cobria de pancada, nesses tempos idos em que ainda conseguia estar de pé, julgando-a isto e aquilo, chamando-lhe aquilo e isto, incapaz de adivinhar o futuro, como todos nós, jovem que bastasse para lhe ser impossível imaginar que o bocado de carne inane em que batia o ia limpar e enterrar. Naquele momento, acho que toda a gente pensou nisso. Ninguém se traiu e a viúva também não. Não sei se estava tudo perdoado ou esquecido.
No dia seguinte, vi a Paula no café. Volta e meia, cruzávamo-nos lá, eu com a minha torrada, ela sempre com a mesma água das pedras. Mas eram nove da manhã e ela tinha pedido um bagaço. Não percebi se era tristeza ou alcoolismo, mas talvez fosse apenas o alívio que dizem que o álcool dá. Um dia de cova e sei lá quantos anos de casamento ali metidos.
Lá tive de cumprir o meu papel, “Como está? Lamento muito pelo que aconteceu ao seu marido.” E ela logo, pragmática: “Já não acontece mais nada, agora é certinho que fica tudo igual.” Não percebi mas disse o que dizem sempre: “Pois, agora é andar em frente.”
Esperei resignação, mas veio uma catadupa de planos: “Claro, claro. Hoje já acordei às seis, reguei as plantas e fiz duas máquinas de roupa. Havia muita roupa para lavar. Lençóis dele, que tinham ficado à espera, e dois pijamas. Ui, pijamas era o que ele mais gastava, e eu sempre naquilo. Ainda há dois ou três meses lhe tinha comprado três pares, e dos bons, e que lindo ele ficava. Esteve sempre bem tratadinho, até a barba eu lhe fazia. Aproveitei e mudei também os meus lençóis. Vim agora beber este cheirinho. Ao tempo que queria fazer isto e não podia.
Não sei o que vou fazer esta manhã, as manhãs eram sempre a tratar dele, disto, daquilo, da puta que o pariu, mas depois do almoço vou passear para o Campo Grande. Tantas vezes passo ali e vejo sempre tantos jovens, tudo a comer gelados, outros a olhar para os patos. E vai ser mesmo isso que vou fazer esta tarde, e talvez todos os dias: comer um gelado a olhar para os patos.”
Vi-lhe os olhos abertos ao mundo e reparei num peixe dentro de um saco de plástico com três copos de água e não mais. Tive de perguntar: “Desculpe, e o que vai fazer ao peixe?” Ela olhou-o com carinho e disse só: “Vou metê-lo ali no lago. A partir daqui segue cada um a sua vida.”

Ana Bárbara Pedrosa
Veio para Lisboa estudar Literatura em 2012. Daqui só saiu para o Brasil, onde, à portuguesa, teve saudades dia e noite. Regressada, escreveu Lisboa, chão sagrado e a cidade foi a diva onde se perderam personagens. Anos depois, numa casa em Benfica, foi ao Médio Oriente e escreveu Palavra do Senhor. No mesmo sítio, meteu a cabeça em Vizela e escreveu Amor estragado. Para os de cá, tem sotaque minhoto; para os de lá, engravatado.